HÁ 60 ANOS, DURANTE OS MESES DE MARÇO A JULHO DE 1944, ENQUANTO CENTENAS DE MILHARES DE JUDEUS HÚNGAROS ERAM DEPORTADOS PARA O COMPLEXO DE EXTERMÍNIO NAZISTA DE AUSCHWITZ-BIRKENAU, LÍDERES E ENTIDADES JUDAICAS FAZIAM APELOS DESESPERADOS AOS GOVERNOS NORTE-AMERICANO E BRITÂNICO.
Imploravam que a Força Aérea aliada bombardeasse as ferrovias de acesso a Auschwitz-Birkenau, bem como seus fornos crematórios e câmaras de gás. Tentavam , ao menos, diminuir o célere ritmo da destruição. Durante todo o ano de 1944 os pedidos se sucederam, mas a resposta dos aliados era sempre a mesma: "Não". Por que Auschwitz não foi bombardeada? Esta é uma das perguntas mais freqüentes em debates sobre a Shoá. Por que os aliados, em 1944, após terem ocupado o sul da Itália e adquirido a supremacia aérea que lhes permitiu atacar o leste europeu, não tentaram salvar vidas judaicas, destruindo o transporte e a máquina de extermínio?
Entre os que acreditam que esta deveria ter sido a atitude dos aliados está David Wyman, respeitado pesquisador do Holocausto e autor do livro The Abandonment of the Jews. Foi Wyman que, em 1978, em artigo na revista norte-americana Commentary, levantou esta questão. Segundo ele, basta analisar a pergunta para comprovar que, durante a II Guerra Mundial, os judeus europeus foram abandonados à própria sorte. Essa é também a linha de pensamento adotada pelo Museu Yad Vashem, em Israel, e pelo Museu do Holocausto, em Washington, e por um grande número de filósofos, historiadores e pesquisadores.
Elie Wiesel, um dos inúmeros judeus húngaros levados para Auschwitz, recebeu, em 1979, como presente do presidente Jimmy Carter, fotos aéreas do campo tiradas por aviões norte-americanos de abril até dezembro 1944. Na ocasião Wiesel declarou: "A evidência está diante de nós. O mundo sabia e manteve silêncio. Nada foi feito para interromper ou adiar o processo. Sequer uma única bomba foi lançada...".
A pergunta sobre Auschwitz-Birkenau é tema do livro "The Bombing of Auschwitz: Should the Allies Have Attempted It?", editado por Michael J. Neufeld e Michael Berenbaum e publicado em parceria com o Museu do Holocausto, de Washington. Os editores são renomados historiadores, autores de vários livros sobre o assunto.
No livro - que inclui documentos originais - quinze autores que se dedicam ao estudo do Holocausto, II Guerra Mundial e História Militar, debatem vários aspectos desse tema. Inúmeras perguntas são formuladas, como por exemplo, se os aliados tinham conhecimento do que estava acontecendo e quando o souberam? Era tecnicamente possível bombardear o local? A partir de que momento? Qual seria o custo militar e humano de tal operação?
A obra examina também pontos ainda mais dolorosos, como o "valor" da causa judaica para os aliados: Valeria os riscos envolvidos? Havia realmente vontade política de socorrer os judeus da Europa? Em que medida? E, se de fato existia, não haveria uma maneira de se fazer algo?
Os aliados sabiam?
Em relação à pergunta sobre o que se sabia sobre Auschwitz, em particular, e sobre a Shoá, de modo geral, pesquisas realizadas nos últimos 20 anos e documentos do serviço secreto inglês, recentemente divulgados, comprovam que os governos aliados sabiam bem mais do que se supunha - e bem antes do que se pensava - sobre o genocídio.
Desde 1942, Churchill, Roosevelt, Stalin e o Papa tinham conhecimento da intenção de Hitler de aniquilar o povo judeu. Tinham ciência das centenas de milhares de mortes que ocorriam e, desde 1943, sabiam, em linhas gerais, do horror que acontecia em Auschwitz. Quem nada sabia era a grande massa dos judeus europeus...
A triste verdade é que, no decorrer da II Guerra Mundial, o sofrimento e genocídio sistemático do povo judeu não eram assuntos de importância na agenda pública ou militar internacional. Os governos aliados estavam ao lado dos judeus, mas os viam como um problema e um peso a mais; uma causa que - a seu ver - não justificava perderem tempo ou recursos. Acreditavam que os judeus seriam salvos quando conseguissem derrotar os nazistas. E a melhor forma de ajudá-los era apressar a vitória aliada.
