A organização Beit Halochem foi criada em 1949 sob o lema “Os feridos da TZAHAL são os filhos de todo o povo judeu”. O intuito da organização é ajudar a reabilitação e reintegração de soldados feridos em combates, e nos últimos anos passou a atender também as vítimas dos atos de terror. No momento, há mais de 50 mil veteranos em tratamento nas várias instalações do Beit Halochem.
Em 2014, o governo de Israel determinou a criação do Dia Oficial de Reconhecimento aos Soldados Feridos nas Guerras e às Vítimas do Terror, a ser lembrado, anualmente, no mês de dezembro. A proposta foi apresentada pelo primeiro-ministro Binyamin Netanyahu. Em hebraico Yom Haokará, a data tem como objetivo reverenciar aqueles que pagaram um alto preço em defesa da pátria. Em um país com dezenas de milhares de feridos nas guerras travadas com seus vizinhos e em atos de terrorismo desde a luta por sua independência, esse dia assume uma importância singular.
Na ocasião da aprovação do Yom Haokará, Netanyahu afirmou que esta é uma forma de Israel reconhecer os veteranos feridos nas Guerras e civis feridos durante os ataques terroristas, trazendo a público suas histórias pessoais e de suas famílias, sua luta diária para se reconstruir e readaptar a uma nova situação diante dos desafios impostos pelas suas cicatrizes físicas e emocionais. “Eu sei que vocês lidam, diariamente, com as feridas de seus corpos e de suas almas. Mas saibam que não estão sozinhos. Sintam-se abraçados por todos os cidadãos de Israel, que têm consciência do preço que vocês pagaram por cada um de nós.”
A preocupação com os feridos nas lutas de Israel pela sua existência é muito anterior a 2014. Entrou na pauta nacional em 1949, logo após a Guerra da Independência, quando foi criada a organização Beit Halochem de Veteranos de Guerra de Israel (Zahal Disabled Veterans Organization-ZDVO), com o objetivo de atender os 3.400 soldados que, então, necessitavam de reabilitação ampla.
Ao longo dos anos, a ZDVO criou uma infraestrutura voltada a oferecer o que há de mais avançado para a recuperação e readaptação das vítimas e seus familiares. Logrou-se conseguir bons resultados com o uso de modernos equipamentos e equipes multidisciplinares, como que a demonstrar que a Tzahal – denominação em hebraico das Forças de Defesa de Israel (FDI) – é a própria sociedade civil israelense.
“Este ponto é fundamental”, diz Avi Gelberg, presidente da Associação dos Amigos do Beit Halochem São Paulo. É o que torna o Exército israelense singular. “Se houver uma guerra, quem vai para a frente de combate são nossos filhos, por isso, o Estado e a sociedade sentem-se responsáveis pela recuperação e reintegração dos soldados feridos. Eles arriscam a vida protegendo o país e seus habitantes. Esta foi a razão da criação do Beit Halochem, para ser o lar daqueles que precisam de acolhimento e de ajuda para reconstruir sua vida.”
Em Israel, todo jovem, ao completar 18 anos, deve se alistar nas FDI, diferentemente da maior parte dos países do mundo, nos quais, com esta idade, os jovens estão se preparando para entrar nas universidades. O serviço militar para os homens tem a duração de três anos e para as mulheres, dois. Em momentos de guerra, eles são os primeiros a entrar em combates. São a linha de frente na defesa do Estado Judeu. Assim tem sido desde a luta pela independência. A realidade de Israel está ligada a guerras e à incansável luta por sua existência e segurança. Com o decorrer dos anos diminuíram as guerras tradicionais, aumentaram os atentados terroristas e os ataques com mísseis nas fronteiras sul e norte do país. Os civis também passaram a fazer parte dessa linha de frente, levando ao aumento do número de feridos e somando-se aos soldados atingidos durante o serviço militar ativo ou da reserva.
O Beit Halochem possui atualmente cinco centros de reabilitação em Israel, em terrenos que variam de 5.500 a 10 mil metros quadrados, instalados em Jerusalém, Tel Aviv, Beer Sheva, Nahariya e Haifa. Em breve será inaugurada mais uma unidade em Ashdod com capacidade para 6.700 veteranos. Todos os núcleos possuem instalações adaptadas para as mais diferentes necessidades físicas e psicológicas dos pacientes, incluindo ginásios poliesportivos, piscinas olímpicas, auditórios, salas para terapia ocupacional, fisioterapia e outros.
