Milhões de pessoas leram Anne Frank: Diário de uma Jovem, obra que narra o cotidiano de uma garota judia e sua família, de 1942 a 1944, enquanto viviam no anexo secreto, um esconderijo em Amsterdã.
O diário é um comovente testemunho sobre a maldade perniciosa dos nazistas. Sobre a obra, o escritor soviético Ilya Ehrenburg escreveu: "Uma voz fala pelos 6 milhões de judeus mortos; a voz não é de um sábio, nem de um poeta, mas de uma jovem como tantas e tantas outras". A voz de Anne revestiu o Holocausto de uma face tangível, dando-lhe uma dimensão mais fácil de ser entendida, apesar da dificuldade da mente humana em lidar com tamanho horror.
Ao ler o diário, o leitor é pessoalmente confrontado com a realidade da perseguição contra os judeus, sendo, portanto, ompreensível o interesse em ver de perto o lugar onde Anne, a mais conhecida e discutida vítima do Holocausto, escrevia. Desde a primeira publicação do diário, em 1947, o "Anexo" tem sido visitado por milhares de pessoas. m 1960 foi transformado no museu denominado The Anne Frank House.
A visita ao museu é uma viagem no tempo ao mundo de Anne, dos "ocupantes" do "Anexo" e de seus "Ajudantes" - os quatro funcionários do Otto Frank, pai de Anne, que os ajudaram e protegeram nos dois anos em que viveram escondidos. O pano de fundo são os terríveis anos da Shoá. Há, no entanto, uma diferença em relação ao livro. Enquanto a narrativa do diário termina alguns dias antes dos ocupantes serem presos pela Gestapo, o museu vai além, revelando o destino de cada um deles mediante imagens, documentos e depoimentos.
Para recordar o 75º aniversário do nascimento da jovem, o museu publicou o livro Inside Anne Frank's House, an Illustrated Journey through Anne's World. O título da obra revela o intuito de seus editores - permitir a um número ainda maior de pessoas conhecerem a adolescente e o mundo em que viveu. Não há dúvida de que as imagens reproduzidas são parte do testamento e do legado de Anne, que permanece vivo. Um legado sobre o qual ela se manifestou no dia 5 de abril de 1994, ao escrever: "Eu quero continuar a viver depois da minha morte e, por isso, sou grata a D'us por ter me presenteado com o dom de escrever, de conseguir expressar tudo o que está dentro de mim".
Uma curta vida
A vida da jovem destinada a ser a voz dos milhões de judeus mortos durante o Holocausto foi curta, mas significativa. Annelise Marie nasceu em 12 de junho de 1929, em Frankfurt, e era a segunda filha de Otto e Edith Frank, abastados judeus alemães. O pais a chamavam de Anne.
Em 1933, com a ascensão de Adolf Hitler ao poder, os Frank decidem viver em Amsterdã, na Holanda. Otto se muda imediatamente, pois se apresentara a oportunidade de montar uma franquia, a Opekta Works, para a comercialização de pectina, substância usada na fabricação de geléias. Edith, Anne e a irmã Margot se juntam a ele, tempo depois. Em Amsterdã, voltaram a desfrutar de liberdade e relativa tranqüilidade, apesar das alarmantes notícias sobre a intensificação da discriminação aos judeus, em outras partes.
Nem a tolerante e pacífica Holanda consegue escapar da fúria que se abateu sobre a Europa. Em maio de 1940, os exércitos alemães ocupam o país, a monarquia é deposta e o austríaco Artur Seyss-Inquart, conhecido por seu brutal anti-semitismo, assume o governo, dando início à campanha de perseguição judaica.
Otto, que não tinha ilusões sobre os nazistas, imediatamente toma medidas para proteger sua família. Em setembro de 1941 transfere a titularidade da firma a um dos ajudantes, Johannes (Jo) Kleiman, apesar de continuar à frente do empreendimento. Kleiman o ajuda a planejar o "mergulho", como era chamada a passagem de judeus para a vida na ilegalidade. Eles transformam num esconderijo perfeito um anexo vazio na casa 263 da rua Prisengracht. Era um prédio atrás do escritório onde ficava o depósito da firma. Algum tempo depois, Otto pede ajuda a mais três antigos e fiéis funcionários: Victor Krugler, Miep Gies e Bep Voskuij. Junto com Jo Kleiman, compunham o quarteto dos "Ajudantes".
