'Mais profunda do que a curiosidade humana em relação a seu passado é a inquietude em relação ao futuro.' Aron Barth


A Ucrânia é hoje um dos Estados soberanos mais novos do mundo. Sua população apresenta importantes diferenças culturais, religiosas e étnicas. Apesar dessa heterogeneidade, a minoria judaica conseguiu transpor barreiras de todos os tipos e conquistar uma posição de destaque no contexto ucraniano. Os judeus se mantiveram em ascensão na ex-URSS, onde o passado de lutas e conquistas fortaleceu o seu espaço e consolidou uma identidade forte, com base em seus rígidos princípios.

A invasão de Bizâncio por Oleg, em 907, constituiu o ponto de partida dos conflitos futuros contra as comunidades judaicas. O governo de Lênin (1917-1923) amenizou relativamente tais conflitos. Porém, a partir da década de 30, com a instalação dos pogroms, houve um recuo na expansão das comunidades que se desenvolviam em regiões ao sul, leste, oeste e centro da Ucrânia. Ao mesmo tempo, diminuíram os intercâmbios comerciais constantes com outras comunidades judaicas da Europa Ocidental (Alemanha, França, Reino Unido, Espanha, Países Baixos e Itália), que investiam elevadas somas para melhorar economia da Ucrânia. As regiões onde se encontravam os maiores aglomerados judaicos recebiam a maior parte desse montante.

A formação do território da Ucrânia se caracteriza por conquistas territoriais e aquisições, o que inclui a famosa política de "casamento". A atual Ucrânia corresponde à antiga região da Valáquia, Criméia, Lituânia, Podólia e Volínia.

Em 1266, a costa meridional da Criméia passou ao domínio de Gênova (porto italiano com forte influência na Europa Mediterrânea). A sede do Bispado Católico Romano instalou-se em Kaffa, o que chocou os judeus e também a comunidade cristã ortodoxa. Com o auxilio da comunidade judaica, os ortodoxos eliminaram a soberania da Criméia, em meados do século XV. Do século XV ao século XVIII, foram conquistados territórios a leste (no Rio Donetz) e outras regiões, como as conquistadas por Catarina II (Criméia, Rio Dniepr, Rio Dnietr e a Varégia). Essas conquistas territoriais poderiam estimular os exércitos invasores a novas aventuras, tanto na Europa Oriental como na Ásia Menor.

Em algumas áreas da Criméia os judeus eram tão numerosos que certas cidades eram conhecidas por outros nomes, a exemplo de Kerch, que era denominada pelos árabes e turcos de Samarkerch-al-yehuda, Samarkerch-a-judia.

Estes judeus eram conhecidos como krimchaki ou caraítas. Estas comunidades não se misturavam com os tártaros, russos e outros povos da região, apesar de falarem o mesmo idioma, e nem com outros judeus vindos da Rússia e Turquia. Deve-se destacar que a contribuição dos caraítas deu grande estímulo às atividades econômico-financeiras da Criméia. Parte dessa comunidade desapareceu no século XX, exterminada pelos alemães durante a Segunda Guerra Mundial; outros judeus escaparam em direção às montanhas do Cáucaso, onde seus remanescentes, chamados de Dagh Chufuti (judeus da montanha), hoje estimados em algumas mil almas, abandonaram os idiomas nativos (tártaro, russo e ídiche), e falam o partsi-tat e o persa moderno.

As comunidades judaicas viviam em bairros proprios, divididos em tres partes: uma habitada por cazares e outros povos convertidos ao judaísmo, a outra hospedava ricos comerciantes vindos da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, e uma terceira parte era habitada pelos "verdadeiros" judeus. A divisão dos bairros, porém, não deve ser entendida como uma experiência de gueto.

A divisão interna dos bairros dos judeus ucranianos, especificamente de Kiev, uma cidade com estrutura medieval, decorria de circunstâncias comunitariamente normais. Cada comunidade regrava-se por regulamentos locais denominados de Teknot ou Tekana, que eram formulados pelas lideranças congregacionais e proclamados nas sinagogas espalhadas pela Ucrânia. Cada comunidade pertencia a um grande grupo judaico: ashkenazim, sefaradim, gruzim, caraítas, cazares e outros grupos menores.


Em seus deslocamentos pela Ucrânia, as comunidades distribuíam-se pelo sul, na região de Kherson, às margens do Mar Negro; à oeste, na região de Lvov, nos Cárpatos; ao norte, na fronteira com a Bielorússia, à leste em Poltava, Kharkov e Dnietnapetrov. Também eram encontradas nos grandes centros e na parte central do país (Kiev). Antes do advento do socialismo de Stalin, viver em áreas urbanas garantia maior segurança e proteção frente aos ataques dos cossacos.

As cidades escolhidas pelos judeus para se fixarem geralmente eram bem posicionadas, às margens dos rios, o que facilitava uma abertura comercial e o desenvolvimento agrícola. Depois que a população judaica cresceu quantitativa e qualitativamente, e passou a ocupar maior área e destaque na economia e na cultura e prosperou junto a outros povos da Europa Ocidental, os conflitos e os populares sentimentos antijudaicos aumentaram na Ucrânia. Assim, muitos judeus emigraram para a Europa Ocidental em busca de uma nova vida. Juntamente com a população ucraniana eslava, a Igreja liderou protestos e ridicularizou os cultos e ritos judaicos, profanando os livros sagrados e marginalizando a fé e a religiosidade e proibindo as comunidades de realizarem suas orações. Mas o faziam às escondidas.

