Queiram os historiadores ou não; queiram os acadêmicos ou não; queiram os cientistas políticos, analistas, jornalistas e intelectuais ou não; queiram os antissemitas ou não; queiram os antissionistas ou não, mas o ressurgimento de um Estado Judeu em sua terra de origem foi um dos mais extraordinários acontecimentos históricos de todos os tempos.
O parágrafo acima não é uma calorosa exaltação em busca de aplauso, mas o rigor de uma sóbria verdade. Agora, quando o Estado Israel celebra os primeiros 70 anos de sua soberania, identificado com judeus mundo afora, deve-se tecer uma importante consideração. De todos os países que foram criados no planeta depois da 2ª Guerra Mundial, nenhum deles, nenhum mesmo, com pouco mais ou pouco menos de 70 anos de existência, alcançou como Israel um nível tão elevado na economia, na infraestrutura civil e militar, em múltiplas ciências, na tecnologia e na informática, nas artes e na cultura, na igualdade de gêneros, no bem-estar social e na prática da democracia.
Conforme se procede em toda sólida construção, a recriação do Estado Judeu contou com fundações e pilares, sendo estes constituídos por ações individuais e coletivas. A primeira fundação para o erguimento da morada ancestral do povo judeu foi fixada em agosto de 1897 quando da realização do Primeiro Congresso Mundial Sionista, na Suíça, sob a liderança de Theodor Herzl. A segunda fundação corresponde à emissão pelo império britânico da Declaração Balfour, de mais de cem anos atrás. Trata-se de uma carta elevada à condição de documento, tanto assertiva quanto evasiva, mas que causou impacto por dar legitimidade ao incipiente movimento sionista e, assim, promover a sua inserção no cenário internacional. Por isso até hoje suscita polêmicas, quase sempre redundantes. A terceira fundação se assentou na declaração também centenária, da partilha da antiga Palestina, em 1947, pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Mas, nessa crucial etapa ocorreu uma ainda irreparável fissura. Os países árabes rejeitaram a resolução. Impediram que os palestinos residentes no território que lhes caberia criassem seu próprio estado independente e, dessa maneira, deram origem ao conflito que há 70 anos perdura entre eles e Israel.
Nos pilares individuais avulta um homem excepcional e inigualável: Eliezer Ben Yehuda. Nascido Eliezer Perelman, na Lituânia, em 1858, ele foi o artífice do renascimento do idioma hebraico, naquele tempo restrito aos rituais litúrgicos. Sionista ardente desde a juventude, formulou um conceito tão simples quanto imbatível: se o sionismo de fato viesse a resultar numa nova nação judaica, era imperativo que incorporasse à sua ideologia um novo idioma, ou seja, o hebraico, antigo idioma dos patriarcas, profetas e reis do povo de Israel. Com vinte anos de idade, Ben Yehuda foi para Paris com a finalidade de estudar medicina. Porém, contraiu tuberculose e foi obrigado a abandonar a faculdade, ao mesmo tempo em que se juntou a um grupo de jovens sionistas. Ao lado deles e junto com a mulher partiu para a antiga Palestina em 1881. Instalou-se em Jerusalém e em sua casa só se falava hebraico. Seu filho, mais tarde o escritor Itamar Ben Avi, foi a primeira criança daquela época a ter o hebraico como idioma materno, fora poucos descendentes de antigas gerações de judeus que jamais emigraram da Terra Santa. Ao lado de outros intelectuais, Ben Yehuda fundou uma sociedade chamada Tehiat Israel (Renascimento de Israel) cujo ideário tinha uma consistente visão do futuro para a nova nação: expansão das atividades agrícolas, expansão da população produtiva, criação de raízes literárias a partir do ressurgimento do idioma hebraico, estímulo às pesquisas científicas e uma postura política tão nacional quanto universal. Ele começou a trabalhar na elaboração de um dicionário hebraico, mas foi expulso de Jerusalém pelas autoridades turcas, como um “inimigo nacional”, ao eclodir a 1ª Guerra Mundial.
