Dono de uma personalidade vulcânica, uma determinação e competência inigualáveis, sua obsessão era a cidade de Jerusalém. Como disse Uri Lupolianski, atual prefeito da cidade: ‘Teddy era Jerusalém e Jerusalém era Teddy’.
Certa madrugada, quando era prefeito de Jerusalém, Teddy Kollek chegou em casa às duas horas da manhã e encontrou um recado de sua mulher, Tamar. Uma senhora tinha batido em sua porta à uma e meia para reclamar de um buraco existente há trinta dias, na calçada em frente à sua casa. Kollek, que sempre mantinha seu nome e endereço na lista telefônica, ligou para a tal pessoa às três e meia e disse que o conserto da calçada seria sua primeira providência ao nascer-do-sol. E, antes do meio-dia, lá estava ele no local, para verificar se o trabalho estava sendo executado. Em outra ocasião, ele passava de automóvel quando viu uma turista arrancando uma flor do canteiro central de uma avenida. Parou o carro e dirigiu-se a ela, aos berros: "Você sabe o que está fazendo? Você sabe o mal que está causando?" Apavorada, a mulher respondeu: "Mas é apenas uma flor..." Ao que Teddy retrucou, ainda colérico. "E você já imaginou o que seria de Jerusalém se cada turista arrancasse apenas uma flor?" Em centenas de ocasiões ele podia ser visto às seis da manhã, percorrendo as ruas de Jerusalém com um bloco de anotações, assinalando quais consertos eram necessários, onde faltavam árvores e onde o lixo não havia sido recolhido. Acessível a todos, também era capaz de perder a paciência e, mais de uma vez, acabou dando um cascudo em quem o importunava demais. Assim, criou em torno de si uma aura de autenticidade jamais alcançada por qualquer outro homem público em Israel.
Teddy Kollek foi um autêntico Pai da Pátria de Israel e exerceu essa paternidade com energia, determinação, inteligência e irresistível charme pessoal, antes ainda que a pátria existisse. Quando ele morreu em janeiro deste ano, aos 95 anos de idade, disse Uri Lupolianski, atual prefeito de Jerusalém: "Teddy era Jerusalém e Jerusalém era Teddy". É muito, mas é pouco para abranger sua vulcânica personalidade, a competência no cargo que exerceu durante 28 anos, a impositiva doçura de que se valia para angariar fundos, mundo afora, para a cidade que considerava a alma do povo judeu. Tinha um arrebatador e inigualável estilo para fazer amigos, entre os quais dezenas de estadistas, celebridades e detentores de prêmios Nobel em todos os continentes, e força física para trabalhar 18 horas por dia, todos os dias, na sua obsessão por construir e fazer de Jerusalém uma cidade onde árabes, judeus e cristãos pudessem conviver pacificamente.
Theodor Fleischer, que depois hebraizou seu sobrenome para Kollek, nasceu no dia 27 de maio de 1911, na pequena cidade húngara de Nagivazsony, tendo vivido em Viena desde a infância. Seu pai, funcionário do Banco Rothschild, deu-lhe o nome de Theodor em homenagem a Theodor Herzl, de quem era amigo. Sionista desde a adolescência, emigrou para a antiga Palestina em 1935. O navio no qual embarcou, na Itália, chamava-se justamente "Jerusalém". Foi um dos fundadores do kibutz Ein Guev, às margens do Mar da Galiléia, onde se casou com Tamar Schwartz, filha de um rabino de Viena. Em Ein Guev, contraiu tifo e sofreu repetidos ataques de malária, mas sempre repetiu que aqueles foram os anos mais felizes de sua vida. Por conta de seu irradiante temperamento e constante bom humor, foi escolhido para atuar como representante do kibutz junto às autoridades mandatárias britânicas. Um de seus antigos companheiros recordou: "Teddy tinha a habilidade de tratar com os ingleses de igual para igual, o que não era nada comum naquele tempo".