Nem mesmo os pogroms e a fundação de um "Estado" especificamente judaico, para a ocupação do extremo leste da Rússia siberiana, ao norte da China, no rio Amur e ligada pela Transiberiana até a República de Birobidjan ou Raión Yevrey - região dos judeus, 1932, desmoralizou a perseverança do povo eleito. A religião foi o alimento principal para essas pessoas durante todas as perseguições.

Durante a vigência do socialismo, a comunidade judaica ucraniana se tornou culturalmente uma das mais pobres da Europa. A decadência cultural e religiosa foi proposital: as lideranças judaicas se enfraqueceram, o que favoreceu a cultura e a religião ortodoxa ucraniana, e humilhou os judeus (Krome ievreiv! - Fora judeu!). Essa humilhante discriminação era oficial e acontecia apenas em locais fechados, ambientes isolados como clubes, restaurantes, hotéis, escolas e universidades. A antiga comunidade foi desfeita e cada judeu passou a morar em bairros diferentes, distantes e espalhados pelas 25 guberni (províncias) da Ucrânia socialista.

A absurda discriminação criava, muitas vezes, situações tragicômicas. Por exemplo, no início do desenvolvimento industrial na Ucrânia (o que ocorreu na última década do século XIX), um judeu poderia ser proprietário de uma siderúrgica, mas não poderia ser operário na mesma. Como se sabe, os judeus foram responsáveis pela construção de 75% das estradas de ferro da Ucrânia e da Rússia; poderiam ser donos dos mais importantes troncos ferroviários, mas não podiam empregar-se nas estradas de ferro e nem trabalhar como simples guarda-chaves.

O entusiasmo inicial com que as massas judias receberam a revolução e o golpe de Estado desfechado por Vladimir Lênin contra a monarquia czarista de Nicolau II foi recebido reservadamente, pois as manifestações judaicas eram permanentemente vigiadas e proibidas. Para a "felicidade" de alguns, Lênin possuía origem judaica, assim como Trotsky; daí a confiança na revolução e simpatia para com o novo líder bolchevique.

Com essa energia e movimentação das massas, o sionismo comunista da Ievsektzia ganhou força e propôs a formação de um Estado judeu nas estepes, pois havia sido incorporada a necessidade de ter um espaço próprio e iniciar de forma promissora a nova política (que se colocava experimentalmente na Criméia).

Durante o governo comunista de Stalin ocorreu uma mudança radical na política (1929): os estabelecimentos produtivos agrícolas dos judeus ucranianos nos solos tchernezion passaram a ser coletivos (sovekhozes) e a pertencer ao Estado Socialista.

A partir de 1926, os censos não contavam mais as comunidades judaicas que, assim, foram incorporadas às soviéticas. Mais uma vez, a comunidade foi marginalizada. Para justificar a URSS, o governo promoveu uma russificação forçada na Ucrânia, o ídiche foi restrito às casas, pois era interpretado como língua de protesto.

Muitos pensaram que após a morte de Stalin (1951), as agressões e as perseguições aos judeus seriam amenizadas. Com a chegada do líder Nikita Kruschev ao poder (1953-1964) , a situação piorou, pois, não obstante os malabarismos que procuraram atenuar a situação trágica do povo judeu na terra do socialismo, nada mudou de fato.

No governo de Brejnev (1964-1981) teve continuidade a mesma política nacionalista exagerada, que vendia a propaganda de um povo unificado pelo desejo de ser feliz em um sistema perfeito para resolver todos os problemas étnicos e sociais.

Uma minoria atuante, sempre presente nos movimentos e decisões políticas da Ucrânia, os judeus não passavam de umas centenas de milhares que estimulavam, com exemplos positivos, a cultura e a economia. Uma população pouco numerosa, mas que sustentou idéias contrárias às da maioria ucraniana. Os judeus não apenas ocuparam os espaços políticos ou culturais, mas também foram responsáveis pelas transformações dos espaços agrícola e urbano, colaborando para o desenvolvimento da Ucrânia.

Passando por todas as dificuldades mantiveram-se fiéis ao comportamento moral e ético judaico. Aliás, esse foi um dos principais marcos para a sua inserção na Ucrânia e para a preservação do espaço que conquistaram para as futuras gerações. Sob a vigência comunista na ex-URSS, que fechou as fronteiras e as comunicações com o mundo, os judeus ucranianos ficaram isolados, pois não havia meios de se obter informações e de ter contato com outras comunidades judaicas, a não ser pelas trocas efêmeras de rabinos.

Assim, a Cortina de Ferro, algo intransponível, tornou-se um desafio a muitos que fugiram desse inferno político e, cansados de ser humilhados, passaram a viver em outros países. Aqueles que fugiam, perdiam o contato com os familiares, mas os familiares que ficavam respondiam aos processos instaurados pelo Estado soviético.

Na Ucrânia atual, os contatos foram restabelecidos com algumas comunidades do Canadá, Estados Unidos da América e Israel, para onde o maior número de emigrantes se direcionou.

Os judeus ucranianos mantiveram os valores essenciais do judaísmo. Sem dúvida, essas foram as principais razões de sua sobrevivência.

Estudando a história dos judeus ucranianos, constatamos que a relação de um povo ou de um grupo com o espaço é vital quando existem valores enraizados e mantidos através do tempo, pois consolidam uma identidade forte. Para a minoria judaica, esta identidade é a razão de suas lutas e vitórias. Mais importante do que a conquista de um espaço, porém, é a luta de uma sociedade por seus direitos e liberdades.

A trajetória dos judeus na Ucrânia e/ou ucranianos confirma a necessidade da busca de uma identidade cultural e espacial, legitimada e reconhecida pelos demais povos.

Carlos Alberto Póvoa