Passou um ano nos Estados Unidos e regressou à Palestina em 1919. Participou, então, da criação da Academia da Língua Hebraica destinada a formular palavras em hebraico que se adaptassem às modernidades do cotidiano. No ano seguinte avistou-se com Sir Herbert Samuel, Alto Comissário britânico para a Palestina, convencendo-o de que a Palestina deveria adotar três línguas oficiais: inglês, árabe e hebraico. Essa proposta consumou-se num decreto dois anos depois. Nesse tempo Ben Yehuda trabalhava dezoito horas por dia em seu “Dicionário de Hebraico Antigo e Moderno” que foi concluído por sua viúva e seus filhos, sendo publicado em 1959 com um total de 17 volumes. No prefácio do dicionário, escreveu: “É como se os céus se tivessem subitamente aberto; uma luz brilhou perante meus olhos e uma poderosa voz interior me disse que haveria uma nova língua numa nova pátria”. Sua obsessão frutificou após cerca de 30 anos, chegando ao ápice de S.Y. Agnon, escritor no idioma hebraico, ter sido agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1966. Eliezer Ben Yehuda faleceu no dia 16 de dezembro de 1922, em Jerusalém.
Um dos pilares coletivos da recriação de Israel tem como protagonista o ishuv, ou seja, os judeus que se radicaram em Eretz Israel (Terra de Israel) ou ali nasceram durante a ocupação otomana ou no Mandato Britânico, e antigos residentes. Um relatório publicado pela autoridade imperial inglesa, datado de 1922, é da maior relevância: “Durante as últimas duas ou três gerações os judeus criaram uma comunidade composta por 80 mil habitantes, dos quais um quarto se dedica às atividades agrícolas. Esta comunidade tem suas próprias instituições: uma assembleia que trata dos assuntos internos; conselhos eleitos em quase todas as cidades; um Rabino Chefe incumbido das questões religiosas junto com conselhos rabínicos regionais; um órgão controlador das escolas; os negócios são conduzidos no idioma hebraico; há veículos de imprensa no mesmo idioma e um intenso movimento intelectual. A atividade econômica desta comunidade é crescente”.
O ishuv se dividia informalmente em duas entidades que atuavam em conjunto. De um lado, os responsáveis eleitos para a administração pública com a tarefa de preservar e ampliar a ordem social e econômica. De outro, a Organização Sionista inserida no âmbito da Agência Judaica, oficialmente reconhecida pelos mandatários como a única representante dos judeus da Palestina. Ambas tinham como objetivo o renascimento da nação judaica. Na verdade, naquela quadra dos acontecimentos, os judeus já sedimentavam a estrutura de um país mesmo sem possuir um país. O ishuv se configurava como uma democracia parlamentar, abrigando uma assembleia nacional eleita para um mandato de quatro anos. Essa eleição estendeu o direito de voto às mulheres, uma raridade no mundo da segunda década do século 20. Havia também um poder executivo e um sistema judiciário.
Este surpreendente cenário de organização social e econômica continha radicais controvérsias políticas que, de forma esquemática, podem ser rotuladas como esquerda, centro e direita, a par de um bloco religioso. Essas controvérsias permaneceram até a recriação de Israel e se desenvolvem até os dias atuais nos mesmos formatos e intensidade. Dentre os legados do ishuv,um dos mais importantes é a fundação, em 1920, da Histadrut, a Federação dos Trabalhadores Judeus da Palestina, depois dos Trabalhadores de Israel. Com quase cem anos de idade é uma das organizações sindicais mais bem-sucedidas do mundo em função da abrangência de suas atividades.
Outro pilar coletivo muito importante corresponde à equipe de agentes do ishuv que ocupou diversos aposentos de um hotel situado no número 60 da rua 14 Leste, em Nova York. Era um grupo de rapazes empenhados na tarefa de comprar armas e munições para o estado que seria criado. Contido, tratava-se uma operação secreta, obrigada a despistar o FBI, porque a legislação americana aceitava vender equipamentos excedentes da 2ª Guerra Mundial, porém proibia que fossem destinados a quaisquer outros países. Entre sustos sofridos por causa da vigilância das autoridades americanas e missões bem finalizadas, a ação desses agentes do “Hotel 14”, conforme chamavam seu quartel-general, foi fundamental para abastecer o futuro exército de Israel. A par do que ocorria em Nova York, um homem extraordinário, chamado Al (Adolf) Schwimmer, agia na Califórnia. Nascido no Brooklyn, Nova York, em 1917, foi piloto da Força Aérea dos Estados Unidos durante a 2ª Guerra Mundial. Judeu convicto, procurou por iniciativa própria o pessoal do “Hotel 14”.