Em 1938, mandaram-no para Londres com a missão de organizar e treinar jovens que se dispusessem a ser pioneiros na Terra Santa. Mas, para isso, era preciso obter vistos de entrada junto às autoridades britânicas. Depois de muito batalhar, obteve 3.000 vistos que, em face das circunstâncias do momento, decidiu utilizar para a comunidade judaica da Áustria, então ameaçada por causa da anexação do país à Alemanha nazista. Chegou a Viena no ano seguinte e ali teve que entrar em entendimento com um oficial nazista, a quem convenceu de certificar os vistos. Teddy só voltaria a ver este oficial 22 anos mais tarde, preso numa jaula de vidro, em Jerusalém. Era Adolf Eichmann. Kollek voltou para Londres, onde testemunhou os dramáticos eventos da Batalha da Inglaterra ao lado de Ben-Gurion, que ali também se encontrava. Anos mais tarde, ao ler suas memórias, marcou uma passagem escrita por Ben-Gurion, que também correspondia ao seu sentimento de então: "Quando vi os ingleses resistindo àqueles terríveis bombardeios, concluí que se eles podiam ser tão estóicos, nós também o seríamos quando chegasse a nossa hora de combater". Teddy voltou à então Palestina em 1942 para assumir o cargo de vice-diretor do Departamento de Inteligência da Agência Judaica. Este posto lhe valeu bons relacionamentos com oficiais ingleses sediados em Jerusalém e no Cairo. No Egito, contatou os soldados judeus que serviam no exército britânico e deles conseguiu armas que conseguiu fazer chegar até a então Palestina. No ano seguinte, deslocou-se para Istambul com a missão de contatar e de tentar salvar as comunidades judaicas da Europa, já vítimas de perseguições e atrocidades. O caminho para a Turquia foi feito via Itália, onde se uniu à Brigada Judaica e fez amizade com o oficial norte-americano James Angleton, chefe local do serviço de espionagem OSS, agência antecessora da CIA. Kollek convenceu-o a permitir que a Brigada Judaica se integrasse às forças aliadas que iriam invadir a Alemanha nazista, onde a Brigada resgataria os prisioneiros judeus dos campos de concentração e os levaria clandestinamente para a Palestina.
Os norte-americanos fingiriam não saber de nada e, em troca, a Agência Judaica informaria à OSS sobre as atividades das redes de espionagem soviéticas que operavam na Europa e no Oriente Médio. Essa aliança se prolongou durante todo o período da guerra fria e os laços entre o Mossad e a CIA até hoje prevalecem, tendo sido incrementados principalmente depois que Israel passou a acolher grandes levas de imigrantes da União Soviética e que constituíam valiosas fontes de informações.
Teddy selou essa importante aliança com os norte-americanos por conta de uma proeza: foi ele quem passou de antemão para a Casa Branca o célebre discurso de Kruschev, no 20o Congresso do Partido Comunista, no qual foram denunciados a tirania e os crimes de Stalin. O texto tinha chegado ao gabinete de Ben-Gurion através do jornalista polonês Victor Graievsky, que jamais revelou como o obteve.
Quando a guerra acabou, Ben-Gurion mandou aos Estados Unidos um pequeno grupo de ativistas, no qual Teddy Kollek era a figura proeminente.
Atuando como um "diplomata informal", coube-lhe fincar sólidos alicerces entre a Agência Judaica e destacadas autoridades civis e militares do governo norte-americano. Mas, além disso, competia-lhe uma tarefa muito mais importante: a aquisição de armamentos, munições, equipamentos e bens de toda a natureza que deviam ser despachados para a Haganá, o embrião do exército do futuro estado judeu, já se preparando para a guerra que saberia ter de enfrentar contra seus vizinhos árabes. Era uma missão não somente difícil, mas arriscada, porque a maior parte dessas ações violava as leis norte-americanas; e o grupo vindo de fora, mais um círculo de sionistas locais, aquartelados num hotel no número 14 da rua 60, era vigiado todo o tempo pelo FBI. No piso abaixo da entrada do hotel funcionava a famosa Boate Copacabana. Certa noite, ocorreu a necessidade de ser levada uma quantia em dinheiro vivo para o comandante de um navio ancorado no porto de Nova York. O grupo sabia que, se qualquer um deles se dirigisse àquela zona da cidade, àquelas altas horas, seria seguido pelo FBI. Alguém teve a idéia de pedir ao jovem cantor que atuava com a orquestra da boate, para levar o dinheiro até o porto, já que ninguém suspeitaria dele.
