Em meio às montanhas do sul da França, a cidade de Le Chambon-sur-Lignon se tornou, durante a Segunda Guerra Mundial, um abrigo seguro para os judeus. Sem disparar um tiro sequer, os habitantes do povoado, liderados pelo pastor André Trocmé e sua esposa, Magda, salvaram a vida de cinco mil judeus, em sua maioria crianças.

Junho de 1940. A França capitula diante do exército alemão, assinando um armistício com a Alemanha de Hitler. O país é, então, dividido - o norte e a costa do Atlântico ficam sob ocupação nazista, enquanto sul e sudeste passam a ter um governo leal à Alemanha, o Regime de Vichy, do Marechal Pétain. Le Chambon-sur-Lignon ficou sob jurisdição de Vichy, fato que seria de importância vital para o desenrolar dos acontecimentos.

Na época da invasão alemã, viviam em território francês judeus vindos de todas as partes da Europa. Apavorados com a chegada das tropas de Hitler, milhares deles fugiram para o sul do país, onde, contudo, não estavam a salvo. Vichy promulgara legislações anti-semitas e, a qualquer momento, os judeus podiam ser presos e enviados para a Alemanha. Uma cláusula do armistício obrigava as autoridades francesas a entregar aos nazistas quem quer que lhes fosse solicitado - e os judeus eram os primeiros da lista.

Enquanto os colaboracionistas franceses entregaram aos nazistas, durante a ocupação, um total de 83 mil judeus, dentre os quais dez mil crianças, os habitantes de Le Chambon os enfrentaram. Quando confrontados com o dilema de aceitar refugiados em seu lar, ainda que colocando em risco a vida de sua família e do povoado inteiro, a população local optou por salvá-los. Jamais se recusaram a acolher um judeu, assim como abominavam a delação e a traição.

Mesmo vivendo na pobreza, os chambonnais, como são chamados na França, tentavam suprir de todas as formas as necessidades dos refugiados. Escondiam-nos em seus lares e os alimentavam. Forjavam cartões de identidade e de racionamento. E, quando possível, ainda os ajudavam a fugir para a Suíça e Espanha. Acolhiam e cuidavam de crianças órfãs ou de pais deportados, mantendo sete instituições especialmente para esse fim. Ademais, conseguiam vagas nas escolas para que todos os jovens pudessem continuar estudando.

No vilarejo, ninguém falava abertamente sobre tais atividades, pois sabiam que qualquer comentário poderia destruir a frágil teia de esperança que os envolvia. Essa verdadeira "conspiração de bondade e silêncio" conseguiu salvar 5 mil judeus, fato realmente extraordinário, considerando que, à época, o povoado não contava com mais de 3 mil pessoas.

Apesar do reconhecimento do povo judeu e da comunidade internacional pela importância e nobreza de suas ações, os chamboneses nunca aceitaram a qualificação de "heróis". Quando questionados sobre a razão para a ajuda a milhares de judeus, respondem: "Algo tinha que ser feito e quis o acaso que estivéssemos lá para fazê-lo. Foi a coisa mais natural do mundo ajudar essa gente".

Infelizmente, poucos na Europa pensavam da mesma forma. Segundo Elie Wiesel, Prêmio Nobel da Paz e sobrevivente do Holocausto, "uma das grandes tragédias da Shoá foi o fato de os judeus terem sido abandonados por quase todos os que poderiam tê-los salvo. Os chambonnais foram uma das pouquíssimas exceções. Armados unicamente com suas convicções, enfrentaram as tropas nazistas e salvaram a vida de milhares de judeus".Se houvesse mais pessoas como eles, talvez a história da Segunda Guerra Mundial tivesse tomado outro rumo...

Símbolo de coragem e solidariedade

O povoado de Le Chambon-sur-Lignon está localizado em um planalto rodeado por montanhas, a uns 120 quilômetros de Paris, não muito longe da fronteira com a Suíça. Desde o século XVI, seus habitantes se tornaram huguenotes, como são chamados os protestantes franceses. Minoria religiosa em meio a uma França católica, foram perseguidos até a Revolução Francesa. Fiéis a suas convicções, durante séculos resistiram a diferentes pressões. O sofrimento imposto por perseguições religiosas já era parte da memória coletiva daquela gente destemida.