Durante toda a guerra, os judeus presos nos guetos ou nos campos acreditavam que o único fator a impedir os aliados de os ajudarem era o desconhecimento do que ocorria. Mal sabiam ter sido abandonados a seu destino, desde o início do conflito.
Os acontecimentos
A possibilidade de bombardear Auschwitz surgiu em fins de março de 1944, quando a Força Aérea norte-americana passou a controlar as posições ideais para atingir o coração do leste europeu. Tanto o complexo de extermínio de Auschwitz-Birkenau como as ferrovias de acesso ao campo estavam dentro de seu raio de ação. Desde dezembro de 1943, ao serem instaladas bases aéreas norte-americanas no sul da Itália, a aviação dos EUA vinha atuando na Europa, tendo tido sucesso no desembarque aliado na Normandia e na batalha para libertar a França. A partir de então, uma das principais estratégias adotadas foi a destruição dos complexos petrolíferos alemães. Aviões norte-americanos passaram a operar com este objetivo em toda a aérea próxima a Auschwitz.
Os pedidos para bombardear o campo de extermínio começaram a ser feitos pelos líderes da resistência judaica na então Eslováquia, após informações obtidas junto a dois judeus eslovacos - Rudolf Vrba e Alfred Wetzler - que, em abril do mesmo ano, após milagrosamente fugir de Auschwitz, alcançaram a resistência. Os jovens, que haviam passado dois anos presos nesse campo, tinham valiosas informações sobre o local e o genocídio sistemático que lá ocorria. Em um depoimento de 30 páginas, conhecido como "Relatório Vrba-Wetzler", forneceram dados precisos e detalhados sobre o campo, sua topografia, a localização exata das câmaras de gás e dos fornos crematórios, técnicas empregadas para a morte e cremação dos corpos, além de estatísticas com registros mensais da macabra sistemática.
Os dados eram assustadores - até 12 mil pessoas eram mortas e cremadas por dia! Em sua maioria eram judeus enviados às câmaras de gás logo após desembarcar dos trens. Os jovens deram também um alerta sinistro: estavam em andamento preparativos para o extermínio dos judeus húngaros. As revelações eram chocantes. O relatório foi imediatamente despachado para a liderança judaica húngara. Em maio chegou às mãos dos representantes do Congresso Mundial Judaico, em Genebra, e da Comissão de Refugiados de Guerra. As informações confirmavam, entre outras, as de um oficial polonês não-judeu que, após fugir de Auschwitz, também relatara o que vira. Até junho de 1944 as informações conseguem passar por todos os entraves diplomáticos e políticos e chegam às lideranças aliadas. São também publicadas na imprensa suíça, britânica e norte-americana. Até o final de junho o mundo todo conhecia a verdade sobre Auschwitz-Birkenau e seus campos de extermínio.
Enquanto as lideranças mundiais recebiam as informações, o alerta sobre os planos referentes aos judeus húngaros se tornou cruel realidade. Em 15 de maio, os nazistas que vinham concentrando os judeus no leste da Hungria, desde meados de abril, iniciaram sua deportação. Todos os dias, 3 mil deles eram amontoados em quatro trens e levados para Auschwitz - 95% morriam ao chegar. Hoje se sabe que, entre 15 de maio e 9 de julho de 1944, quando pararam de forma repentina as deportações, 434.351 judeus húngaros foram enviados para Auschwitz, em 147 trens.
Os judeus que viviam em Budapeste - mais de 300 mil - foram milagrosamente salvos quando as autoridades húngaras, com medo que o bombardeio sobre a capital fosse uma retaliação aliada, decretaram o fim das deportações. Mas, até novembro de 1944, os nazistas continuaram a alimentar os fornos crematórios de Auschwitz com judeus vindo de outras partes da Europa.
