A incrível história das crianças que escapam do gueto e da morte na Varsóvia ocupada e tentam sobreviver vendendo cigarros na 'parte ariana' da capital da capital.
Terminada a barbárie da 2a Guerra Mundial, um judeu que atuou na Resistência retornou à capital polonesa em ruínas para resgatar papéis, que, acondicionados em esconderijos subterrâneos, traziam registros de uma impressionante história de pequenos heróis: a saga de crianças judias que escaparam do Gueto de Varsóvia e sobreviveram na chamada parte ariana da cidade, recorrendo aos mais diversos artifícios. Entre eles, a venda de cigarros na Praça das Três Cruzes. O partisan do Movimento de Resistência Judaica que resgatou os papéis amarelados e fotos daqueles dias sombrios se chamava Joseph Ziemian, nascido na capital da Polônia em 1922. Sua documentação serviu de base para o livro Os vendedores de cigarros da Praça das Três Cruzes, já publicado em inglês, hebraico, iídiche, polonês e romeno. A obra de Ziemian recebeu ainda, em Nova York, um prêmio literário oferecido pelo Congresso Judaico Mundial e virou produção transmitida na TV israelense. O livro editado pelo Yad Vashem veio em 1962.
A narrativa de Ziemian documenta a incrível história de crianças e adolescentes que, empurrados pela deterioração das condições do Gueto de Varsóvia, infiltraram-se na parte ariana da cidade, em busca de meios de sobrevivência. Envolveram-se, por exemplo, na venda de cigarros. E também no contrabando de armas.
Um desses pequenos heróis foi Yosef Shapira, que tinha nove anos quando começou a guerra, em 1939. Ele perdeu seus pais, uma de suas irmãs e seus irmãos, vítimas das desumanas condições do Gueto de Varsóvia. Empurrado pela máquina mortífera dos nazistas, Yosef se arriscava atravessando os muros e se infiltrando na parte ariana da capital polonesa.
Shapira, que no pós-guerra se estabeleceu em Israel, deu um depoimento ao boletim informativo do Keren Hayesod, também reproduzido pelo diário Yedioth Ahronot : "O mercado de cigarros era dirigido por adolescentes poloneses que tinham de 12 a 15 anos, como nós, e que se tornaramo arrimo de suas famílias".
O sobrevivente do Holocausto explicou que aquele comércio contribuía de forma decisiva para a sua sobrevivência, por dar uma ocupação às crianças que se embrenhavam ilegalmente na parte ariana de Varsóvia, impedindo que ficassem vagando sem destino e, assim, levantassem suspeitas. Além de permanecerem ocupadas, elas conseguiam também levantar recursos, ainda que parcos, para comprar alimentos.
Quando a guerra eclodiu, em 1939, Varsóvia abrigava quase 400 mil judeus. A vida comunitária se notabilizava por uma intensa atividade em frentes como assistência social, educação e cultura. O anti-semitismo já mostrava suas garras muito antes da invasão nazista, que impôs ainda a divisão da capital, com a criação do gueto, e levou a condição de vida da comunidade judaica a padrões insuportáveis.
Joseph Ziemian trabalhou, no Gueto de Varsóvia, na Centos (Instituição para Bem-estar Social das Crianças). Escapou daquela prisão a céu aberto, assumiu uma identidade de não-judeu e passou a trabalhar na parte ariana da cidade, no Movimento de Resistência Judaica. Uma de suas atividades era zelar por centenas de judeus que se escondiam da sanha nazista. Entre eles, as crianças vendedoras de cigarros na Praça das Três Cruzes.
Em seu livro, Ziemian, que faleceu em Israel em 1971, começa os relatos a partir da destruição do gueto, em 1943, após o heróico levante liderado por Mordechai Anielewicz. "Muito poucos judeus conseguiram escapar da morte, freqüentemente pelos métodos mais complicados. Chegando ao lado ariano, eles levavam agora uma vida mais ou menos camuflada", escreveu ele. "Eles se escondiam em sótãos e em ruínas; um certo número foi escondido por poloneses; em alguns casos devido a amizades, em outros, por conta de pagamento. Todo dia era uma loteria, com a sobrevivência em jogo".
Yosef Shapira, em seu depoimento ao Keren Hayesod, relatou como era o cotidiano de uma criança com a vida sempre por um fio: "Vocês têm que entender que o perigo e a morte estavam-nos espreitando em cada esquina, a qualquer momento. Uma palavra errada ou uma ação desastrada era o necessário para alguém identificá-lo como judeu e delatá-lo, e o resto não é preciso contar, é obvio". Prosseguiram as lembranças: "Na realidade, estava vivendo como um perseguido, um animal acuado, cujo único objetivo na vida era sobreviver mais um dia, simplesmente me manter vivo".
Yosef Shapira concedeu a entrevista aos 76 anos de idade, em sua casa em Holon, em Israel. À equipe do Keren Hayesod, o sobrevivente do Holocausto se mostrou visivelmente emocionado. Além de falar de reminiscências, ele também havia acabado de comparecer à cerimônia em que seu neto, após concluir o curso, recebera as asas do distintivo de piloto da Força Aérea de Israel. "Se, há uns 60 anos atrás, alguém, no gueto, tivesse me dito que eu teria o privilégio de viver em um Estado judeu independente, e que meu neto seria piloto de combate, eu não teria dúvidas de que esse alguém era louco", declarou Yosef Shapira.
Outro integrante do grupo de vendedores de cigarros da Praça das Três Cruzes que se estabeleceu em Israel após a guerra foi Jorek Plonski. Ele nasceu em 1926 e quando começou a guerra, acompanhado da irmã, buscava obter dinheiro com a venda de diversos produtos nos mercados de Varsóvia. Em 1940, sua família foi confinada no gueto.
Após a deportação de seus pais para campos de extermínio, Plonski ingressou na resistência que se organizava dentro do gueto de Varsóvia. "Eu conhecia bem os pontos de passagem da parte ariana para o gueto, então eu contrabandeava comida e armas para os combatentes", relatou Plonski em seu testemunho à Casa dos Combatentes do Gueto, reproduzido em parte pelo jornal israelense Haaretz. "Eu participei do levante em abril de 1943", narrou Plonski. "Fui um dos últimos no gueto, e deixei-o em julho de 1943, passando pelos esgotos para a parte ariana". O adolescente judeu circulava com documentos falsos, vendia cigarros e dormia em esconderijos como porões de casas destruídas. Também atravessou noites em um cemitério católico, para escapar das patrulhas nazistas.
Depois de driblar a morte, o sobrevivente do Holocausto emigrou para Israel. Lutou na Guerra de Independência, foi um dos fundadores do kibutz Meggido e, no final de sua vida, dedicou-se à criação de um museu em Guivat Haviva, para mostrar como era a vida judaica em cidades polonesas, antes da 2° Guerra Mundial, e também para documentar histórias do Holocausto como a sua, de vendedor de cigarros na Praça das Três Cruzes.
Em abril passado, o Haaretz noticiou a morte de Jorek Plosnki, aos 83 anos, vítima de um câncer que não conseguiu impedir seu trabalho pela criação do memorial em Israel. Graciela Ben Dror, diretora de um centro de pesquisa e estudo do Holocausto em Guivat Haviva, definiu ao jornal israelense a vida de Plonski: "Ele representou o que aconteceu ao Povo Judeu no século 20, o Holocausto e a redenção, as privações e a luta pela fundação de um Estado".
O Jornalista Jaime Spitzcovsky é editor do site www.primapagina.com.br. Foi editor internacional e correspondente em Moscou e em Pequim.