Foi a esse vilarejo empobrecido que, em 1934, chegou o pastor André Trocmé, acompanhado de mulher e filhos. Trocmé, nascido em 1901, descendia de uma linhagem de huguenotes. Profundamente religioso, era pacifista convicto e militante. Sua esposa, Magda, compartilhava de sua coragem e seus ideais. Rapidamente o pastor Trocmé passou a ser líder espiritual e ético da comunidade. Em 1938, para melhorar a situação econômica local, fundou uma escola internacional de alto nível: a Escola Cévenol. E, para ajudá-lo nessa missão, convidou o amigo, também pastor, Édouard Theis, que comungava das mesmas idéias de "resistência sem violência". Com o crescimento do nazismo, a escola passou a atrair refugiados judeus de toda a Europa.

Foi do púlpito da igreja de Le Chambon que Trocmé e Theis começam a pregar a santidade da vida humana e a resistência ao ódio e à destruição. Afirmavam ser obrigação de cada nação, assim como de cada individuo, posicionar-se de forma atuante contra o "mal", pois a neutralidade era cúmplice desse mal. Assim que a Alemanha conquistou a França, a pregação deu lugar à ação.

Depoimentos dos que viveram àquela época, únicos testemunhos do ocorrido em Le Chambon, revelam que tudo começou em uma noite de inverno, em 1940, quando Magda Trocmé abriu a porta de sua casa e se deparou com uma mulher faminta, enregelada, que lhe disse: "Sou judia alemã e estou fugindo dos nazistas, que se apossaram do norte da França. Disseram-me que neste povoado eu encontraria ajuda. Posso entrar?". E o que se iniciara como um gesto individual, transformou-se rapidamente em uma corrente de inquebrantável solidariedade.

Durante o período de 1940 a 1944, Trocmé e Theis foram os principais idealizadores da "resistência sem violência" e das ações de resgate empreendidas pelo vilarejo. Muitos outros participaram de forma ativa, inclusive Magda Trocmé. Mulher corajosa, nunca mediu perigos ou sacrifícios, tendo servido também de guia para inúmeros grupos que atravessavam as montanhas até a Suíça.

Trocmé começou por contatar o representante, em Marselha, da organização Quaker (American Friends Service Committee). Durante a Shoá, as igrejas da denominação Quaker e Testemunhas de Jeová foram as únicas que incorporaram a ajuda aos judeus à sua política oficial. Na França de Vichy, os quakers haviam conseguido permissão para ajudar os internos nos campos de detenção e tinham grande preocupação com as crianças judias de pais deportados. Era difícil encontrar quem aceitasse hóspedes tão visados. Trocmé propôs abrigá-las em Chambon e os quakers, cientes da pobreza do vilarejo, comprometeram-se a enviar recursos.

Rapidamente a operação se expandiu e se tornou mais complexa, pois passou a incluir não apenas crianças, mas todos que lá chegavam em busca de refúgio. Trocmé conseguiu também o apoio de outros 13 pastores, de habitantes da região e de outras organizações protestantes, assim como de membros do clero católico, da Cruz Vermelha e dos governos da Suécia e Suíça.

O pastor era o cérebro e a alma de toda a operação. É verdade que nunca teria conseguido realizar o que alcançou sem a ajuda da esposa, de Theiss e de muitos outros. Mas era ele quem planejava, incentivava e fazia tudo acontecer. Era o único que conhecia todas as facetas da operação. Os demais grupos envolvidos e seus líderes atuavam de forma independente. Esta era uma precaução necessária para salvaguardar a operação, pois, caso alguém fosse pego e submetido à tortura, era impossível prever o que viria à tona.

As opiniões dos chamboneses não eram segredo para as autoridades de Vichy, já que nunca as negaram. Pelo contrário, denunciavam e repudiavam abertamente a perseguição aos judeus. O pastor Trocmé e seus congregantes começaram a sofrer pressões para cessar toda a atividade pró-judeus. Mas, fiéis à sua consciência, não se dobraram perante as ameaças. Mesmo quando o próprio líder das igrejas protestantes francesas pediu a Trocmé que desistisse de ajudar os refugiados, pois podia prejudicar os franceses protestantes, Trocmé se recusou, determinado.

Após a guerra, um dos habitantes da região revelou que sempre que alguma patrulha nazista despontava, "caçando" os refugiados, estes eram escondidos nos bosques. "Logo que os soldados alemães partiam, íamos à floresta e cantávamos uma determinada canção. Quando a ouviam, sabiam que podiam regressar, em segurança".