Apelos generalizados
Ao ver a rápida deportação dos judeus húngaros, líderes comunitários de Budapeste apelaram imediatamente aos aliados para que bombardeassem as linhas de trens para a Polônia. Não receberam resposta. Um segundo pedido foi enviado na semana seguinte. Mais um foi feito por líderes sionistas da Agência Judaica. Pedidos similares são enviados, entre outros, pelos grupos ortodoxos Agudat Israel e Vaad Hatzalá, por membros do Congresso de Refugiados de Guerra e da Conferência Judaica Americana. O apelo mais dramático, datado também do dia 15 de maio de 1944, foi feito por dois líderes da resistência judaica eslovaca - o rabino Michel Weissmandel e Gisi Fleichman. A carta foi escrita em uma caverna perto de Lublin e implorava por ajuda, descrevendo com angústia as primeiras deportações dos húngaros e o brutal destino que os esperava. "A cada dia, 12 mil almas são arrancadas ... os deportados são enviados para Auschwitz para serem mortos com gás cianídrico...". Na carta, Weissmandel e Fleichman pediam o bombardeio das ferrovias de acesso a Auschwitz e de suas câmaras de morte. "E vocês", continua a mensagem, "nossos irmãos do mundo livre, onde estão? O que estão fazendo para parar esta carnificina?...Há apenas uma coisa que pode ser dita em sua defesa...que desconheciam a verdade".
A decisão de não bombardear
No dia 21 de junho, o Ministério de Guerra dos Estados Unidos recebe o primeiro pedido - e o rejeita. A explicação para a negativa afirmava que tal operação era "impraticável, visto que seria necessário o deslocamento de contingentes indispensáveis para o sucesso de outras operações aliadas". O Departamento de Estado norte-americano também rejeitou o plano, sem sequer examinar sua exeqüibilidade. Os órgãos governamentais norte-americanos e britânicos reiteraram sua posição, afirmando que o melhor auxílio que poderia ser prestado às vitimas da perseguição nazista era a derrota rápida de seus algozes. Usando esta decisão como precedente, todos os demais pedidos foram sumariamente rejeitados.
Na realidade, a decisão foi baseada em uma política secreta adotada pelos aliados em fevereiro daquele ano. Na ocasião, britânicos e norte-americanos já haviam decidido que "forças militares aliadas só seriam usadas para socorrer vítimas da opressão inimiga quando este socorro fosse o resultado direto de alguma operação militar conduzida com o intuito de derrotar as forças militares do inimigo". Em outras palavras, os militares só participariam de uma ação de auxílio quando esta ocorresse acidentalmente, durante operação militar convencional.
Além do mais, entre os chefes de governo aliados, Churchill era o único a realmente apoiar a idéia de bombardear Auschwitz. Chegou a declarar que o que acontecia com os judeus era "provavelmente o maior e mais terrível crime de toda a história do mundo". E, decidindo que algo precisava ser feito, após ser informado dos apelos feitos pelos representantes da Agência Judaica, instruiu, no dia 7 de julho, seu secretário de Estado, E.Eden, a adotar medidas concretas. Churchill teria dito: "Veja tudo aquilo que você pode conseguir com a Força Aérea britânica e, se for necessário, use meu nome". Mas nada foi feito. Stalin não se importava com a política anti-semita do governo nazista, muito menos com o destino dos judeus. E nada fez... Roosevelt, cuja posição em relação aos judeus era, na melhor das hipóteses, ambígua e distante, supostamente não se manifestou sobre o assunto.
Mas os pretextos oficiais usados para tanto descaso com os judeus eram postos de lado quando se tratava de salvar outros europeus ou de enviar apoio a grupos de resistência não judaicos. Um exemplo foi o que ocorreu em agosto de 1944, quando a resistência polonesa iniciou, em Varsóvia, um levante contra os nazistas. Apesar de exigir um grande deslocamento de recursos humanos e materiais e de saber que os resultados práticos iam ser ínfimos, os líderes aliados ordenaram a ação como prova de sua solidariedade com o povo polonês. Para salvar obras de arte, como a cidade de Kyoto (Japão) ou castelos medievais em Rotemburgo (Alemanha), foram deslocados contingentes militares aliados. Na Áustria, em abril de 1945, para salvar 150 cavalos Lipizzaner, o general Patton desviou militares norte-americanos de seu caminho.
Havia fundamento?
Será que as alegações para a recusa dos aliados em atender os apelos tinham algum fundamento? Era realmente uma proposta impraticável? Era, realmente, "sem sentido", pois já era muito tarde para salvar a maioria das vítimas? Na realidade, a operação não era mais complicada do que qualquer outra missão empreendida pela Força Aérea norte-americana, assim como o desvio de rota necessário para que os aviões bombardeassem Auschwitz era de apenas alguns quilômetros.
