Angela Merkel aterrissou em Israel em outubro, em sua oitava e última visita ao país como primeira-ministra. Tratava-se de uma despedida diplomática, pois ela, uma das principais aliadas do Estado judeu no cenário internacional, optou pela aposentadoria política após 16 anos no comando do governo alemão.
Uma bússola moral da Europa”, declarou o anfitrião e premiê israelense Naftali Bennett, ao receber Merkel. Uma semana depois da recepção, mais um fato histórico: aviões israelenses e alemães sobrevoaram Jerusalém, em exercício militar conjunto.
Era a primeira vez, desde a 1ª Guerra Mundial, que os céus da capital israelense recebiam uma aeronave germânica. A iniciativa seguiu eventos de agosto, quando jatos de Israel sobrevoaram o campo de concentração de Dachau e a base aérea de Fuerstenfeldbruck, onde ocorreu um dos momentos mais trágicos do atentado terrorista responsável pela morte de 11 israelenses em 1972, nas Olimpíadas de Munique.
“O sobrevoo expressa a forte parceria e conexão entre as forças aéreas e os países, assim como o compromisso com a cooperação contínua no futuro”, afirmou o Exército de Defesa de Israel, em nota oficial sobre o exercício realizado em Jerusalém. E, além de pilotarem os jatos, os chefes da aeronáutica israelense e alemã, Amikam Norkin e Ingo Gerhartz, visitaram o Yad Vashem, Museu do Holocausto localizado na capital israelense.
O episódio militar despontou como um dos vários resultados do aprofundamento das relações entre Israel e Alemanha ao longo dos quatro mandatos de Angela Merkel, iniciados em 2005. Seus esforços para avançar e consolidar as relações bilaterais se espelham no fato de Berlim se tornar um dos principais interlocutores de Jerusalém no cenário global e o maior parceiro comercial do Estado Judeu na Europa.
Na última visita ao Yad Vashem como chefe de governo, Merkel declarou: “Os crimes contra o povo judeu aqui documentados são uma lembrança perpétua da responsabilidade que nós, alemães, carregamos”. E acrescentou: “Desejo usar esta oportunidade para enfatizar que o tema da segurança de Israel será sempre de importância central e um tópico central para todo governo alemão”.
Em suas declarações, Merkel ressaltou também os desafios inerentes a uma relação bilateral a carregar para sempre cicatrizes da tragédia do Holocausto. “Desperta em mim muita emoção”, afirmou ela sobre o fato de Israel confiar na Alemanha do pós-guerra, e admitiu que tal confiança precisa sempre ser reforçada, com iniciativas permanentes do lado alemão.
“Toda visita ao Yad Vashem me emociona profundamente”, declarou a primeira-ministra, que esteve diversas vezes no museu. Na última ocasião, percorreu as instalações acompanhada de Bennet e do rabino Yisrael Meir Lau, presidente do Yad Vashem e sobrevivente do Holocausto. Ele também foi um dos rabinos-chefe de Israel entre 1993 e 2003.
Em 2008, Merkel discursou na Knesset (Parlamento) no sexagésimo aniversário da independência de Israel. “A Shoá cobre a nós, alemães, de vergonha”, afirmou. “A ruptura com a civilização representada pela Shoá não tem paralelo... Eu acredito com muita firmeza que, apenas se a Alemanha aceitar sua responsabilidade pelo desastre moral em sua história, nós seremos capazes de construir um futuro humano”.
A primeira-ministra classificou ainda como “razão de Estado” para a Alemanha o comprometimento com a segurança de Israel. As palavras, ditas em alemão, ecoaram com força na Knesset, em cerimônia acompanhada pelo então primeiro-ministro Ehud Olmert. “Creio que ninguém mais poderia haver dito isso melhor do que Angela Merkel”, comentou ele. Num sinal de que as relações bilaterais ainda suscitam dúvidas e reações negativas em setores da sociedade israelense, cinco deputados boicotaram a sessão.