Corajoso, o pastor nunca se calou. Do púlpito de sua igreja, não cansava de exortar seus congregados a se manterem firmes e a "fazer a vontade de D'us, não a dos homens". Em famoso sermão após os acontecimentos de Paris de julho de 1942, quando nazistas ajudados pela polícia francesa deportaram 13 mil judeus - dos quais 4 mil eram crianças - Trocmé declarou: "A Igreja cristã deveria ajoelhar-se e pedir perdão a D'us pela incapacidade e covardia que ora demonstra".

Em agosto daquele mesmo ano, quando as autoridades de Vichy foram ao povoado exigir de Trocmé uma lista com o nome de todos os judeus daquela região, ele se recusou, categoricamente. Respondeu, como de costume: "Não sabemos o que é um judeu; apenas conhecemos os seres humanos, todos iguais entre si e diante de D'us". Algumas semanas mais tarde, a polícia de Vichy foi para o vilarejo com três ônibus e uma missão sombria: prender e levar todos os judeus da região aos campos de detenção. Durante três semanas, os policiais andaram, em vão, por todo o vilarejo e seus arredores, em busca dos refugiados. Conseguiram encontrar, casualmente, apenas um judeu, pois ninguém revelou o paradeiro de um refugiado sequer, mostrando terem sido inúteis as ameaças policiais de prisão.

Em fevereiro de 1943, autoridades de Vichy voltaram a Chambon, desta vez para prender os próprios pastores, André Trocmé e Édouard Theiss, e o diretor da escola pública, Roger Darcissac. Este último era também o fotógrafo "oficial" de todos os documentos forjados. Os três líderes foram enviados a um campo de detenção onde ficaram presos por cinco semanas, até serem libertados. Durante esse tempo, ofereceram a Trocmé a opção de ser libertado mediante a assinatura de um documento comprometendo-se a seguir as determinações do governo de Vichy, especialmente no tocante aos judeus. Apesar da gravidade de sua situação, Trocmé manteve-se irredutível.

Daniel Trocmé, primo do pastor e um dos líderes da operação, não teve a mesma sorte. Responsável por um dos sete abrigos para crianças judias, foi capturado pelos nazistas em 1943. Enviado ao campo de Maidanek, na Polônia, juntamente com "suas" crianças, Daniel morreu nas câmaras de gás, em 1944. Tiravam-lhe a vida - mas levava consigo tudo o que seus carrascos queriam saber.

Merecido reconhecimento

O profundo reconhecimento do mundo judaico à família Trocmé e aos chamboneses, de modo geral, está registrado no Yad Vashem - Museu do Holocausto, em Jerusalém. Na ala dos "Justos entre as Nações" foram plantadas três árvores - duas em nome do casal André e Magda Trocmé e uma em homenagem a seu primo, Daniel. O pastor Édouard Theiss e sua esposa Mildred, assim como Roger Darcissac, também receberam o título de "Justos", assim como outros 38 habitantes que participaram do salvamento dos judeus. E, em 1990, Le Chambon-sur-Lignon se tornou a primeira comunidade a ser incluída pelo Yad Vashem nessa alameda, com a inauguração de um jardim e uma placa em nome de sua população.

O cineasta Pierre Sauvage, vencedor do Prêmio Emmy por seus documentários, é uma das centenas de crianças que sobreviveram ao Holocausto graças à população de Le Chambon-sur-Lignon. Nasceu na cidade, em 1944, quando grande parte de sua família já havia morrido nos campos de extermínio nazistas. Somente ao completar 18 anos soube que era judeu. A partir de então, abraçou ferreamente a missão de fazer com que o mundo jamais esqueça a Shoá. Tornou-se um dos maiores especialistas em identificar aqueles que ajudaram a salvar os membros de seu povo, tendo criado a Fundação Le Chambon.

Sauvage narra a história de Le Chambon num documentário intitulado Weapons of the Spirit - Armas do espírito. Em entrevista sobre o mesmo, declarou: "Histórias como a de Le Chambon servem de inspiração para os mais jovens, quando se vêem diante dos demônios do mundo. Se cada um de nós não puder sentir, bem no íntimo, o quanto de bondade existe em nossos semelhantes, teremos sempre o receio de olhar de frente para o grau de crueldade a que o ser humano pode chegar".

Bibliografia:

Hallie, Philip, Lest Innocent blood be Shed, Ed HarperPerennial

Berenbaum, Michael, The World Must Know, Ed. Litlle, Brown and Co.

http://www.yadvashem.org/