O rapaz concordou, sabendo apenas que deveria entregar um pequeno pacote e cumpriu a tarefa sem qualquer problema. Chamava-se Frank Sinatra.
Além dessa atividade nos Estados Unidos, também competia a Teddy formar uma rede de colaboradores que se estendesse por toda a América Central e a América do Sul, incluindo o Brasil. No Rio de Janeiro, seu contato era um judeu de origem polonesa-alemã, que ocupava a direção de um dos mais importantes conglomerados industriais e financeiros do país naquela época. Sua ajuda, entre muitas outras coisas, tornou-se inestimável porque a empresa que dirigia, possuía um dos poucos aparelhos de telex instalados no Brasil. Este judeu jamais revelou publicamente a atividade que exercera nos dois anos anteriores à criação de Israel e ficou amigo de Teddy por toda a vida. Há uns 20 anos, fui visitá-lo em seu gabinete na prefeitura de Jerusalém e ele me pediu, sabendo que eu conhecia a tal pessoa: "O fulano está velhinho e sozinho aqui em Jerusalém. Eu estou sem tempo para dar a atenção que ele merece. Por favor, vai até o hotel King David e faz um pouco de companhia a ele". Fui e valeu. Ouvi lances inacreditáveis sobre o que foi feito a partir do Brasil para ajudar o pré-esforço de guerra da Haganá.
Em Washington, Kollek reencontrou seu amigo da Itália, James Angleton, já bem posicionado na CIA, onde passou a ser recebido sem formalidades e estabeleceu um estreito relacionamento com o diretor Allen Dulles, cuja casa passou a freqüentar. Um dia, em um dos corredores da CIA, Teddy avistou um homem que lhe pareceu familiar. Ele tinha visto essa pessoa 20 anos atrás em Viena e não hesitou em reconhecer o comunista inglês, Kim Philby, que se tinha casado com uma jovem vienense, também comunista. Perguntou o que aquele sujeito estava fazendo dentro da CIA e soube que se tratava de um dos mais destacados funcionários do Serviço de Inteligência da Inglaterra. Informou sobre o ocorrido aos norte-americanos, que tinham Philby em alta conta, e não deram importância a seu relato. Anos mais tarde, Philby desertou para Moscou, num dos mais rumorosos casos de espionagem da época da Guerra-Fria.
Depois da independência de Israel, Teddy Kollek saiu da sombra e assumiu a condição de segundo homem da embaixada israelense em Washington. Outra importante missão foi-lhe, então, conferida: lançar a primeira campanha da venda de bônus de Israel nos Estados Unidos, tendo alcançado extraordinários resultados. Em 1952, voltou para Israel, onde assumiu a chefia do gabinete de Ben-Gurion, o que correspondia a agir como um faz-tudo. E fazia mesmo. Foi ele quem implantou toda a infra-estrutura do turismo em Israel, quem deu um formato profissional à emissora estatal de rádio, quem incentivou os primeiros projetos para a dessalinização das águas do Mediterrâneo, quem idealizou a construção de um grande museu de arte em Jerusalém. Não faltou no governo quem se opusesse à idéia do museu, alegando que se tratava de um luxo além das possibilidades e das prioridades de Israel. Ao que Kollek contra-argumentava: "Assim como nós temos a obrigação de absorver imigrantes e de construir nosso poderio militar, também devemos mostrar ao mundo nossas expressões de cultura e de civilização". Teddy serviu durante doze anos no gabinete de Ben Gurion, até que este, em 1965, sugeriu que ele assumisse a prefeitura de Jerusalém, uma proposta que lhe pareceu pouco atraente: "Acho que não tenho muito talento para organizar coleta de lixo". Anos mais tarde, recordou: "Naquele tempo, Jerusalém era uma cidade negligenciada. As pessoas possuíam pouco poder aquisitivo e não tinham esperanças de que algo melhor lá pudesse ser feito". Neste sentido, estabeleceu duas prioridades: desenvolver e modernizar a cidade para que tornasse a ocupar o lugar que lhe competia na história e fazer com que seus habitantes vivessem em paz. Na