O relato a seguir se baseia em importante documentário realizado pelo cineasta judeu holandês, Willy Lindwer, depois transcrito em forma de livro. Durante dois anos ele entrevistou mulheres sobreviventes da 2ª guerra que, de alguma forma, cruzaram seus passos com os de Anne Frank, a menina judia que, em função de seu célebre diário, passou a simbolizar para a posteridade os horrores do holocausto.
O “Diário de Anne Frank” abrange o período de 12 de junho de 1942 a 1 de agosto de 1944, quando seu esconderijo em Amsterdã foi descoberto pelos nazistas e a família Frank foi deportada para o campo de concentração de Auschwitz. Depois, Anne e sua irmã Margot foram transferidas para outro campo, o de Bergen-Belsen, onde ambas morreram em março (não se sabe se no dia 15 ou no dia 31) de 1945, apenas dois meses antes do fim do conflito.
Embora o diário de Anne tenha sido traduzido para mais de 50 idiomas e tenha, desde então, emocionado gerações, pouco se sabe sobre as suas últimas semanas de vida. Algumas das mulheres entrevistadas por Lindwer conheciam a família Frank desde os tempos de paz em Amsterdã e algumas foram colegas de Anne na escola. De seus depoimentos se conclui que a crueldade nazista superou todos os limites do comportamento humano, transformando as crianças, principalmente as crianças, em animais descartáveis. A holandesa Hannah Elisabeth Pick Goslar e sua irmã sobreviveram a Auschwitz e Bergen-Belsen e, depois da guerra, foram para Israel contando com a ajuda de Otto, pai de Anne. Assim como a família Frank, sua família havia emigrado em 1933 da Alemanha para a Holanda. Ela era vizinha de Anne no bairro de Merwdplein, ao sul de Amsterdã, e ambas foram colegas de classe desde o jardim de infância até o curso ginasial. Ela perdeu o contato com os Frank em 1942, quando Otto, a mulher e as filhas se refugiaram no “Anexo”, seu famoso esconderijo. Hanna só voltou a falar com Anne três anos mais tarde através de uma cerca de arame farpado em Bergen-Belsen.
Ela relembrou as agruras sofridas no campo de concentração, tendo sido uma das mais marcantes a contagem à qual as mulheres eram submetidas todos os dias. Ficavam de pé, em fileiras, de quatro a cinco horas, enquanto os alemães as contavam e recontavam, com receio que alguma fugisse. “Fugir para onde, com uma estrela de David costurada na roupa, sem dinheiro, sem nada? Um dia, em fevereiro de 1945, reparei que grandes tendas haviam sido colocadas num local pouco afastado do nosso e separado por uma cerca de arame farpado. Soube que ali se encontravam prisioneiras oriundas da Holanda. Consegui fazer contato com uma delas e perguntei se ela conhecia minha amiga Anne Frank. Disse que sim e que iria chamá-la, mas não podia chamar também a irmã porque ela estava muito doente, num beliche. Sobre o arame farpado havia uma espécie de cortina de palha e, por isso, além da escuridão do inverno, eu não pude ver Anne, apenas ouvir sua voz. Mesmo na sombra, percebi que não era a mesma Anne tal a sua esqualidez. Ela começou a chorar e me disse que não tinha mais pai nem mãe”.
No decorrer daqueles dias, as prisioneiras receberam pequenos pacotes contendo biscoitos enviados pela Cruz Vermelha Internacional. Hannah pediu às outras mulheres que cedessem um pouco de seus biscoitos para que ela pudesse preparar um pacote para Anne. Na noite seguinte, quando foi ao encontro da amiga junto à cerca, arremessou-lhe o pacote. “Anne passou a gritar quase histérica. Perguntei o que tinha acontecido. Ela respondeu que uma mulher ao seu lado se apossara do pacote e não queria devolver. Pedi que se acalmasse, que eu tentaria jogar outro pacote, como de fato fiz, poucos dias depois, e ela conseguiu pegá-lo. Foi a última vez que ouvi sua voz”.
