Enfraquecidos, humilhados, sem esperança, solitários e esquecidos pelo mundo. Assim estavam os prisioneiros no campo de extermínio de Treblinka nas semanas que antecederam o Levante de 2 de agosto de 1943.

Foi o gesto derradeiro daqueles que sabiam que não lhes restava outro destino a não ser a morte e que, diante dessa certeza, preferiram morrer lutando. A revolta em Treblinka é mais um, entre tantos outros atos de coragem, que desmentem a versão de que os judeus foram para as câmaras de gás como “gado para o matadouro” e se soma à história da luta no Gueto de Varsóvia, à revolta e fuga do campo de extermínio de Sobibor, Auschwitz, Minsk, Mazowiecki, Kruszaya, Krychow e de outros. Embora nem sempre registrados nos livros de História ou documentos, os acontecimentos estão gravados na memória de quem vivenciou e sobreviveu à tragédia que assolou o povo judeu na Europa, nas décadas de 30 e 40. 

Para alguns, tais levantes e revoltas podem ser considerados “inexpressivos” diante do número total de judeus – 6 milhões – mortos durante o massacre, fria e sistematicamente planejado pela máquina nazista com o objetivo primordial de aniquilar todos os judeus, indiscriminadamente. Para outros, mais do que o último alento de condenados à morte, foram atos de inacreditável coragem de homens que escreveram com seu sangue o legado que deixaram para o futuro: foram combatentes judeus, até o fim. Não há dúvidas que o exemplo de sua coragem inspirou os milhares de sobreviventes que deixaram uma Europa que os traíra, à procura de um novo lar na Terra de Israel, a então Palestina, onde lutaram com todas suas forças para construir o Estado de Israel.

O Campo

Treblinka foi criado em meados de 1941 como um campo de trabalhos forçados e foi assim denominado por causa de um vilarejo nas proximidades. Situado a cerca de 100 quilômetros de Varsóvia, recebia inicialmente prisioneiros acusados de crimes pelos alemães. Um ano após a sua abertura, ganhou um anexo, passando a ser chamado de Treblinka I. O novo campo, Treblinka II, diferentemente de seu antecessor, surgiu como campo de extermínio – mais uma etapa da famigerada “Solução Final” idealizada pelo Terceiro Reich para o povo judeu. Localizado a quase dois quilômetros de Treblinka I, o anexo foi construído por empresas alemãs que usavam, como mão-de-obra de custo zero, prisioneiros poloneses e judeus, muitos dos quais trazidos do Gueto de Varsóvia. “Inaugurado” em 23 de julho de 1942 – quando começou a evacuação do Gueto, Treblinka II abrigou a máquina assassina que exterminou os 265 mil judeus da capital polonesa, no maior sigilo. 

Os nazistas não queriam que a verdade sobre a Solução Final fosse conhecida pelo mundo por dois motivos principais. O primeiro era simplesmente conseguir “recolher e reassentar no Leste” os judeus espalhados pela Europa. Não sabendo ou não querendo acreditar na verdade sobre o verdadeiro destino dessas “viagens”, era mais fácil para os nazistas “manipularem” as populações judaicas que recolhiam. O segundo era esconder a verdade do mundo ocidental por medo que suas ações “não fossem compreendidas” e que se descobrisse que os locais para “reassentamento” dos judeus da Europa eram na realidade campos de morte. Mas, apesar de todo o sigilo dos nazistas, desde 1941 notícias e provas sobre o que estava acontecendo vinham chegando até os líderes do mundo ocidental. Muitos foram os que arriscaram suas vidas para tentar alertar o mundo, mas poucos os que acreditaram e esses poucos, nada fizeram. Os judeus da Europa ficaram entregues à sua própria sorte. 

Para tentar garantir o segredo sobre os crimes cometidos em Treblinka, o campo era protegido por duas cercas de arame farpado, sendo que a interna era camuflada com árvores e plantas, justamente para encobrir suas atividades macabras. Para reforçar esta farsa, a câmara de gás ostentava uma Estrela de David e uma cortina, com os seguintes dizeres: “Este é o portão pelo qual passam os justos”.

Trazidos até o campo de extermínio em vagões lacrados, superlotados como se fossem gado, sem água, alimento ou qualquer tipo de atendimento às suas necessidades básicas, cerca de cinco a sete mil pessoas chegavam em cada comboio. Ao desembarque, deparavam-se com a Estrela de David e ouviam um discurso de um oficial da SS explicando-lhes que haviam chegado a um campo de trânsito. Em seguida, as mulheres e crianças eram separadas dos homens; os doentes eram também separados e os mortos jogados em local afastado. Começava então o “macabro ritual” de corte de cabelo e o encaminhamento para as câmaras de gás. Era nesse momento que os guardas incentivavam as pessoas a escreverem para seus familiares – a correspondência seria posteriormente enviada, para reafirmar ao mundo ocidental a impressão de que o processo de transferência judaica não passava de um reassen-tamento. Enquanto Treblinka II funcionou, estas cenas – assim como nos outros campos de extermínio instituídos pelos nazistas – repetiram-se milhares de vezes. Aos que sobreviviam às seleções para as câmaras de gás, era imposta uma rotina rígida e desumana. A meta era reduzi-los a zero, tanto física como moralmente; queriam que perdessem qualquer traço de dignidade humana. As chances de rebelião ou resistência eram nulas. 