O Ministério de Defesa é parceiro do Beit Halochem há mais de 70 anos e contribui para a assistência médica, indenização e moradia das vítimas. A completa reabilitação física, mental e social, no entanto, é fundamental para o sucesso desse longo processo de reconstrução da vida. Apoiar os soldados durante este processo é prioridade para a sociedade israelense, pois nem sempre a luta acaba no campo de batalha, há um longo caminho pela frente. Centenas de pessoas procuram as diferentes unidades anualmente. Como disse um veterano, “é uma das poucas organizações que reza para que não aumente o número de seus membros”.
A organização atua no sentido de incentivar os feridos a retomar uma vida normal e reinseri-los na sociedade através de programas terapêuticos, esportivos, recreativos e artísticos. Protege os direitos legais dos soldados feridos e promove seus interesses através de medidas econômicas e sociais; incentiva a descoberta de novas habilidades, competências e atividades que promovam a autoestima e a capacidade de superação pessoal e profissional. Estimula o convívio familiar através de atividades e celebrações coletivas, além de encontros entre feridos de gerações de veteranos para a troca de experiências. Promove, ainda, uma série de atividades nas escolas, movimentos juvenis e outros núcleos no intuito de aproximar a realidade dos veteranos da sociedade como um todo.
Ao longo dos anos, as unidades do Beit Halochem tornaram-se tão essenciais para o processo de reabilitação que, muitas vezes, os pacientes após tratamentos iniciais e cirurgias, são enviados diretamente dos hospitais para um dos centros para que possam dar início à sua recuperação, assim como à adaptação de suas famílias à nova realidade. Além dos profissionais, cada unidade do Beit Halochem conta com voluntários veteranos, muitos deles ex-pacientes, que procuram fazer de sua experiência um estímulo para aqueles, geralmente jovens, que pensam ter perdido suas chances de uma vida plena tanto em termos pessoais como profissionais.
São também organizadas excursões, além de atividades que conectam grupos de veteranos aposentados com os mais jovens. O senso de comunidade é palpável. Muitos dos que estão em tratamento trazem seus filhos ou netos, que podem usufruir da creche enquanto eles são atendidos. Ninguém, no entanto, pernoita nos centros, pois o objetivo principal do Beit Halochem é reintroduzir os veteranos feridos na sociedade e encorajá-los a fortalecer seus vínculos sociais e familiares. A única exceção é o Beit Kay Nahariya, construído em 1958 em um terreno doado por Vera Weizmann, que funciona como um Centro de Repouso e Recreação para os veteranos feridos e suas famílias.
As unidades não são abertas ao público em geral, apenas para os atendidos e seus familiares. “Eu me sinto em casa, pois aqui não recebo olhares espantados ou de piedade. Sinto-me igual a todos e isto me faz renascer dentro de minhas possibilidades”, relata um veterano.
Reaprendendo a viver
Anat Yahalom era comandante de uma unidade no Deserto do Sinai até 6 de outubro de 1973, no início da Guerra de Yom Kipur, quando aviões egípcios sobrevoaram o Canal de Suez, bombardeando sua base. Tudo colapsou. Ela foi ferida gravemente e os médicos tiveram que ressuscitá-la duas vezes, enquanto era levada de helicóptero para o hospital. Declarada morta durante o trajeto, ela foi trazida de volta mais uma vez à vida. Sua perna esquerda precisou ser amputada até a altura do joelho e substituída por uma sofisticada prótese. Passou dez dias em uma Unidade de Terapia Intensiva e, em alguns momentos, os médicos não acreditavam que fosse sobreviver.
Ao acordar soube que o comandante de sua unidade e todos seus amigos da base estavam mortos. Ela conta que seus primeiros pensamentos foram: “Perdi parte de meu corpo, perdi meus amigos... Por que eu deveria lutar pela minha vida? Por que devo viver? Quero apenas morrer em paz como meus amigos”.
Anat passou um ano no hospital, enfrentou várias cirurgias nos Estados Unidos, algumas sem sucesso – no total, foram 27 operações ao longo de anos. Ao receber a primeira alta, os médicos lhe entregaram uma cadeira de rodas e disseram: “É sua. Eu entendi exatamente o que eles queriam me dizer. Esta cadeira é onde você passará o resto de sua vida”. No entanto, sua grande fé em D’us fez com que acreditasse que não lhe cabia decidir se viveria ou morreria. Quando lhe disseram que ela nunca mais andaria e nunca teria filhos, disse a si mesma: “Eu sei que vou dançar novamente”.