No dia do seu 13º aniversário, 12 de junho de 1942, Anne recebe de presente um diário. Ela não imaginava a importância que este teria. Quando, em 5 de julho, sua irmã Margot é convocada pela Gestapo, os Frank decidem que não podiam adiar nem mais um minuto o "mergulho". Assim, no dia seguinte, passaram para a clandestinidade. Uma semana mais tarde, junta-se a eles o casal Van Pels, sócios e amigos, e o filho Peter. Em novembro chega o último ocupante, Fritz Pfeffer.
Um velho rádio, ao qual viviam colados, era, além dos "Ajudantes", seu único contato com o mundo exterior. Todos os cuidados eram necessários para que a vizinhança e os demais funcionários da empresa, principalmente os que trabalhavam no depósito, não suspeitassem que ali havia judeus escondidos.
Surpreendendo pela sua maturidade apesar dos 14 anos, Anne descreve no diário, com pormenores, seu cotidiano e o dos outros "ocupantes". A sensação de estarem presos sem poder ver ainda que uma nesga do céu e o medo de serem descobertos estão sempre presentes. Em vários trechos Anne dá detalhes das crescentes restrições e perseguições nazistas contra os judeus. Em março de 1944, a adolescente ouviu uma transmissão da rádio inglesa em que Gerrit Bolkestein, ministro do governo holandês no exílio, convidava os cidadãos a preservarem documentos e histórias pessoais sobre a guerra. A jovem então decide que, ao término do conflito, publicaria um livro baseado em seu diário.
Apesar do medo e sofrimento, Anne ainda nutria esperanças - prova de que desconhecia a real face do Holocausto. Em uma de suas últimas anotações, em 15 de julho 1944, escreveu: "Vejo o mundo se transformar, gradualmente, em um grande deserto, ouço o trovão se aproximando, o mesmo que nos destruirá a todos. Sofro com o sofrimento de milhões e, no entanto, se levanto os olhos aos céus, sei que tudo acabará bem, toda essa crueldade desaparecerá...". O diário de Anne Frank termina no dia 1º de agosto, três dias antes de sua prisão. Foram as últimas palavras que escreveu.
A prisão
Em 4 de agosto de 1944, após a denúncia, a Gestapo invade o escritório da empresa e imediatamente se dirige à entrada do "Anexo Secreto", obrigando Victor Kugler a abri-lo. Seus ocupantes, o próprio Victor e Jo Kleiman, são presos. Assim que os nazistas deixam o local, Miep Gies e Bep Voskuijl voltam ao esconderijo e encontraram cadernos e anotações de Anne espalhados pelo chão, que recolhem. Guardam-nos juntamente com vários álbuns de fotos. As jovens decidem, então, que Miep os guardaria para devolver a Anne assim que a guerra terminasse. A mobília do Anexo é confiscada e removida, por ordem da Gestapo.
Os presos têm destinos diferentes. Os oito ocupantes são levados para o campo de trânsito de Westerbork, de onde saíam os trens "rumo ao Leste". Por não serem judeus, os dois "Ajudantes", Victor e Johannes, são enviados para Amersfoort, um campo de trânsito. Kleiman acaba sendo libertado e Kugler consegue fugir.
No dia 3 de setembro todos os ocupantes do Anexo são colocados junto a outros mil judeus, no último trem que saiu de Westerbork para Auschwitz, na Polônia. Testemunhas contam que Anne, Margot e Edith ficaram juntas até as duas irmãs serem transferidas, em outubro, para Bergen-Belsen, na Alemanha. No mês seguinte Edith adoece, morrendo em janeiro de 1945, aos 44 anos.
