O ataque terrorista perpetrado pelo Hamas a 7 de outubro alvejava não apenas inocentes, numa barbárie histórica sem paralelo nas últimas décadas. O massacre mirava também um processo diplomático com potencial para redesenhar o Oriente Médio de maneira profunda e fazê-lo avançar em direção à paz: os Acordos de Abraão, atravessando recentemente o capítulo da acelerada aproximação entre Israel e Arábia Saudita.
Por Jaime Spitzcovsky
Dias antes da ação do terror, Shlomo Karhi, ministro israelense das Comunicações, discursou em Riad, capital saudita, num evento da União Postal Internacional, da ONU, e, no discurso em inglês, exaltou a aproximação entre os dois países, sustentando que “quando nações convergem em objetivos mútuos, os resultados podem ser monumentalmente transformadores”. Ao final da fala, o enviado de Jerusalém proferiu palavras em árabe, com sotaque tunisiano, que apontou ser sua língua materna.
O ministro do Turismo, Haim Katz, havia visitado Riad dias antes, também para uma conferência internacional. Tratou-se da primeira visita oficial de um integrante do governo israelense ao país com o qual não há laços diplomáticos.
O ataque do Hamas, celebrado pelo Irã, foi desferido em um cenário diplomático em que imperava a sentença de que a normalização das relações entre Israel e Arábia Saudita não correspondia mais a uma pergunta de “se”, mas de “quando”, diante do progresso da caravana regional em prol da paz.
Gestado há décadas, o realinhamento ganhou seu primeiro passo oficial com a assinatura dos acordos de paz entre Israel e Emirados Árabes Unidos e Bahrein, em novembro de 2020, numa cerimônia histórica na Casa Branca. Marrocos e Sudão, em seguida, aderiram à impactante iniciativa, responsável por fazer saltar de dois para seis o número de países árabes a reconhecer o Estado Judeu. Antes, apenas Egito, em 1979, e Jordânia, em 1994, haviam protagonizado tal atitude.
Os entendimentos com emiradenses e bareinitas jamais teriam ocorrido sem o sinal verde da Arábia Saudita, a líder regional. Com liderança financeira e religiosa no mundo árabe e muçulmano, a monarquia passou a reordenar seu modelo econômico, sua inserção global e flexibilizar seu rígido regime social nos últimos anos, com intuito de responder a mudanças globais e buscar solidificar a permanência da monarquia no poder, em particular com o início da etapa capitaneada pelo príncipe herdeiro, Mohammed Bin Salman.
Os primeiros sinais de revisão surgiram após o atentado de 11 de setembro de 2001, perpetrados pela Al Qaeda, do saudita Osama Bin Laden. Dos 19 terroristas, 15 eram oriundos da Arábia Saudita. Os Estados Unidos, aliado histórico de Riad, começaram a questionar a monarquia se o regime ultraconservador e suas práticas ortodoxas não contribuíam para formação de um caldo cultural de xenofobia a alimentar narrativas antiocidentais.
Além de lidar com tal pressão externa no começo de século 21, a Arábia Saudita começou também a testemunhar a aceleração da busca por fontes de energia limpas e renováveis. Começava então a chamada era pós-petróleo, definida também pela finitude do produto.
Numa tendência modelada não apenas por questões ambientais, EUA e aliados buscavam diminuir sua dependência em relação ao petróleo médio-oriental, temerosos de mais envolvimentos militares, além de diversos conflitos na região, como a Guerra do Golfo, em 1991.
Simultaneamente, as últimas décadas assistiram à aceleração das ambições expansionistas e nucleares do Irã, país persa de maioria xiita e rival histórico da Arábia Saudita, onde prevalece a vertente sunita do islamismo. O regime de Teerã ampliou as ações voltadas a expandir sua influência no Oriente Médio, um dos pilares ideológicos do regime criado em 1979 com a derrubada do xá Reza Pahlevi. Líbano, Iraque, Síria e Iêmen se transformaram em cenários prioritários para a estratégia iraniana, num desafio a outros líderes regionais, como Arábia Saudita e Egito.
Portanto, um acúmulo de pressões começou a empurrar o regime saudita no sentido de abandonar a posição histórica de um país bastante discreto no cenário diplomático global, dependente da indústria petrolífera e com uma aliança férrea com Washington. Some-se ao cenário desafiador uma transição geracional no comando da monarquia, com a chegada ao poder do príncipe herdeiro, que já governa o país há alguns anos.
O objetivo de consolidar o poder, modernizar a economia e enfrentar o desafio iraniano levou MBS, como é conhecido o líder saudita, a refazer a agenda de Riad. Passou, por exemplo, a considerar a aproximação com Israel como a possibilidade de trocar as disputas históricas por cooperação em áreas como tecnologia e investimentos.
Conhecida como Visão 2030, a estratégia saudita começou a provocar mudanças tectônicas no Oriente Médio. Bahrein e Emirados Árabes Unidos não desbravaram caminhos apenas na normalização dos laços com Israel, mas também na transição da economia petrolífera para o modelo diversificado, baseado também em serviços, como turismo e tecnologia.
“Creio que a nova Europa será o Oriente Médio”, declarou MBS numa conferência em 2018. “O próximo renascimento global será no Oriente Médio”, insistiu ele. Em outras palavras, o líder saudita pregava menos conflitos militares, mais cooperação econômica.
O novo mapa tirou a diplomacia saudita da bússola unidirecional, sempre voltada aos EUA. A China e a Rússia passaram a ocupar mais espaço no radar saudita, a tal ponto que o país foi convidado, poucos meses atrás, a aderir ao Brics, grupo do chamado “Sul Global”.
O convite foi feito também ao Irã. Os dois rivais regionais, Riad e Teerã, ingressavam juntos numa concertação diplomática, na lógica de priorizar os interesses econômicos em detrimento dos conflitos históricos. E o aceno ao Brics ocorreu pouco depois de sauditas e iranianos terem retomado relações diplomáticas, cortadas em 2016, numa cerimônia realizada em Pequim em março passado.
Apesar dos acenos à lógica econômica, o regime iraniano, principal apoiador do Hamas, voltou a demonstrar priorizar seu apego aos pilares da revolução de 1979, com objetivo de se manter no poder. O ataque terrorista de 7 de outubro foi concebido, entre outros, para sabotar a aproximação entre Israel e Arábia Saudita e para impedir o avanço de processos de cooperação no Oriente Médio. O Irã não deixa dúvidas sobre suas apostas na estratégia contra a paz.
Jaime Spitzcovsky colaborador da Folha de S.Paulo, foi correspondente do jornal em Moscou e em Pequim.