Esta é a história de um livro, ou melhor, o relato de sua trajetória.
Para explicar como este livro, publicado em 1836, em Rödelsheim (Alemanha), chegou às minhas mãos, é necessário voltar aos dias sombrios do Holocausto, durante a 2ª Guerra Mundial. Na Bélgica, onde nasci, ocupada pelos alemães em maio de 1940, foi criado um gueto virtual para os judeus a partir de outubro do mesmo ano. Foram baixados sucessivamente decretos que os obrigavam a se dirigir às prefeituras para que seus documentos de identidade fossem carimbados com o vocábulo "Judeu", em francês e neerlandês, pois a Bélgica é um país bilíngüe. Os judeus foram também demitidos do serviço público. Entre as muitas proibições impostas aos judeus: andar na rua das 20h às 7h, ter negócios próprios, crianças judias estudarem nas escolas públicas.
Os alemães criaram um órgão chamado "Association des Juifs en Belgique", no qual todos os judeus tiveram que se registrar, permitindo aos nazistas um melhor controle dessa população indefesa. Foi a entidade quem enviou, a partir do final de julho de 1942, as intimações para que os primeiros dez mil judeus se apresentassem para trabalhar no Leste.
Esta cilada atraiu minha única irmã, Esther Léa Rozenberg, com apenas 17 anos de idade, para um centro de concentração criado na Caserna Dossin, em Malines (Mechelen), de onde foi deportada para Auschwitz no comboio nº I, em 4 de agosto de 1942, e nunca mais soubemos dela. Os judeus eram despachados para Auschwitz em trens de carga, numa viagem de 48 horas, sem água nem alimentos. Ao chegar, eram selecionados para o trabalho forçado ou a câmara de gás. E assim, de 4 de agosto de 1942 a 31 de julho de 1944, foram deportados em 28 comboios 25.257 judeus. Destes, 5.093 eram menores de dezesseis anos e o mais novo tinha apenas 39 dias de vida.
Como os judeus não se apresentavam no ritmo esperado, a Gestapo começou a fazer incursões noturnas nos lares judaicos ou caçar suas vítimas, facilmente identificadas pela estrela amarela, na rua.
Meus pais, sabedores desses fatos, optaram pela clandestinidade e, assim, começou uma odisséia de dois anos, de setembro de 1942 a setembro de 1944, em que nos escondemos em diferentes vilarejos, contando com a ajuda de valorosos cristãos belgas, que arriscavam a própria vida.
Esta aventura mereceu a publicação do meu livro de memórias, em 2004, quando do 60º aniversário da libertação da Bélgica pelas tropas norte-americanas, em 3 de setembro de 1944. Desta saga, quero destacar um episódio: em janeiro de 1944, ficou acertado que, por motivos de segurança, eu deveria me separar dos meus pais. Na véspera da partida, meu pai me sentou em seu colo, eu tinha apenas nove anos, e me disse: "Meu filho, amanhã irás embora. Não sei o que será de nós. Nem sei se jamais tornarei a te ver. Entretanto, esta guerra não durará para sempre e saibas que és judeu. Assim que a guerra terminar, procura ir a Bruxelas ou a Antuérpia e fala com um rabino; ele tomará conta de ti. D'us te abençoe, meu filho".
Na manhã seguinte, fui entregue, mediante uma senha, a uma senhora desconhecida, que me levou para uma aldeia chamada Quaregnon, perto de Mons (Bergen), onde fui acolhido pela família de Maurice e Léa Piérart, que me fizeram adotar uma nova identidade. Passei a me chamar Paul Allain e lá fiquei até a libertação, quando meus pais foram me buscar. Fui muito bem tratado e serei eternamente grato a esta família, a quem foi concedido em 1994, a meu pedido, o título de "Justos entre as Nações".
Voltamos para Bruxelas e fui alfabetizado em hebraico, aos dez anos de idade. Meu pai comprou num sebo, logo após a libertação, vários livros litúrgicos abandonados por judeus deportados, incluindo uma Hagadá publicada em Paris, em 1818, e o livro que motiva esta narrativa. Na véspera de Pessach de 1945, meus pais me explicaram que voltaríamos a respeitar a cashrut e, logo em seguida, fiquei embevecido com a cerimônia do Seder, porém entristecido pela ausência de minha irmã.