Em Bergen-Belsen, para onde as jovens são levadas, as condições de vida eram ainda piores de que em Auschwitz e as duas irmãs logo contraem tifo. Doente e muito fraca, Margot não resistiu, vindo a falecer em março, com apenas 19 anos. A morte da irmã fez em Anne o que nada até então fora capaz de fazer - quebrar seu espírito. Alguns dias mais tarde, falece. Não se sabe ao certo quando, mas a data universalmente aceita é 31 de março de 1945. Anne tinha 15 anos. Apenas algumas semanas depois, em 15 de abril, o campo era libertado pelo exército inglês.
Das oito pessoas do "Anexo Secreto", apenas Otto sobrevivera, por milagre. Havia sido enviado para o barracão de doentes de Auschwitz, em novembro de 1944, enquanto outros prisioneiros do campo, cerca de 11 mil, evacuados pelos nazistas à medida que os russos avançavam, foram levados a pé nas terríveis Marchas da Morte, das quais poucos sobreviveram. E o pai de Anne se encontrava ainda lá quando, no dia 27 de janeiro de 1945, o campo foi libertado pelas forças soviéticas.
Dos 140 mil judeus que viviam na Holanda e se registraram junto às autoridades alemãs como judias, 107 mil foram deportadas. Deste total, apenas 5.500 retornaram. Cerca de 24 mil pessoas conseguiram esconder-se, 8 mil das quais foram capturadas. Apenas 35 mil judeus conseguiram sobreviver ao Holocausto na Holanda. Ou seja, 70% dos judeus holandeses foram vítimas da Shoá, um índice superior a qualquer outro registrado nos países ocupados pela Alemanha, na Europa Ocidental.
A viagem de Otto de volta para Amsterdã durou vários meses. No trajeto, foi informado por uma amiga de Edith sobre sua morte, em Auschwitz. Em junho, ele chega à capital holandesa, onde encontra, ainda funcionando, sua empresa Opekta, agora dirigida por Jo Kleiman. Procura, desesperado, qualquer informação sobre o paradeiro das duas filhas, mas no mês seguinte é obrigado a aceitar o fato de que não haviam sobrevivido. Miep lhe entrega então os cadernos que encontrara, dizendo: "Este é o legado de sua filha Anne para você".
Otto nunca desconfiara da existência daqueles registros. Estimulado por amigos, decide publicar o diário, mas não encontra nenhuma editora interessada. s manuscritos acabam nas mãos do casal Romein, historiadores holandeses. Impressionado com o material, o Dr. Romein escreve um artigo, "A Voz de uma Criança", para o renomado jornal Het Parool, onde afirma: "Este diário de aparência infantil incorpora toda a hediondez do nazismo de forma muito mais visível e contundente do que todo o conjunto de evidências apresentadas perante o Tribunal de Nuremberg".
O artigo desperta o interesse de uma editora e, em junho de 1947, o "Diário de Anne Frank" é publicado na Holanda, pela primeira vez. Otto conseguira realizar o desejo da filha: ser escritora. Desde sua publicação, o "Diário" foi traduzido em 67 idiomas, tornando-se um dos livros mais lidos no mundo. Seu texto deu origem a produções de televisão, cinema, teatro e, até mesmo, uma ópera.
Museu Anne Frank
Como vimos acima, a publicação da primeira edição do "Diário" despertou o interesse do público sobre o local onde aconteceram os eventos narrados por Anne. Assim, de maneira informal, começou a visitação ao "Anexo Secreto".
Entre 1950 e 1953, a construtora Berghaus, interessada na aquisição de propriedades antigas para transformá-las em novas edificações comerciais, adquire vários imóveis da rua Prinsengracht, inclusive a casa onde ficava o Anexo. Paralelamente, crescia a fama do "Diário". Nos Estados Unidos anuncia-se também o projeto de montagem de uma peça. O diretor do espetáculo visita o Anexo e pede à fotografa Maria Áustria fotos detalhadas de todos os ângulos do local. Quando a peça o "Diário de Anne Frank" estréia na Holanda, em novembro de 1956, faz aumentar, ainda mais, a fama do esconderijo.
