Cerca de um milhão de judeus da ex-URSS emigraram para Israel nos últimos 30 anos. Esse êxodo maciço teve profundas influências não apenas em Israel, mas em todo o mundo judaico.
Após as revolucionárias mudanças políticas e econômicas ocorridas na União Soviética, a partir do final da década de 1980, a emigração de judeus soviéticos para Israel assumiu proporções até então inimagináveis. Assim, entre 1989 e 1996, cerca de 850 mil chegaram a Israel para se somar aos quase 200 mil que lá se haviam estabelecido em duas ondas migratórias – uma na década de 1960 e outra em 1970.
Hoje, a presença russa é facilmente constatada em todo Israel. Cartazes espalhados pelas fachadas de lojas e restaurantes chamam a atenção dos transeuntes. Ao lado das letras em hebraico, árabe e inglês, aparecem também as do alfabeto cirílico, atualmente tão incorporado ao cotidiano israelense que sequer remete à situação de 20 anos atrás, quando eram poucos os que facilmente o identificavam. Proliferaram jornais, emissoras de rádio e televisão em russo, além da literatura, de grupos de teatro e outras manifestações artísticas. No espectro político-nacional, ao lado dos partidos representativos dos sefaraditas, religiosos ou de esquerda, formou-se mais um partido para representar os interesses dos imigrantes russos. Nomes como Natan Sharansky, Yuli Edelstein e Avigdor Liberman estão lado a lado aos de descendentes das primeiras gerações de pioneiros, como Shimon Peres e Binyamin Netanyahu, entre outros.
Novo contexto político
Não é possível analisar a repentina imigração judaica para Israel e outros países ocidentais, a partir do final dos anos 1980 e ao longo da década de 1990, sem considerar o contexto em que vivia então a União Soviética e as transformações realizadas por Mikhail Gorbachev, que assumiu o poder em 1985. Último dirigente soviético a ocupar o cargo de secretário-geral do Partido Comunista, suas ações para democratizar o sistema político e descentralizar a economia resultaram na queda do comunismo e no desmembramento, em 1991, da União das Repúblicas Soviéticas Socialistas.
Ao assumir o poder, Gorbachev herdou uma nação exaurida por 60 anos de controle da economia e 40 anos de Guerra Fria com o Ocidente. A estagnação econômica iniciada no final dos anos 1970 se agravara e a URSS via-se incapacitada de atender as necessidades da população e as exigências do mercado. Gorbachev iniciou a abertura da URSS para o mundo através de dois programas: a perestroika (“reestruturação”) e a glasnost (“abertura”).
A reestruturação econômica da URSS compreendeu uma liberalização controlada da produção e uma posterior adoção da economia de mercado. A glasnost pretendia eliminar os aspectos mais repressivos do autoritarismo soviético, implantando liberdades democráticas e estabelecendo melhores relações com o Ocidente. Entre as medidas tomadas, institui-se a liberdade religiosa e libertam-se os dissidentes políticos.
À época, iniciava-se, também, o processo de democratização dos países da Europa Oriental. Os regimes comunistas, país após país, começam a cair e, em novembro de 1989, é derrubado o Muro de Berlim, símbolo da Guerra Fria. Gorbachev, eleito em 1990 como o primeiro presidente executivo da União Soviética, tenta preservar, de alguma forma, a nação soviética. Internamente os comunistas de linha-dura estavam descontentes com a perda de poder do Partido e, em agosto de 1991, orquestram um golpe de Estado. Contragolpistas liderados por Boris Yeltsin, presidente eleito da República da Rússia, prendem os líderes reacionários.
Gorbatchev volta ao poder, mas já tinha seus poderes debilitados. A derrota do golpe e o caos político e econômico que se seguiu levou à fragmentação do país. De setembro e dezembro de 1991, 11 das 15 repúblicas soviéticas declaram independência. Numa espécie de golpe branco contra Gorbatchev, os presidentes das Repúblicas da Ucrânia, Bielorrússia e Rússia assinam um documento que extinguia a União Soviética, criando, em seu lugar, a CEI – Comunidade dos Estados Independentes. E, em 25 de dezembro, um dia antes da dissolução da URSS, Gorbachev renuncia. A Rússia – oficialmente Federação Russa – com mais da metade do antigo território soviético, além da maioria do seu parque industrial e militar, torna-se o principal poder da região.