A resposta à pergunta tantas vezes repetida sobre como tudo isso pode ter acontecido talvez esteja, em parte, no sigilo mantido sobre toda a operação e segmen-tação de suas etapas. Tre-blinka era uma verdadeira “linha de produção” da morte, eficiente, rápida, sem falhas. Talvez esteja, também, no isolamento no qual eram mantidos os prisioneiros de Treblinka I e Treblinka II, rompido apenas quando alguém passava de um campo para o outro. No entanto, geralmente esta era uma viagem sem volta e dificilmente quem passava de um campo para o outro voltava para contar a história. Os prisioneiros escalados para trabalhar no campo de extermínio vinham, geralmente, nos trens superlotados e, portanto, também não tinham contato com os detidos no campo de trabalho forçado. 

O campo também era dividido em duas áreas – uma que incluía a plataforma dos trens, as moradias para os comandantes, a administração, marcenarias e um espaço reservado para os “recém-chegados” e seus pertences. A outra área incluía o setor de exterminação propriamente dito, com as câmaras de gás, as covas abertas e os locais para cremação, além dos barracos para os prisioneiros judeus. Cercas separavam os dois setores.

Os funcionários – se é que podem ser chamados assim – de Treblinka II eram alemães, ucranianos, havendo entre eles também prisioneiros judeus. Enquanto os dois primeiros grupos eram responsáveis pela vigilância, pela rígida e brutal disciplina e pela operação das câmaras de gás, os judeus brutalizados pela fome e aterrorizados, realizavam as tarefas mais pesadas – as mais terríveis – pois separavam as roupas e objetos de valor de seus irmãos mortos e eram obrigados a jogar nos fornos crematórios ou em valas abertas os cadáveres que outros prisioneiros judeus retiravam das câmaras de gás. Muitas vezes, entre os pertences – ou pior ainda – entre os corpos, reconheciam parentes, filhos, amigos, vizinhos. Em Treblinka, a expectativa de vida destes prisioneiros não ia além de duas semanas, no máximo dois meses. Sobreviver era um grande feito.

O campo de extermínio começou a operar com três câmaras de gás, chegando em pouco tempo a seis. De julho de 1942 a abril de 1943, aproximadamente 870 mil pessoas morreram no local. Em sua grande maioria, os judeus eram friamente assassinados apenas duas horas após sua chegada. 

Os preparativos do Levante

Com a aproximação das forças aliadas, no outono de 1943, os alemães começaram a evacuar o campo. Berlim deu ordens para que Treblinka, assim como outros campos, fossem totalmente destruídos. Não queriam deixar provas sobre a existência ou atividades do local. O processo de desativação foi sendo percebido pelos prisioneiros judeus, à medida que o número de transportes diários diminuía e aumentava o volume das cremações dos corpos jogados nas valas. As covas coletivas eram fechadas como se jamais tivessem existido. Foi nesse contexto que o levante começou a ser planejado por aqueles que não tinham outra certeza senão a da morte nas mãos de seus carrascos. Era apenas uma questão de tempo.

Antes de agosto de 1943, já haviam ocorrido atos isolados de resistência judaica em Treblinka I e II. A cada ato de rebelião que provocasse a morte de oficiais da SS e de guardas ucranianos, as represálias eram terríveis, um número infinitamente maior de prisioneiros eram mortos. A suposição de que o campo de extermínio seria desativado, no entanto, fez com que começasse a ser organizado um movimento clandestino que incluiria detentos dos dois campos e estes liderariam a revolta. O objetivo era permitir a fuga do maior número possível de prisioneiros, além de tentar destruir as instalações mortíferas e eliminar o maior número possível de guardas. Sabia-se que assim que o levante eclodisse, centenas de judeus se uniriam ao movimento e lutariam contra os carrascos. Os preparativos incluíam também a obtenção de algumas armas – inicialmente, subornando guardas ucranianos e, posteriormente, roubando-as do depósito do campo. As dificuldades enfrentadas foram imensas.

Um fato, no entanto, acabou ajudando os prisioneiros na obtenção das armas. Em julho de 1943, o comandante de trabalho do campo, Carl Gustav Farfi, precisou de uma cirurgia que acabou sendo feita pelo médico judeu Julian Choransky. Durante a cirurgia, a chave do depósito de munições do campo foi roubada e copiada. Como “agradecimento” por seus serviços como médico, Dr. Choransky foi mandado às câmaras de gás logo após a cirurgia e não participou da rebelião, apesar de ter sido um de seus mentores.