Custou a ganhar a confiança dos agentes até conseguir convencê-los de que o novo país não teria chance alguma de combater os árabes se não contasse com um mínimo de capacidade militar no ar. Foi mandado para a Califórnia onde, após artimanhas e superando complicadas burocracias, comprou antigos aviões de diversos portes. Em seguida, recrutou um grupo de pilotos judeus, também veteranos de guerra, e cumpriu a proeza, contrariando as leis americanas, de fazê-los voar primeiro para o México, uma escala no Panamá, outra escala e reabastecimento no aeroporo de Natal, no Brasil, novos reabastecimentos na África e na Europa, até concluir a viagem em Lidda, perto de Tel Aviv.
A ação de Schwimmer resultou nos primórdios da Força Aérea de Israel, que cumpriu missões decisivas para assegurar a vitória judaica na Guerra da Independência, com destaque para uma delas, em julho de 1948, quando os pilotos de Schwimmer dizimaram uma coluna de blindados egípcios que se aproximava de Tel Aviv.
Al Schwimmer regressou para os Estados Unidos no ano seguinte. Foi acusado como transgressor do Ato de Neutralidade Americano, por ter contrabandeado aeronaves para fora do país. Teve cassado seu direito de voto, dos benefícios como veterano de guerra e condenado a pagar uma multa de 10 mil dólares, mas sem pena de prisão. Sugeriram-lhe que tudo seria relevado se pedisse um perdão oficial ao presidente. Ele se recusou. Disse que, como judeu, ajudar a criação do Estado de Israel era uma obrigação moral; quanto ao contrabando, argumentou que se tratava de uma desobediência civil também baseada em princípios morais. Em 1950, voltou para Israel atendendo a um chamado de Ben Gurion que o incumbiu de instalar a Israel Aerospace Industries (Indústrias Aeroespaciais de Israel), até hoje uma referência mundial nessa modalidade. Schwimmer foi o diretor-executivo desta empresa durante meio século e, nos anos 1980, atuou como conselheiro industrial e de tecnologia do primeiro-ministro Shimon Peres de quem se tornou íntimo amigo. Em 2001, recebeu um perdão oficial do presidente Bill Clinton e, em 2006, o prestigioso Prêmio Israel. Faleceu em 2011, aos 94 anos de idade, em sua residência em Ramat Gan. Se a expressão “pai da pátria” deixar seu conceito abstrato e buscar um exemplo concreto, há de encontrá-lo de sobra na figura de Al Schwimmer.
No dia 13 de maio de 1948, Ben Gurion estava reunido em Tel Aviv com seu Estado Maior, o Conselho responsável pelos destinos do futuro país. Seus integrantes estavam acabrunhados por causa do massacre sofrido pela população judaica da localidade de Etzion. Ben Gurion, entretanto, foi enfático: “A catástrofe de Etzion não me abala. Eu já esperava derrotas e receio que ainda enfrentaremos maiores dificuldades. Tudo mudará quando conseguirmos derrotar a maior parte da Legião Árabe. É pelas armas que resolveremos todos os problemas”. Parecia um exagero, mas aquelas palavras empolgaram o Conselho, pessimista em face da evidente fragilidade da força militar com que contavam. Em seguida surgiram indagações cruciais. Onde e como proclamar a independência? No palco e plateia do Teatro Habima ou no Museu de Tel Aviv? Alguém disse que embora o Habima fosse maior, o local oferecia pouco sigilo e pouca segurança. Optou-se pelo Museu. Mas, qual seria o nome do país? Como seria redigida a declaração de independência? Alguns membros do Conselho propuseram Estado Judeu. Outros, simplesmente Sion. Até que houve consenso: Israel. Seguiu-se outro debate: como incluir as fronteiras do novo país na declaração, já que estas ainda estavam indefinidas? Mais uma vez prevaleceu a voz de Ben Gurion: “Leiam a declaração de independência dos Estados Unidos. Verão que nela não há uma só alusão a fronteiras territoriais. Depois que derrotarmos os árabes poderemos precisar nossas fronteiras”. Na votação referente à questão das fronteiras, cinco conselheiros foram contra a definição, quatro a favor e quatro se abstiveram. A reunião terminou de madrugada, ficando decidido que um pequeno grupo, liderado por Moshe Sharret, se encarregaria de redigir a declaração.