A reforma política de Yeltsin, que governou a Rússia até 1999, pretendia instaurar a economia de mercado. Mas, além de encontrar resistência das forças reacionárias, a mudança rápida de um regime econômico, até então altamente controlador, para um sistema liberal, levou o país ao desemprego e à inflação, gerando enormes problemas sociais. Fragilizado pela crise financeira do verão russo de 1998, Yeltsin demite-se do cargo em dezembro do ano seguinte, entregando o poder a Vladimir Putin, até hoje o homem forte da Rússia.
Foi justamente em meio a essa turbulência política que se deu o êxodo de grande parte dos judeus soviéticos, que iria impactar não apenas Israel, mas também o mundo judaico como um todo, com o surgimento de comunidades oriundas da antiga União Soviética em vários países do mundo.
Décadas de luta
A União Soviética, estado ateu a partir de 1922, instituíra um severo controle e, posteriormente, uma forte repressão às crenças religiosas, visando em última análise sua eliminação. Qualquer manifestação religiosa era considerada “anti-soviética” ou “burguesa” e, conseqüentemente, duramente castigada. No tocante aos judeus, a política soviética sempre foi marcada por forte anti-semitismo, cujo grau variava de acordo com circunstâncias internas e externas. Durante o regime stalinista, por exemplo, fecharam-se as escolas e sinagogas, prenderam-se os rabinos e professores e fez-se o impossível para arrancar dos milhões de judeus que lá viviam as suas raízes e valores tradicionais.
Na segunda metade da década de 1960, a URSS permitiu a saída de uns poucos judeus, principalmente oriundos das repúblicas muçulmanas. Em 1967, às vésperas da Guerra dos Seis Dias, 2 mil novos olim reiniciaram sua vida em Israel. Após a vitória israelense nessa Guerra, o sentimento de orgulho em relação ao feito heróico das Forças de Defesa de Israel que se espalhara pelas comunidades judaicas do mundo chegou, também, à URSS. Entre os judeus soviéticos surge um renovado interesse pelo judaísmo e cresce o desejo de deixar o país. Um número cada vez maior passa a solicitar vistos de saída. Conquanto a alguns se lhes permitiu emigrar, à maioria se lhes negou tal permissão.
A dramática situação dos judeus soviéticos é revelada em uma apaixonada carta que 18 famílias da Geórgia enviam, em agosto de 1968, para a então primeira-ministra de Israel, Golda Meir, e ao Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas. Na missiva, poucas palavras carregadas de uma mensagem desesperada: “Ajude-nos a partir para Israel. Vendemos nossos bens e apenas esperamos a autorização para partir”. Centenas de cartas como esta enfatizavam os anseios dos judeus soviéticos de deixar o país e emigrar para Israel.
Os anos e décadas seguintes são marcados por intensa luta em prol do direito desses judeus e de qualquer outra pessoa de deixar a URSS. O símbolo dessa luta foram os refuseniks, termo não-oficial para aqueles, não exclusivamente judeus, aos quais se lhes negava a permissão de abandonar a União Soviética. Entre os nomes mais conhecidos desse período cinzento estão o judeu Natan Sharansky e o dissidente Andrei Sakharov, entre outros.