Controvérsias marcam os laços entre os dois países desde seu início, no pós-guerra. Em 1951, o então premiê alemão-ocidental, Konrad Adenauer, fez um famoso discurso, no qual propôs a reconciliação ao recém-criado Estado de Israel, à época governado por David Ben-Gurion. O arquiteto da independência e líder socialista acatou o gesto, apesar das reações negativas de importantes setores da sociedade israelense. Ben-Gurion apoiou sua argumentação em dois pontos. Primeiro, afirmou confiar na construção de uma Alemanha Ocidental democrática sob a liderança do democrata-cristão Adenauer. Apontou ainda a importância de o jovem país, cercado por vizinhança hostil, com necessidades de investimentos pesados em segurança e infraestrutura para receber ondas migratórias, contar com um leque amplo de aliados capazes de proporcionar apoio político, militar e econômico.
Em 1952, Israel e Alemanha Ocidental firmaram um acordo sobre indenizações, aprovado na Knesset, apesar de fortes resistências oriundas sobretudo de setores da direita, à época liderados por Menachem Begin. E, no final daquela década, armas enviadas por Bonn ajudaram a reforçar as Forças de Defesa de Israel. Relações diplomáticas plenas, no entanto, vieram apenas em 1965. Com a comunista Alemanha Oriental, que deixou de existir após a reunificação de 1990, tais laços jamais existiram.
Ben-Gurion e Adenauer deixaram, em seus legados, os pilares de uma cooperação baseada nas iniciativas de desnazificação, na responsabilidade histórica, no combate ao antissemitismo e no comprometimento com a segurança de Israel. E nenhum sucessor do pai da reconstrução alemã investiu tantos esforços no fortalecimento dos vínculos bilaterais como Merkel.
Seu padrinho político, Helmut Kohl, por exemplo, também permaneceu 16 anos no poder, mas visitou Israel apenas duas vezes. Premiês como Helmut Schmidt e Willy Brandt, ambos da social-democracia, chegaram a protagonizar momentos de crises nas relações bilaterais.
Merkel, da democracia-cristã como Adenauer, aprofundou a dinâmica bilateral. Explicações para esse empenho podem estar em sua biografia. Ao vencer as eleições de 2005, transformou-se em primeira chefe do governo alemão nascida após a 2ª Guerra Mundial.
A física transformada em política nasceu em 1954. Ela, portanto, buscaria liderar gerações do pós-guerra empenhadas em se afastar das atrocidades cometidas por seu país no Holocausto e na 2ª Guerra Mundial. Embora tenha nascido na Alemanha Ocidental, em Hamburgo, Merkel cresceu no lado oriental. Seu pai, um pastor protestante, optou por viver no regime comunista para realizar trabalho religioso. A filha mergulhou na política ao participar do desmonte da ditadura imposta pela União Soviética depois da guerra.
A primeira-ministra construiu, portanto, uma carreira política ligada à defesa de liberdades individuais e de direitos humanos. Para Merkel, o desenvolvimento das relações com Israel também seria uma extensão da sua agenda ideológica, formatada a partir das batalhas contra a tirania e a favor da democracia, no final da década de 1980.
No entanto, a tendência, nos últimos anos, de fortalecimento de discursos ultranacionalistas e de extrema direita, observada em vários países europeus, acabou chegando também à Alemanha. E, devido a tragédias do passado, a preocupação aumenta quando se fala em extremismo e intolerância alemães.
O governo alemão registrou, em 2020, 2.351 casos de antissemitismo, o maior número desde 2001 e 15% superior ao índice de 2019. Ativistas comunitários criticam autoridades federais e estaduais por falhas nos sistemas de segurança e, recentemente, Merkel aumentou o repasse de verbas governamentais para aumentar a segurança em edifícios da comunidade judaica.
Críticas a Merkel surgem também no universo comunitário judaico alemão e em setores da sociedade israelense devido à sua posição favorável à solução de dois Estados para o conflito israelo-palestino. Tal abordagem dificultava, por exemplo, o diálogo da primeira-ministra com Binyamin Netanyahu, quando ele governou Israel, entre 2009 e 2021.
Outro expoente da direita israelense, Naftali Bennett, hoje adversário de Netanyahu, enfatizou os pontos de convergência ao receber a visitante alemã. E, sem esconder as diferenças de opinião, chamou-a também de “querida amiga de Israel” e destacou a solidez dos laços alcançada ao longo de uma era política que se aproxima do final: o reinado de Angela Merkel.
Jaime Spitzcovsky colunista da “Folha de S.Paulo”, foi correspondente do jornal em Moscou e em Pequim.