Neste mesmo dia 13 de maio, enquanto os mandatários ingleses fechavam suas bagagens para uma viagem sem retorno, a população de Tel Aviv era uma só ansiedade por conta das expectativas desdobradas nas semanas recentes e sem saber como, quando e aonde começariam os preparativos para o histórico evento da proclamação da independência. Sabia-se, tão somente, que aconteceria assim que o último militar inglês deixasse o porto de Haifa. Havia um grande sentimento de pressa por causa de um prazo fatal: o Shabat (sábado sagrado) no entardecer do dia seguinte.
Os convites para a cerimônia começaram a ser distribuídos por mensageiros na manhã do dia 14, sendo endereçados a entidades e instituições, sem menção a pessoas: “Temos a honra de convidá-lo para assistir à cerimônia da declaração de Independência que será realizada no dia 5 de Yiar de 5708 (14 de maio de 1948), às 16 horas, no salão do Museu de Tel Aviv, Boulevard Rothschild, número 16. Pedimos que mantenha em sigilo o conteúdo deste convite quanto à hora e ao local. Os convidados deverão estar no Museu às três e meia da tarde. Atenciosamente, o Secretariado. Este convite é pessoal. Traje: social escuro”.
O secretariado era na verdade um só secretário, Zeev Sharef, diretor administrativo da Agência Judaica. Em condições normais o convite deveria ser assinado por Ben Gurion, mas o tempo era exíguo. Ben Gurion não gostou do texto que lhe foi submetido pelo grupo de Sharret. Achou que aquele primeiro rascunho se perdia em excessos de diplomacia e ele preferia algo mais contundente, mais conciso e mais objetivo. Fez as alterações que julgou necessárias e mandou o texto para Zeev Sharef, recomendando que fosse feito um bom número de cópias para serem posteriormente entregues à mídia. Mas, não era possível guardar um segredo de tal magnitude. Os jornais matutinos do dia 14 publicaram que a Kol Israel, emissora oficial de rádio, transmitiria a sessão da independência ao vivo, às quatro da tarde. A polícia começou a isolar a cercania do Museu uma hora antes. Isto serviu para atrair a curiosidade da população que ali logo começou a se aglomerar.