Apesar das restrições e os riscos impostos pelo regime, que incluíam julgamentos por traição e prisão em campos de trabalhos forçados – os terríveis Gulag, imortalizados pela obra de Aleksandr Solzhenitsyn, O Arquipélago Gulag – cerca de 80 mil judeus conseguem emigrar para Israel entre 1970 e 1973. Totalmente diferentes dos imigrantes da década de 1960, oriundos das camadas menos privilegiadas do país, esses olim vinham de grandes centros urbanos mais ocidentalizados do Império Vermelho. Eram, em sua maioria, profissionais liberais, cientistas, artistas. Segundo dados do Escritório Central de Estatísticas de Israel, mais de 3 mil eram médicos, outros milhares eram engenheiros e cientistas, havia também dúzias de músicos, escritores e poetas. O impacto de uma imigração tão qualificada impulsionou a economia israelense, que se recuperou de uma crise e inflação desastrosas, principalmente na indústria de alta tecnologia, que dava, então, seus primeiros passos a caminho de se tornar uma das mais avançadas do mundo. Criou-se um Ministério especial de Imigração e Absorção para cuidar de todos os aspectos ligados à vida dos olim. Em média, cerca de 60 mil novas moradias foram construídas por ano e a carência de mão-de-obra em alguns segmentos fez com que a maioria conseguisse rapidamente começar a trabalhar e se integrar à sociedade israelense. Estudos oficiais indicam que cerca de 140 mil judeus soviéticos emigraram para Israel até o final da década de 1970.
Com o fim do boom econômico dos anos de 1970, nem todos os judeus que saíam da URSS tinham como destino final Israel, apesar de sua partida estar condicionada à aliá. A Agência Judaica os fazia deixar a URSS, mas, ao chegar à Áustria e Itália, muitos se declaravam refugiados políticos e tentavam obter vistos para os Estados Unidos, Canadá e países da Europa. Em meados da década de 1980, 90% dos judeus que deixaram a URSS não escolheram Israel como seu destino final.
Internamente, as autoridades soviéticas – que não viam com bons olhos o ressurgimento do judaísmo – usaram como desculpa para deter a saída dos judeus e coibir atividades judaicas o fato de muitos usarem a permissão de ir para Israel como pretexto para deixar o país. Tornara-se cada vez mais difícil deixar a URSS. O número de refuseniks chegara a milhares, tendo 19 sido julgados como traidores. Natan Sharansky, um dos mais famosos dentre eles, pediu um visto de saída para Israel em 1973, mas teve seu pedido recusado por motivo de “segurança”. Foi preso em 1977 e julgado por traição. No ano seguinte foi condenado a 13 anos de prisão. Sua esposa, Avital, que já havia recebido permissão de deixar a URSS, liderou uma campanha mundial pela libertação do marido e de outros prisioneiros políticos. Sharansky foi solto oito anos e meio mais tarde, juntamente com mais três agentes ocidentais, em uma troca de prisioneiros políticos.
A luta dos refuseniks tornara-se uma das principais causas do judaísmo mundial, mas teve seu principal palco nos EUA. Inspirados pelo apelo de Moisés ao Faraó, quando pediu a libertação dos judeus do Egito – “Deixe meu povo partir” – a frase tornou-se o slogan do movimento.
Quando finalmente houve uma mudança de atitude das autoridades soviéticas em relação à emigração judaica, esta não foi motivada tanto pelas pressões mundiais, mas sim pelos novos ventos que começavam a soprar na URSS, pois Gorbachev já iniciara a glasnost, sua campanha de abertura para o mundo.
O Ocidente levou algum tempo para entender a profundidade das mudanças que ocorriam na União Soviética, mas, já em 1989 as lideranças da Agência Judaica falavam sobre uma próxima emigração soviética em massa. No início, essas considerações eram recebidas com ceticismo em Israel. Na verdade a Agência Judaica subestimara o fluxo de novos olim que estava prestes a se dirigir para Israel.
A grande aliá soviética
Nos primeiros meses de 1990, 50 mil olim chegaram a Israel provenientes da URSS. Nos três meses seguintes, mais 30 mil e, no último trimestre, mais 100 mil – a fantástica cifra de mil pessoas por dia. A grande aliá soviética estava em marcha. Entre 1989 e 1996, cerca de 700 mil pessoas daquela procedência aportaram em Eretz Israel. Diferentemente das aliot anteriores, marcadas por um forte sentimento sionista e o desejo de viver em Israel, esta nova onda migratória foi mais uma conseqüência da crise da economia soviética e de sua instabilidade política do que de um surto de idealismo. A maioria dos imigrantes acabaram indo para Israel porque os Estados Unidos, em 1990, atendendo um pedido de Israel, adotaram uma política restritiva em relação à concessão de visto aos judeus soviéticos. Até aquele ano, cerca de 200 mil haviam saído da URSS com destino àquele país.
