Em recente viagem ao exterior, o primeiro-ministro Ariel Sharon protagonizou uma cena rara nos dias de hoje, marcados pela crise que engolfa o Oriente Médio. O líder israelense concedeu, com desenvoltura, entrevista coletiva numa sala decorada por bandeiras com símbolos do islã cuidadosamente arrumadas pelos anfitriões.
Sharon falava à imprensa durante visita à Turquia, país islâmico que cultiva importantes relações políticas, econômicas e militares com o Estado judeu desde os anos 90, em laços que sobrevivem e avançam apesar dos solavancos nas exíguas relações entre Israel e o mundo muçulmano.
A Turquia recebeu Sharon apesar das pressões do mundo árabe e de grupos islâmicos turcos. O governo do premiê Bulent Ecevit mantém acesa a tradição iniciada em 1923 de rejeitar versões fundamentalistas do islamismo e de olhar para o Ocidente em busca de um modelo sócio-econômico, o que significa embalar o ainda distante sonho de ingressar na União Européia e cultivar a manutenção de relações muito próximas com os Estados Unidos. A aliança com Israel desponta como mais um reflexo da opção estratégica feita por Ancara.
Turquia e Israel compartilham ansiedades e ameaças. Os turcos mantêm rivalidades históricas e disputas territoriais com vizinhos como Síria, Iraque e Irã, países que também freqüentam a lista dos inimigos mais implacáveis do Estado judeu. O terrorismo usado pelos separatistas curdos em sua luta contra Ancara se assemelha aos métodos usados por extremistas palestinos. As elites e os militares turcos temem a influência de grupos fundamentalistas islâmicos, que ameacem os fundamentos de uma democracia jovem, ainda a ser aperfeiçoada.
A longa intersecção de interesses levou Turquia e Israel a assinarem um acordo de cooperação militar em 1996. Desde então, esses laços não param de crescer. Em julho, o ministro israelense da Defesa, Binyamin Ben-Eliezer, visitou a capital Ancara e se reuniu com seu colega, Sabahattin Cakmakoglu. Foi recebido ainda pelo presidente Ahmet Necdet Sezer.
Quando Ben-Eliezer desembarcava em terras turcas, a segunda intifada já se desenrolava havia quase dez meses, e sua visita provou que a Turquia não se dobrava diante das pressões de países muçulmanos e árabes para fazer o que Egito e Jordânia já tinham implementado: um forte esfriamento nas relações entre os “moderados” e Israel. Mas, se Ancara manteve a recepção a Sharon, também se viu obrigada a fazer algumas concessões cosméticas aos setores turcos mais próximos dos palestinos e teve também de expressar, em voz alta, críticas ao governo israelense.
“Se as esperanças de paz desapareceram do Oriente Médio, isso poderá colocar em dificuldades as relações turco-israelenses”, declarou o premiê Ecevit. “Claro que não gostaríamos que isso acontecesse, pois damos igual importância a nossas relações com Israel e os palestinos”. O dirigente turco criticou Sharon por insistir na exigência de “fim total da violência” como pré-condição para um reatamento das negociações. Trata-se de uma exigência “irrealista”, resumiu Ecevit.
Num briefing a jornalistas israelenses, antes da chegada de Sharon, um diplomata turco procurou explicar com antecedência a necessidade de seu governo de fazer “críticas em voz alta”. “Sharon fala de uma aliança de democracias, mas ele deve saber que também somos uma democracia e que temos de levar em consideração a nossa opinião pública”. Em Istambul, na véspera da visita do premiê israelense, a polícia prendeu 131 pessoas que protestavam contra a manutenção dos laços com Israel.
Para não irritar alguns setores da opinião pública turca, o premiê Ecevit decidiu esvaziar um pouco a pompa e circunstância que costumam cercar a visita de um chefe de governo estrangeiro. Nenhum ministro de Estado recebeu Sharon no aeroporto, e a tradicional peregrinação ao mausoléu de Mustafá Kemal Ataturk, fundador da Turquia moderna, foi cancelada.
Ecevit se esforça para, simultaneamente, manter a relação estratégica com Israel e aplacar a crescente pressão árabe e muçulmana. O premiê ofereceu a Turquia como palco de um encontro entre Yasser Arafat e Ariel Sharon, sugestão rejeitada pelo premiê israelense. “Eu não perderei nem mesmo um segundo após a volta total da calma para fazer avançar o processo de paz”, insistiu Sharon, repetindo sua exigência para a retomada do diálogo.
O primeiro-ministro israelense descreveu seu encontro com as lideranças turcas como “excelente”. No entanto, um funcionário do governo da Turquia, citado pelo jornal israelense “Haaretz”, descreveu a reunião como a “mais dura” da última década entre líderes dos dois países. Não era de se estranhar. Afinal, a intifada apareceu como um poderoso fator de irritação no céu de brigadeiro que abriga as relações turco-israelenses. E, nesse caso, ela não vai deixar de ser um aspecto apenas colateral, incapaz de impedir que os laços ainda se fortaleçam, proporcionando a Ariel Sharon a oportunidade valiosa, do ponto de vista simbólico e político, de desembarcar em visita oficial num país muçulmano.
O jornalista Jaime Spitzcovsky é diretor do site www.primepagina.com.br e articulista da Folha de S. Paulo. Foi editor internacional e correspondente do jornal em Moscou e em Pequim.