De manhã cedo, Sharef havia convocado o designer Abraham Rifkind que, dois anos antes, tinha preparado um salão na Basiléia para a realização do 22o Congresso Mundial Sionista. Rifkind revelou numa entrevista, anos depois, que a sua primeira ideia era que a declaração fosse escrita num rolo de pergaminho, tal como a Torá. Para isso buscou um escriba na comunidade ortodoxa de B’nei Barak, mas este declinou, dizendo que não daria tempo de terminar até as quatro da tarde porque cada vez que escrevesse o nome de D’us seria obrigado a cumprir o ritual de se levantar e lavar as mãos. Em seguida, Rifkind chamou um artista plástico seu amigo, deu-lhe uma sofrida quantia em dinheiro, para que ele comprasse os materiais e elaborasse adereços condizentes com a solenidade que aconteceria no salão do Museu. Recomendou que o amigo não comprasse tudo numa só loja, para não levantar suspeitas. No Museu os funcionários foram dispensados com ordem para regressarem às 15 horas, sem terem a menor noção do que iria acontecer. No salão, o artista contratado trabalhava com um carpinteiro, um pintor e também decorador, uma costureira e uma faxineira para polir o assoalho. De início, mandou fazer bandeiras de diversos tamanhos. Eram panos brancos com duas linhas paralelas em azul e, no meio, uma estrela de David da mesma cor. Não eram bandeiras oficiais porque a verdadeira só foi adotada pelo governo em outubro do mesmo ano. Aquelas ali confeccionadas se destinavam a cobrir esculturas e pinturas com nus artísticos, pouco apropriados para o local e para a ocasião. Enquanto isso, Rifkind procurava um pergaminho no qual seria escrita a declaração e uma fotografia de Herzl que deveria ser colocada acima da mesa principal. Encontrou numa loja da Rua Dizengoff, onde encontrou um papel sintético, tipo pergaminho, que parecia genuíno e deu-se ao preciosismo de levá-lo para análise no Instituto de Padrões. Só sossegou quando lhe garantiram que o papel poderia durar alguns séculos. Obteve fotografias em tamanho pequeno de Herzl e a maior de todas, em bom estado, carecia no seu entender de imponência. Assim, mandou fazer uma grande molduranegra de modo a aumentar a percepção visual da fotografia.
O pergaminho contendo o texto da declaração estava nas mãos de Sharef no escritório da entidade Keren Kayemet, em Tel Aviv, de onde ele providenciava táxis para os líderes sionistas que deveriam comparecer à cerimônia. Só se esqueceu dele mesmo e da mulher que o acompanhava.
Os dois ficaram isolados no meio de uma rua e sem a menor chance de obter uma condução. Aflito, procurou um policial e pediu-lhe que parasse um táxi. Um motorista obedeceu, mas se recusou a transportar o casal: “Desculpe, mas eu tenho que estar em casa às quatro horas para ouvir no rádio a declaração da Independência”. Ao que Sharef respondeu: “Se você não nos levar até o Museu não vai ouvir nada porque a declaração está aqui comigo”. O taxista partiu em disparada e, como sempre, nessas horas os contratempos se acumulam. Por causa do excesso de velocidade, um policial mandou o táxi parar e já ia aplicar a multa quando Sharef se deu conta da poderosa realidade que Eretz Israel estava vivendo naquele momento: “Os ingleses foram embora e aqui ainda não há um governo. Quem vai cobrar essa multa?”
Pouco antes das quatro da tarde, dezenas de automóveis começaram a afluir ao Museu, com prioridade para os signatários da declaração, entregue por Sharef a Ben Gurion, o último a chegar, acompanhado da mulher, Paula. Mostrava impetuoso vigor a caminho de 62 aos de idade, a serem completados em outubro. Foi saudado por aplausos das pessoas junto ao Museu. Por causa do sol forte e dos flashes dos fotógrafos, Paula tropeçou na escada e caiu, machucando a vista. Por isso passou todo o tempo da cerimônia com um copo de água gelada na mão e nele mergulhando um lenço que, em seguida, levava ao olho direito. Às 16 horas em ponto, Ben Gurion começou a ler a declaração. Foram 17 minutos no decorrer dos quais leu 979 palavras no idioma hebraico. Em seguida, chamou o rabino Yehuda Fishman, de 74 anos, trazido de Jerusalém para Tel Aviv, num pequeno avião, porque a estrada entre as duas cidades já estava bloqueada pelo exército da Jordânia. O rabino recitou, embargado pela emoção: “Bendito seja D’us, Rei do Universo, que nos manteve, nos conduziu e nos trouxe até este dia”.
Finda a oração, Ben Gurion anunciou o primeiro decreto que seria emitido pelo novo país: estava anulado o White Paper, o documento de 1939 que impedia a entrada de judeus na sua própria terra. Tinha acabado de renascer, com plena soberania, o Estado de Israel, pátria dos judeus. As manifestações de júbilo exalavam por todo o país, mas Ben Gurion sequer sorria. Avaliava o débil potencial militar de que a nova nação dispunha e cedia ao pessimismo. À noite, em casa, disse para Paula: “Sou um consternado entre os exultantes”.