O Levante

À s 15h35 do dia 2 de agosto de 1943, começou o levante em Treblinka. A data foi marcada para coincidir com a chegada do trem que traria quatro mil judeus ao campo. O plano foi colocado em prática na noite anterior, quando Eliahu Grinsbach roubou do depósito de armas três pistolas e dez granadas que seriam utilizadas para dar início à revolta. Poucas armas para enfrentar os nazistas, mas se um número maior de armas desaparecesse do depósito poderia chamar a atenção dos nazistas. Combinaram, então, que assim que a ação começasse, um grupo de rebelados obteria mais armamentos. Os responsáveis pela revolta dividiram-se em vários grupos, cada um encarregado de uma missão específica. Todos tentariam, envolver o maior número de judeus na luta.

No dia seguinte com a chegada do trem na plataforma de Treblinka, eclodiu o levante. O sinal foi dado quando o prisioneiro judeu Josef Gross lançou uma granada de mão sobre os guardas de uma das torres de vigilância. Simultaneamente à explosão, Gross atirou num oficial da SS, o vice-comandante do campo Kurt Hubert Franz (ver box), um dos mais odiados, que escapou e ordenou ao seu cão que atacasse o detento. O cão estraçalhou Gross. Antes mesmo que Kurt Franz pudesse perceber o que estava acontecendo e dar o alarme para os guardas ucranianos, os judeus começaram a atirar e incendiaram algumas construções. A desproporção entre as partes era inegável – de um lado, homens pobremente armados, enfraquecidos por maus-tratos, subnutridos e totalmente destruídos psicologicamente, e, do outro, soldados do Reich, bem alimentados, treinados e armados. Mesmo assim, os judeus atacaram seus carrascos sem hesitar. Esperar por sucesso seria muito mais que um delírio, mas poderiam tentar matar o maior número de nazistas e, quem sabe, alguns deles poderia sobreviver para contar ao mundo como um pequeno grupo de judeus enfrentara seus carrascos. 

O portão principal foi derrubado por uma explosão, outras atingiram as torres de observação e as portas do depósito de armas foram arrombadas pelos revoltosos, que distribuíram as armas aos seus companheiros. Centenas de pessoas tentaram derrubar a cerca e fugir, mas a maioria foi morta pelos guardas que começaram a atirar para todos os lados e pelos cães que os dilaceravam. Às 15h46, a revolta terminou. Durou apenas onze minutos e deixou um saldo negro: 1.100 judeus mortos. Somente 180 prisioneiros conseguiram fugir. Entre os SS e os guardas ucranianos foram 117 os mortos e feridos. No chão, imóveis sob a mira dos nazistas, deitados em meio ao sangue de seus irmãos, os judeus que sobreviveram. Os fugitivos foram impiedosamente caçados pelos nazistas e seus asseclas e brutalmente assassinados quando encontrados. 

Dezoito, no entanto, foram resgatados, famintos e no fim de suas forças, por um grupo de resistentes judeus que havia sobrevivido à Revolta do Gueto de Varsóvia e que se escondera na floresta. 

Esses sobreviventes foram a memória viva dos fatos ocorridos no dia 2 de agosto de 1943 em Treblinka. Mostraram ao mundo a nova face de um judeu que, mesmo diante das piores adversidades, não se entrega e luta, se necessário, até a morte. Esta verdade, gravada no coração de cada judeu, conseguiu ser traduzida em palavras por Menachem Beguin em seu famoso livro, “A Grande Revolta”: 

“ Foi do sangue, do fogo, das lágrimas e das cinzas que um novo tipo de ser humano nasceu, um gênero absolutamente des- conhecido pelo mundo por mais de mil e oitocentos anos, o judeu combatente”. 


KURT HUBERT FRANZ, um dos membros mais sádicos e cruéis do SS, temido entre os prisioneiros por sua bestialidade, foi promovido após a revolta para o posto de comandante supremo de Treblinka. Responsável pela morte de 300 mil judeus, ficou no campo até seu total desmantelamento, em novembro de 1943. Inutilmente, um dos organizadores da revolta que conseguira se salvar, Judah Klein, tentou levá-lo a julgamento e fazer justiça. Quando do término da guerra, Kurt Franz permaneceu livre na Alemanha e, usando seu próprio nome, trabalhou em uma fábrica de Düsseldorf até 1961, quando, por insistência do governo de Israel, foi julgado. Condenado à prisão perpétua, foi libertado em maio de 1993. O governo alemão alegou, na época, que após 15 anos de prisão a lei alemã permite que se solte qualquer detento mesmo que seus crimes tenham sido hediondos. Morreu como um homem livre na Alemanha, em 1998.


Bibliografia:

• “Jewish Prisoner Uprisings in The Treblinka And Sobibor Extermination Camps;
• The Fourth Yad Vashem International Historical Conference , Jerusalem, Janeiro de 1980; 
• Acts of Resistance and the Organization of the Revolt in Treblinka, The Nizkor Project The Nizkor Project , www.nizkor.org <http://www.nizkor.org>;
• Marrus, Michael The holocaust in History
, 1987;
• Elkins, Michael ,
Forged in Fury.