Anat lembra nitidamente o dia em que retornou de uma cirurgia nos EUA. Chegou em Israel acompanhada por uma equipe médica que iria levá-la ao hospital. Seu namorado, Rafi, foi buscá-la no aeroporto. Rafi viu os médicos e perguntou onde estava Anat, pois ela estava sendo esperada para um casamento. Os médicos lhe disseram que Anat deveria ir imediatamente para o hospital. Rafi então respondeu que a levaria depois, pois o casamento seria o deles. Os médicos lhe perguntaram se ele sabia que as chances de sobrevivência de sua futura esposa eram mínimas e ela precisaria de cuidados especiais pelo resto da vida, não podendo inclusive ter filhos. Rafi apenas lhes disse que eles não conheciam Anat, não sabiam de sua determinação e do que ela seria capaz de superar. Após seu casamento, Anat retornou ao hospital.
Anat não esquece o dia em que uma amiga lhe falou, pela primeira vez, sobre a existência de Beit Halochem. Era uma veterana que também perdera um de seus membros. Quando chegaram à unidade, ela se sentou à beira da piscina e, olhando para a água cristalina, começou a chorar, pois, com uma perna apenas, não poderia nadar, algo que tanto amava. Outra veterana que também estava na piscina, ao vê-la chorar, disse-lhe que ela precisava nadar e acrescentou: “Pois, se precisa chorar, então chore na água. Ninguém vai perceber. Ali você pode gritar e chorar, mas também pode cantar”. Ela então comprou um maiô e levou sua tristeza para a água. A partir de então, tudo começou a mudar em sua vida. A veterana que a aconselhara, que também perdera uma perna, tornou-se campeã paraolímpica de corrida.
Anat contradisse todas as expectativas dos médicos. Casou-se com seu namorado de juventude e teve três filhos. Nada regularmente e, depois de dois anos, já andava de muletas, inicialmente com a ajuda de seu marido. Atualmente, ela anda sozinha e ninguém, ao vê-la nadando, caminhando e proferindo palestras em Israel e no exterior, pode imaginar os dez anos de agonia e imobilidade que enfrentou para chegar onde está. Foi representante da Agência Judaica na África do Sul, criou vários programas para jovens e é professora de arte na Galileia, entre outras atividades.
Anat começou a praticar ciclismo em equipamentos adaptados e criou um grupo para mulheres com necessidades especiais, completando o percurso desta modalidade na maratona em Nova York. Repete sempre que grande parte de sua recuperação se deve ao apoio que recebeu da comunidade de veteranos. “Juntos nós podemos enfrentar e vencer qualquer desafio. Se você se isola, então fica para trás e sua vida não avança. Neste processo de reabilitação e reintegração, o Beit Halochem é um pilar central, principalmente pelos vínculos criados entre as pessoas nos centros de tratamento. Se você falta alguns dias, rapidamente alguém lhe telefona perguntando, ‘onde você está, o que houve? por que não veio hoje? Venha, vamos fazer algo juntos’. O isolamento é muito nocivo e depressivo para quem precisa se recuperar”. A história de Anat, sua determinação em não se entregar ao desespero, acreditar em si mesma e sua espiritualidade fizeram com que ela recebesse um prêmio do governo israelense como exemplo de sucesso em reabilitação.
Em dezembro de 2020 Anat participou de uma live organizada pela Associação dos Amigos do Beit Halochem São Paulo para marcar o Dia Oficial de Reconhecimento aos Soldados Feridos nas Guerras e Vítimas do Terror, ao lado da ex-ministra da Justiça de Israel, Ayelet Shaked. Como entrevistador, ao lado de Avi Gelberg, André Lajst, diretor da ONG Stand With Us.
A história do Beit Halochem está sendo escrita e reescrita diariamente através da trajetória de todos que passam pelas suas unidades e que fazem de sua própria experiência um incentivo para os que, por trágicas circunstâncias, precisam da organização. O trabalho realizado pela instituição conta com o apoio de diversas associações de Amigos do Beit Halochem no mundo, visando conscientizar a Diáspora da importância de sua existência e do papel que desempenha na sociedade. A organização é chamada também de “Startup da Reabilitação”.