A chegada repentina de um número tão grande de olim provocara, em Israel, uma súbita escassez de moradia, fazendo dispararem os aluguéis na região central do país. O então ministro da Habitação, Ariel Sharon, implantou um programa emergencial de construção de moradias e, naquele ínterim, foram criados 430 parques para trailers pelo país, com um total de 27.000 trailers-moradia, para abrigar os novos imigrantes. Apesar das tentativas governamentais de instalar os imigrantes por todo o país, a distribuição geográfica acabou sendo definida pelo perfil e capacitação profissional de cada um. Enquanto os mais qualificados arrumaram empregos na região central de Israel, os mais destituídos e sem formação educacional instalaram-se nas cidades mais distantes.
Para solucionar a questão da geração de emprego e absorver o grande número de imigrantes altamente qualificados da ex-URSS, o governo israelense implantou, em 1991, o Programa de Incubadoras de Base Tecnológica. Sob o slogan “De idéias a novas empresas”, a iniciativa teve, também, como objetivo incentivar a inovação tecnológica no país e foi coordenada pelo Escritório do Cientista-Chefe, órgão ligado ao Ministério de Indústria, Comércio e Trabalho. Tendo implantado 24 incubadoras de norte a sul do país, após quase 20 anos, o programa é considerado uma “história de sucesso nacional” e uma iniciativa fundamental para o salto de crescimento que Israel viveu a partir de 1990 e que, sem dúvida, contou com a contribuição fundamental dos olim russos.
Também diferentemente dos imigrantes das décadas de 1960 e 1970, que procuraram integrar-se o mais rápido possível à sociedade israelense, osolim que vieram duas décadas mais tarde optaram por viver entre si, mantendo sua língua e sua cultura, criando uma espécie de enclave nas áreas onde se instalaram.
Nesse contexto de preservação da identidade cultural, formou-se o PartidoB’Aliyá, encabeçado por Natan Sharansky (que posteriormente foi ministro de Indústria, Comércio e Trabalho). Na primeira eleição em 1996, o partido obteve sete das 120 cadeiras da Parlamento. Mas, em 2003, conseguiu apenas uma. Em 1999, Avigdor Liberman criou um partido de extrema direita e elegeu quatro parlamentares. Cisões internas levaram o agrupamento a se unir a outro da mesma tendência, perdendo sua identidade russa. Vale ressaltar que, se por um lado, os russos tendem a ser mais liberais nas questões religiosas, politicamente se colocam mais à direita que o típico israelense, ainda mais quando se trata do conflito palestino-israelense.
Não há duvidas que os olim soviéticos tiveram papel preponderante no crescimento da economia e no desenvolvimento tecnológico de Israel, enriquecendo culturalmente o país. No entanto, a imigração soviética teve uma série de conseqüências que não haviam sido previstas pela Agência Judaica e tampouco pelas autoridades israelenses. Uma emenda feita à Lei do Retorno, segundo a qual todo judeu que faz aliá tem direito automático à cidadania, estendeu este privilégio também para aqueles que tinham ao menos um avô judeu. Devido ao alto índice de casamentos mistos na ex-URSS, um terço do total dos olim compunha-se de indivíduos que se encontravam nessa situação, e não eram considerados judeus pela Halachá,a Lei Judaica. Em meados de 2005, esse índice chegou ao elevado patamar de 59%.
Hoje, assim como ocorreu com as demais ondas migratórias em Israel, os russos de segunda e terceira geração em Israel estão-se integrando à sociedade israelense, agregando sua cultura ao vibrante mix de culturas que constituem o moderno Israel.