Em 1950, viemos para o Rio de Janeiro e freqüentei o curso científico no Colégio Talmud Torah. Freqüentei o B'nei Akiva e participei de algumas machanot em Resende. Estudei medicina, me formei em 1959 e, a partir de 1966, quando casei, passei a freqüentar a sinagoga Kehilat Moriah, que funciona nas dependências do Colégio TTH-Barilan.
Pois bem, toda noite de Tishá B´Av, levava o livro de Kinot que meu pai comprara, que tinha a assinatura de um certo Heinz Eschwege, e sempre me perguntava quem seria a infeliz vítima que possuíra esse exemplar em que se lê o "Echa", ou seja as "Lamentações de Jeremias". No ano passado, a leitura se deu num sábado à noite e, quando cheguei em casa, resolvi pesquisar no site do Yad Vashem.
Para a minha grande surpresa e dolorosa alegria, constava o nome de apenas uma pessoa chamada Heinz Eschwege, deportada da Bélgica em 1944, aos 20 anos. Quem preenchera o formulário em 1990 era um irmão seu, chamado Alfred Eschwege, residente no estado de Nova York, Estados Unidos. Esperei ansiosamente até a segunda-feira para mandar uma carta relatando sucintamente que eu estava com um livro que deveria ter pertencido ao seu irmão. A resposta demorou a chegar, até que recebi uma longa carta explicando que sua família era natural da Alemanha. Que ele era o caçula de três irmãos: Julius nascido em 1921; Heinz, em 1924; e ele mesmo, em 1931. Eram filhos de Nathan e Regina Eschwege, cuja última residência na Alemanha fora na cidade de Mannheim, ambos deportados para Auschwitz, onde pereceram. Em 1937, Julius conseguiu emigrar para a Inglaterra, que aceitara acolher dez mil adolescentes judeus.
Alfred e Heinz foram enviados por seus pais, no final de 1938 ou início de 1939, para um orfanato em Dinslaken e, cerca de um ano depois, foram removidos para Bruxelas, Bélgica, onde, devido à diferença de idade, acabaram sendo separados e nunca mais se viram.
Logo após a invasão da Bélgica, em maio de 1940, Alfred foi evacuado para a França junto com as crianças do seu orfanato e, após muitas vicissitudes, chegou a Lisboa. Passadas algumas semanas, foi embarcado no vapor Mosinko, chegando a Nova York em 21 de junho de 1941, aos dez anos. Desnutrido, foi internado num hospital, em Ellis Island. Até então, e estivera aos cuidados dos Quakers e da Cruz Vermelha Internacional. Após ter alta, passou aos cuidados do "Hebrew Foster Home Bureau" (sociedade beneficente que cuidava de órfãos judeus) e a viver num orfanato judaico até completar 18 anos de idade.
Depois do final da 2ª Guerra Mundial, conseguiu descobrir o triste fim de seu irmão Heinz, deportado da Bélgica pelo comboio nº 24, em 4 de abril de 1944. Ante a iminente chegada dos russos, os alemães forçaram os prisioneiros judeus a iniciar a "Marcha da Morte" e ele faleceu em 29 de janeiro de 1945, no campo de concentração de Mittebau.
Diante de tais evidências, só me restou a obrigação de enviar-lhe o livro de Kinot, que ficara em meu poder durante sessenta anos, o que fiz com muita satisfação e orgulho. Por coincidência, a remessa ocorreu na semana da leitura da parashá "Ki Tetsê", onde, no capítulo 22:3 do Deuteronômio, encontra-se um dos 613 Mandamentos que manda devolver um objeto perdido a seu verdadeiro dono. Para concluir, transcrevo, em tradução livre, o versículo 5:21 do Echa: "Faze-nos voltar a ti, Senhor, e voltaremos aos dias de antanho".
Dr. Samuel Rozenberg é sobrevivente do Holocausto, médico cardiologista e autor do livro de memórias "Codinome Paul Allain".
Bibliografia
Karsfed, S. e Steinberg, M. Mémorial de la déportation des Juifs de Belgique. New York, The Beate Klarsfeld Foundation, 1982.
Rozenberg, S. Codinome Paul Allain. Rio de Janeiro, Editora Garamond, 2004.
Schreiber, J.P. e Van Doorslaer, R. Les Curateurs du Ghetto. Bruxelles, Éditions Labor, 2004.
Verhoeyen, E. La Belgique occupée: de l'an 40 à la Libération. Bruxelles, De Boeck-Wesmael, 1994.