Em seus 70 anos de vida, entre conflitos menores e nem por isso desprezíveis, Israel enfrentou duas grandes guerras que traumatizaram o país: a dos Seis Dias, em 1967, e a do Yom Kipur, em 1973. Sobre a Guerra dos Seis Dias circulam dezenas de livros e milhares de ensaios, entrevistas e reportagens. Há uma corrente de analistas, jornalistas e escritores que sustentam que este conflito mudou o perfil sociológico do país, na medida em que os israelenses tomados pela euforia da vitória em três frentes de batalhas e em tão pouco tempo, passaram a se superestimar e até mesmo a cultivar arrogância. É pouca verdade.
Cheguei a Israel no sétimo dia da guerra, no primeiro voo que partiu de Paris para Tel Aviv. Presenciei, sim, grandes manifestações de alegria dos soldados que voltavam para suas casas nos mais diversos veículos militares. Vi bandeiras de Israel ornamentando fachadas, janelas e varandas em Tel Aviv e Jerusalém. Porém, também vi os jornais com dezenas de páginas de anúncios fúnebres, nos quais mulheres choravam as mortes de maridos, pais choravam as mortes de filhos e filhos choravam as mortes de pais. Vi, também, o país inteiro angustiado com o pidion shvuim, o resgate dos prisioneiros de guerra. O povo judeu de Israel não havia perdido seu senso de humanidade e solidariedade.
Fiz a cobertura jornalística da Guerra do Yom Kipur, que praticamente acompanhei desde o início, tendo permanecido, então, 40 dias em Israel. Como Ariel Sharon, general de carreira e depois primeiro-ministro, ainda é uma personalidade controvertida, as paixões ideológicas, tanto dentro como fora de Israel, relutam em conferir-lhe o papel vital que ele desempenhou naquele conflito. Não é exagero afirmar que Sharon salvou Israel de uma catástrofe, quando atravessou com suas tropas o canal de Suez e se posicionou na direção do Cairo depois de capturar a cidade egípcia de Suez. Aquele foi o momento de maior perigo vivido pelo Estado de Israel desde a sua fundação.
A propósito da travessia do canal de Suez, tomei conhecimento dessa audaciosa manobra militar através do porta-voz do exército com o qual mantinha bom relacionamento. Ele me disse que não divulgaria a notícia de imediato porque ainda lhe faltavam dados mais precisos e deu-me um conselho: “Vá até o Hospital Hadassah, em Jerusalém, para onde foram levados soldados feridos na travessia. Conversando com eles, você terá uma boa ideia de como tudo aconteceu”. Na mesma hora rumei para o Hadassah, onde fui recebido pelo diretor de relações públicas que me abriu todas as portas para as entrevistas que precisava fazer. Eu já estava para ir embora, por volta de seis horas da tarde, com pressa para escrever a matéria, quando aquele funcionário me parou: “Espere um pouco porque o Danny Kaye está vindo aqui para entreter os soldados”. O grande comediante e astro do cinema chegou visivelmente cansado porque já tinha estado em outros hospitais, de norte a sul do país, cumprindo a missão voluntária de levantar o moral dos militares fora de combate. Minha adolescência tinha sido enriquecida pelos filmes estrelados por Danny Kaye (verdadeiro nome Daniel Kaminsky nascido no Brooklyn em 1911) e foi emocionado que apertei sua mão. Passei a percorrer o hospital ao seu lado. Ele parava junto a um leito onde havia um soldado ferido e dizia: “Vou falar com teu médico para te mandar para casa depois de amanhã”. Ou então, para outro: “Quando você tirar essa bandagem da cara vai ficar irresistível”. Até que paramos junto a um leito no qual estava deitado um rapaz de uns vinte anos, sem o braço direito e sem a metade da perna esquerda. No primeiro momento, era uma visão tão dolorosa, que o Danny Kaye não soube o que dizer. Foi o jovem quem falou: “Danny Kaye, que grande surpresa! Você é um artista que eu adoro! Desculpe, mas sou obrigado a lhe dar a mão esquerda”.
Zevi Ghivelder é escritor e jornalista