Otto Frank que passa a se dedicar integralmente ao diário da filha. Com a ajuda principalmente de Kleiman, luta pela preservação do edifício onde a família se escondera. Entre a população de Amsterdã há um consenso geral de que o local deveria ser preservado. O jornal holandês Het Vrije Volk organiza, em 23 de novembro, data em que o prédio seria derrubado, um protesto no local contra a demolição. Como resultado, a empresa recebe ordem de interromper os trabalhos. O governo municipal de Amsterdã, em troca, oferece à companhia um terreno alternativo.
No dia 3 de maio de 1957 é criada a fundação The Anne Frank House que visa a preservação e a renovação do número 263 da Prisengracht, além da divulgação do legado de Anne. Em outubro, a construtora Berghaus faz a doação oficial do prédio. Após dois anos de restauração, no dia 3 de maio de 1960, a Anne Frank House é oficialmente aberta ao público. Mais de nove mil pessoas passaram pelo local, em seu primeiro ano, multiplicando-se rapidamente este número na década seguinte. O volume crescente de visitantes tornou necessárias algumas reformas - a primeira, em 1970. As demais, ocorreram entre 1996 e 1999, sendo ampliado o museu. Foram incorporados novos espaços para exposições, um novo prédio foi construído, próximo ao museu, facilitando a reconstituição da frente da casa - onde ficava o esconderijo - ao seu estado original.
Os escritórios, que ficavam em frente, foram reconstruídos exatamente como eram em 1940. Os trabalhos duraram até 1999. Durante todo o tempo da reforma o "Anexo Secreto" permaneceu aberto ao público. Em 2004, o museu recebeu aproximadamente um milhão de visitantes.
O local é estruturado para contar a história das oito pessoas que lá se refugiaram e também daqueles que as ajudaram. Os visitantes podem ver de perto objetos pessoais dos ocupantes, como por exemplo, um pôster com fotos de artistas de cinema colocado na parede por Anne; um papel de parede no qual Otto Frank registrava a altura de suas filhas em fase de crescimento e um mapa no qual marcava os avanços das forças aliadas. Nos quartos estão expostos trechos do diário de Anne, para que as pessoas possam ter uma idéia de como transcorriam os dias no "Anexo Secreto".
Viagem no tempo
O livro Inside Anne Frank´s House conduz os leitores através da mesma rota que os visitantes fazem no tour pela casa e reproduz páginas do "Diário" expostas no museu, bem como o testemunho de Otto e de várias pessoas que ajudaram ou tiveram contato com a jovem. Há também comentários sobre o impacto que suas impressões causaram nos leitores.
Muitas das fotografias em preto e branco, tiradas em 1954 por Maria Áustria, podem ser vistas no livro. Foram também incluídas outras imagens coloridas do mobiliário provisório, para que os leitores pudessem ter uma melhor percepção da vida dos ocupantes do "Anexo Secreto".
Através de imagens da família Frank, da casa, dos amigos de Anne e das pessoas que os ajudaram, pode-se reviver a época. Essa documentação fotográfica representa parte crucial na reconstituição da história dos judeus durante a 2ª Guerra Mundial e do Holocausto. Coloridas ou em preto e branco, as imagens provocam profunda emoção.
Em 9 de abril de 1944 Anne escreveu: "Um dia, esta guerra terrível acabará. Há de chegar a hora em que novamente seremos considerados seres humanos e não apenas judeus.".
Como já dissemos, seu diário termina no dia 1º de agosto de 1944. Ela não deixou nada escrito sobre os meses que passou nas mãos dos nazistas e sobre os campos de concentração. Anne Frank tornou-se para muitos a "face" de milhões de vítimas da Shoá, sem rosto e sem nome. O escritor Primo Levi, que sobreviveu a Auschwitz, explica: "Uma única Anne Frank nos emociona mais do que milhares de outros que sofreram tanto quanto ela, mas cujos rostos permaneceram na sombra. Talvez seja melhor desta forma, pois se tivéssemos que absorver o sofrimento de todas essas pessoas, talvez não estivéssemos mais vivos".
"Uma única Anne Frank nos emociona mais do que milhares de outros que sofreram tanto quanto ela, mas cujos rostos permaneceram na sombra", Primo Levi.