Desde o dia 7 de julho, aviões e bombardeiros norte-americanos e britânicos passaram a voar sobre as linhas ferroviárias da área. Nem seria necessário deslocar um número maior de aeronaves - pois, de julho a novembro de 1944, as áreas de Blechhammer e outros alvos próximos a Auschwitz foram atingidas dez vezes em operações que envolveram 2.800 aviões. No dia 20 de agosto, em uma operação com 227 aviões, 127 dos quais de grande porte, foram despejadas 1.336 bombas sobre a fábrica I.G. Farben-Monowitz, a menos de dez quilômetros a leste das câmaras de gás de Auschwitz. Estas permaneceram intactas. Entre os dias 7 e 20 de novembro, uma refinaria de petróleo, distante cerca de 75 km de Auschwitz, foi atacada dez vezes. O próprio campo foi atingido acidentalmente duas vezes. Muitas dessas missões voaram durante longo tempo sobre os trilhos da morte e bombardeá-los teria sido extremamente fácil. Os líderes judeus acreditavam, à época, que se fossem danificadas as estradas de ferro que levavam os judeus à Polônia haveria pelo menos um atraso nas deportações. Pode-se até discutir os resultados desta opção, pois as ferrovias poderiam, em teoria, ser reconstruídas em alguns dias. Porém, se o alvo dos bombardeios fosse a destruição das câmaras de gás e fornos crematórios, haveria uma interrupção no ritmo das mortes, além de que naquele estágio da guerra teria sido praticamente impossível aos alemães reconstruírem suas instalações. Já vimos que entre os meses março e setembro 1944 o ritmo das deportações tinha sido acelerado e trens carregados de judeus chegavam não somente da Hungria, mas de todas as partes da Europa. Como Auschwitz tinha a capacidade de matar e cremar 2 mil pessoas a cada meia hora, muitas poderiam ter sido salvas. Sobre quantos poderiam ter sido poupados, David Wyman calcula que pelo menos 100 mil judeus foram mortos em Auschwitz, após o ataque aéreo aliado de 20 de agosto. Mas, como escreveu a historiadora norte-americana, Doris Goodwin, "na realidade, não importa quantos judeus poderiam ter sido salvos. Mesmo se fosse para salvar a vida de um único judeu, teria valido a pena bombardear Auschwitz-Birkenau".
Outra alegação para a não realização da ação foi a de que o ataque aéreo provocaria a morte de muitos detentos. Apesar do assunto ter perturbado imensamente os líderes judeus da época, eles sabiam que a opção de não bombardear não significava uma garantia de vida para os que estavam no campo. Além do mais, os riscos poderiam ser reduzidos, pois as câmaras de gás - devido à sua localização e tamanho - podiam ser detectadas mesmo de grandes alturas. As fotos aéreas publicadas em 1978 mostram-no claramente.
De maio até dezembro de 1944, os aviões aliados fotografaram a região de Auschwitz-Birkenau. Essas imagens eram parte de uma missão cujo objetivo era fotografar a fábrica da I.G. Farben, em Monowitz, distante apenas quatro quilômetros de Birkenau. Para os que afirmam que, ainda assim, as aeronaves não teriam a precisão necessária, é importante lembrar o exemplo usado sempre que o apelo era feito. Em fevereiro do mesmo ano, 14 aviões aliados receberam a incumbência de apoiar a fuga, da prisão de Amiens, de alguns membros da resistência francesa, prestes a serem executados. A missão foi um sucesso e os aviões bombardearam precisamente os muros da prisão, possibilitando que 150 presos fugissem.
Além do mais, em uma carta escrita em 1997, o rabino Menachem Rubin, sobrevivente de Auschwitz, lembra que para quem estava naquele inferno, "o lançamento de uma bomba no crematório teria o significado de um ato de salvação...". O próprio Wiesel, em seu livro A Noite, relata como ele e outros prisioneiros reagiram ao ouvir bombas caírem a poucos quilômetros de Auschwitz: "Não estávamos assustados; cada bomba nos enchia de alegria, renovando nossa confiança na vida".
No capítulo 11 do livro "The bombing of Auschwitz.", o professor Walter Laqueur, respeitado historiador e autor de vários livros sobre o Holocausto, encerra sua análise da questão com uma frase que fazemos nossa : "Os fatalistas podem ainda afirmar que nada podia ser feito. Tudo o que sabemos é que nem sequer se tentou...".
Bibliografia
Wyman, David, The Abandonment of the Jews
Neufeld ,Michael J. e Berenbaum ,Michael The bombing of Auschwitz: Should the Allies have tempted it?", University Press of Kansas
www.yadvashem, The Auschwitz Album, Serial Photographies of Auschwitz