primeira proposta, foi amplamente vitorioso: tornou realidade o Museu de Jerusalém, abriu avenidas, construiu praças e jardins, construiu um estádio de futebol e teatros, arborizou ruas e plantou flores nos canteiros que separavam as faixas de rolamento das avenidas, restaurou monumentos históricos, estimulou as pesquisas arqueológicas, fundou um centro de música e instalou um jardim zoológico. Suas ações eram tão rápidas e eficientes que, poucos dias depois da reunificação de Jerusalém, já tinha removido as pequenas casas que quase obstruíam a passagem para o Muro Ocidental, lá criando um enorme espaço aberto. Na segunda proposta, entretanto, não foi tão bem-sucedido quanto pretendia. Embora sob sua administração os árabes tivessem pleno acesso a seus lugares sagrados, não lhe dedicaram plena confiança, embora sua preocupação como prefeito tivesse sido no sentido de reunificar a cidade não apenas do ponto de vista geográfico, mas também social. No dia seguinte ao de sua morte, seu filho, o cineasta Amos Kollek, declarou à imprensa: "No princípio, não creio que ele realmente queria ser prefeito. Mas, depois da Guerra dos Seis Dias, quando Jerusalém foi reunificada, ele entendeu que algo único e histórico tinha acontecido e que aquela era uma oportunidade única, que jamais tornaria a acontecer em sua vida. Desde então, só teve um objetivo: trabalhar por Jerusalém". Um dia lhe perguntaram o que gostaria de ter feito na cidade e não chegou a realizar e como gostaria de ser lembrado. Respondeu: "Acho que eu deveria ter construído mais jardins-de-infância e escolas. Tanto faz como serei lembrado. Julgo que estive no lugar certo e na hora certa e soube fazer uso disso". Em 1993, a par da prefeitura, Teddy Kollek criou a Fundação Jerusalém, para a qual angariou fundos que resultaram na concretização de 1.400 diferentes projetos e à frente da qual permaneceu, mesmo depois de deixar o cargo oficial. Nesta Fundação, criou um conselho internacional formado por urbanistas, arquitetos, personalidades políticas e religiosas, que se reunia a cada ano para discutir o desenvolvimento da cidade. Ele pretendia demonstrar, através desse conselho, que Jerusalém não deveria ser uma preocupação apenas de Israel mas do mundo inteiro, "porque todos têm dois lares, um no qual residem e outro em Jerusalém".
Em 1993, depois de 28 anos como prefeito, Teddy concorreu mais uma vez para dirigir a municipalidade, mas perdeu as eleições para Ehud Olmert, cuja campanha foi toda centrada na avançada idade, 82 anos, de seu oponente. Dez anos mais tarde, declarou numa entrevista: "Não acho a menor graça em ter ficado velho. É uma coisa muito difícil. Tenho uma enorme vontade de fazer coisas que já não consigo realizar. Se fosse possível, eu até tornaria a me candidatar à prefeitura. Assim eu poderia consertar alguns erros do passado e colocar em prática uma porção de idéias que continuam fervendo na minha cabeça". E disse o seguinte em outra entrevista, também aos 92 anos de idade: "O século 20 viu a ascensão e queda de muitos movimentos nacionalistas, dos quais poucos foram bem-sucedidos. O foco da minha vida sempre foi o sionismo, o estabelecimento e o desenvolvimento de uma pátria para o povo judeu. Toda a minha vida foi dedicada a tornar essa pátria uma realidade. Quando o Estado de Israel foi criado, em 1948, dediquei meus próximos 50 anos para torná-lo forte, com uma sociedade pluralística e democrática e com uma bela capital. Jerusalém reúne todos os conflitos do passado em sua arqueologia, em seu significado religioso para as fés monoteístas e em sua importância política para o século 20. O povo judeu passou 2.000 anos no exílio. Este século trouxe-o de volta para a sua terra e para a sua independência política, depois de milênios. Considero este o evento mais significativo do século 20".
Zevi Ghivelder é escritor e jornalista