Era um simples pedaço de papelão perfurados de cerca de treze centímetros de comprimento e oito centímetros de largura. Mas desde a publicação nesta semana do livro IBM e o Holocausto, estes cartões processados pelas máquinas Holleriths-os precursores dos nossos computadores-ganharam um significado sinistro.

Mas desde a publicação nesta semana do livro IBM e o Holocausto, do Americano Edwin Black, lançado simultaneamente em vários países e no Brasil pela editora Campus, estes cartões processados pelas máquinas Holleriths-os precursores dos nossos computadores-ganharam um significado sinistro.

No livro, Black um americano filho de judeus que sobreviveram a perseguição nazista, mostra como os cartões produzidos e processados pela Dehomag (a filial alemã da IBM) que circularam aos milhões pelas mãos de burocratas, transformando-se num elemento crucial na identificação, localização, perseguição, prisão e – na última fase do processo- extermínio de milhões de judeus e de outras vítimas de Hitler na Europa ocupada pelos nazistas.

Mais importante, o livro recorre a milhares de documentos para desmontar a história oficial assumida pela IBM que, em nota oficial, tenta limitar sua responsabilidade com a frase: “Como milhares de empresas estrangeiras que tinham negócios na Alemanha da época, a Dehomag (filial Alemã) passou a ser controlada pelas autoridades nazistas antes e durante a Segunda Guerra”.
Campos

Com a ajuda de mais de cem colaboradores, muitos deles voluntários - espalhados por vários países, Black reuniu milhares de fragmentos de informação para montar um vasto quebra-cabeças. A imagem final mostra que, se a IBM americana e seu presidente Thomas J. Watson não tinha conhecimento nem tiveram participação direta no que ocorreu nos campos de extermínio a partir de 1942, participaram juntamente com suas filiais num esforço que daria à perseguição e às atrocidades pelos nazistas uma eficiência nunca vista. Sua empresa não vendia apenas máquinas, vendia soluções concebidas por seus técnicos para o problema de cada “cliente”.

Em dezembro de 1944, em campos de concentração como o de Bergen-Belsen, os prisioneiros eram identificados por cartões Holleriths. Os furos na terceira e na quarta coluna definiam dezesseis categorias de prisioneiros: o Orifício 12 significava cigano, o 3 significava homossexual e o 8 judeu. A coluna 34 trazia a razão do envio para o campo: o código 2 indicava que ele continuaria trabalhando, o 6 “tratamento especial” e um eufemismo para extermínio.

Estatísticas

Como ao longo de doze anos, os nazistas rastrearam em meio aos milhões de habitantes da Alemanha e da Europa exatamente aqueles que pretendiam destruir? Ou que estava ocorrendo em Bergen-Belsen, Auschwitz, Treblin-ka e outros campos era apenas a última etapa de um processo iniciado anos antes e no qual se combinaram o zelo alemão pelas estatísticas, as máquinas da IBM, e as idéias racistas de Hitler.

Quando este, recém-chegado ao poder, encomenda à filial de Berlim seu primeiro recenseamento do povo alemão, Watson o comandante do império IBM, acolhe o negócio em Nova Iorque como uma grande oportunidade. “É o maior trabalho já prestado por qualquer agência da IBM”, dizem os representantes da Dehomag. Os investimentos da matriz na filial são multiplicados por quinze. A Dehomag era responsável por mais da metade dos lucros obtidos com as mais de setenta subsidiárias fora dos EUA. Para processar os questio-nários preenchidos à mão por meio de milhões de recenseadores, a fi-lial alemã da IBM contratou e treinou novecentas pessoas, que trabalhavam num andar abaixo do escritório Estatístico Prussiano. Um lance de escada separava a empresa privada do estado alemão.

Na própria sala que Watson visitou cumprimentando efusiva-mente todos os funcionários, cartazes enormes advertiam para os critérios de classificação de protestantes, católicos e judeus, que mere-ciam um registro num cartão especial, processado à parte. “O produto final era revelação minuciosa da presença judaica, profissão por profissão, cidade por cidade, quarteirão por quarteirão, escreve Black.

Censo foi a Arma de Hitler

Em 1934, os jornais americanos já traziam ocorrência sobre brutalidades sobres judeus. Se o Watson tinha alguma dúvida sobre o significado do censo, Willy Heidingr o homem que estava à frente da filial alemã, se encarregou de explicar em seu discurso durante as novas instalações da Dehomag, em Berlim “estamos orgulhosos de ajudar nessa tarefa, que fornece ao médico de nosso país [Hitler] o material que necessita para seus exames [...] Nosso médico poderá adotar as medidas corretivas para reparar as circunstâncias patológicas. Seguiremos suas instruções com base numa fé cega”. Transmitido para Nova Iorque o discurso de Heidinger só mereceu congratulações de Watson.

Quatro anos depois esta massa de informações já não parecia suficiente para o exame do “médico”. Não bastava localizar os judeus praticantes, agora era preciso encontrar os “judeus raciais” cuja ascendência judaica remontava ao século anterior ou mesmo antes. Aquilo que seria, segundo um jornal nazista “o maior e o mais abrangente censo já feitos em todo o mundo” tinha um objetivo claro: estabelecer a “configuração sangüínea de oitenta milhões de alemães. Os recenseadores incluíram perguntas sobre possíveis avós judeus. Mas isso não era tudo: livros de registros de nascimentos em igrejas e sinagogas de cada condado foram vasculhados no esforço para esclarecer a ascendência de cada cidadão. Recolhidas pelos escritórios de política racial, as informações foram então cruzadas com as do censo. O escritório de um condado, o de Bautzn identificou assim “92 judeus plenos, 40 meio judeus, 19 1/4 de judeus, cinco 1/8 e 4 1/16 judeus”, todos com nomes, endereços, ocupação, esposa, filhos, ancestrais... Os escritórios que cruzavam esses dados usavam o sistema Hollerith que foi se disseminando cada vez mais pelo estado alemão, da administração das ferrovias à máquina militar. Os gerentes da IBM em Paris monitoravam o rápido crescimento da Dehomag e Watson em Nova Iorque motivava os gerentes da empresa a quebrarem recordes de produção.

Durante muito tempo, as campanhas de denúncia no EUA. contra atrocidades nazistas esbarraram na indiferença do presidente da IBM “sou cidadão americano, mas na IBM sou cidadão do mundo, pois faço negócios em 78 países, e para mim todos são iguais”, dizia, justificando suas transações com a Alemanha de Hitler. Só após a entrada dos EUA na guerra, a Alemanha acabou nomeando interven-tores no conselho da empresa. Mesmo assim, Watson jamais cortou os laços com a filial alemã e as dos países ocupados, nem teve qualquer escrúpulo em, ao fim da guerra, retomar completamente a empresa juntamente com os lucros propiciados por seu maior cliente o regime de Hitler. Este ia buscar dinheiro não importa aonde, “se de bancos em Praga ou se arrancados de dentes de carcaças de judeus em Treblinka”, escreve Black.