O cineasta que realizou o mencionado documentário levou mais de um ano até convencer Janny Brandes a prestar seu testemunho. Ela conheceu a família Frank na estação ferroviária de Amsterdã, de onde os judeus foram deportados. Janny fora presa por causa de sua atividade na resistência holandesa contra os invasores nazistas. Dotada de forte personalidade, descendente de uma família de sionistas socialistas, dedicou-se de corpo e alma a cuidar dos doentes em Bergen-Belsen, sobretudo de Anne e Margot, ambas acometidas de grave tifo. “As condições de saúde nos barracões eram tão terríveis que uma simples infecção na garganta era capaz de matar uma pessoa. A par disso, havia muitas prisioneiras com febre escarlate, uma doença muito contagiosa, mas nem por isso elas eram separadas das demais”. Em seu depoimento filmado, lembrou que no barracão em Bergen-Belsen no qual fora confinada havia três níveis de beliches e que cada suposta cama abrigava duas pessoas.
Na verdade, quase tudo ali era improvisado porque os nazistas não esperavam receber novas levas de prisioneiros. Isso tinha acontecido por causa do início da evacuação de Auschwitz, situado no percurso do exército soviético, que estava cada vez mais próximo. Janny recorda que lhe chamou particularmente a atenção o comportamento das irmãs Frank, que jamais se separavam e permaneciam unidas em face de quaisquer adversidades. Perdeu-as de vista por alguns dias, mas, em seguida, acomodou-as num beliche no mesmo barracão onde ela estava. Àquela altura, as duas meninas ainda estavam relativamente bem de saúde, porém Anne contraiu tifo, assim como Margot. Anne permaneceu firme até a morte da irmã, o que a fez desistir de tudo. Jogou fora suas roupas e passou a perambular pelo campo envolta num cobertor. Assim foi vista pela última vez. Faleceu no dia seguinte ao da irmã. Em 1946, depois da vitória aliada, foi Janny quem escreveu para Otto Frank, informando que suas duas filhas haviam morrido naquele campo de concentração.
A família de Rachel Amerongen foi toda assassinada em Auschwitz, o pai, a mãe e dois irmãos com suas mulheres. Ela conseguiu se esconder em Amsterdã, aonde se infiltrou no mercado negro de cupons de racionamento, cedido a judeus e não-judeus. Certo dia, viajando de trem de Rotterdã a Amsterdã, foi presa e levada para Westerbork, um campo de trânsito de onde partiam as deportações definitivas. Foi ali que Rachel conheceu a família Frank. “Fui designada para a faxina e Anne Frank veio ao meu encontro dizendo que queria ajudar, que era habilidosa e capaz de cumprir qualquer tarefa. Era uma doce menina, um pouco mais velha do que aparece nas suas fotografias que foram divulgadas depois da guerra”. No dia 3 de setembro de 1944 dali partiu um trem com destino a Auschwitz e Rachel nele se encontrava. Assim como outros milhares de prisioneiros foi transportada daquele campo de extermínio para Bergen-Belsen.
No barracão em que foi confinada tornou a ver as irmãs Frank. “Elas estavam com a cabeça raspada e tão esqueléticas que mal as reconheci. Somente pela aparência de ambas, dava para perceber que estavam com tifo e que seu fim estava próximo. Ficavam estiradas perto da porta de entrada e quando entrava o vento frio, Anne e Margot pediam: ‘fecha a porta’, ‘fecha a porta’. Não me lembro qual das duas morreu primeiro”. Depois da guerra, Rachel foi viver em Israel e assim concluiu seu depoimento: “Aqui Anne Frank é uma lenda e, ao mesmo tempo, uma pessoa viva. Acho que não existe uma só cidade neste país onde não haja seu nome numa rua. Anos atrás fui à Holanda onde moram minha filha e minhas netas gêmeas. Queriam levar-me à casa de Anne Frank. Relutei muito até concordar porque preferia encerrar este assunto. Fiquei perturbada com a quantidade de turistas ali dentro e que não paravam de tirar fotografias. Minha filha sugeriu que eu dissesse àquela gente que havia conhecido Anne Frank, mas preferi ficar calada. Na saída, registrei no livro dos visitantes: ‘Não sei se Anne Frank gostaria disso’ ”.
Bloeme Evers e seu marido, Hans, sempre se destacaram como dedicados ativistas da comunidade judaica de Amsterdã. Ela recorda que quando terminou o curso ginasial, era a única remanescente em sua sala de aula. Todas as demais jovens haviam emigrado ou, a exemplo da família Frank, optado por se esconder. Bloeme conheceu Anne e Margot Frank no curso primário do Liceu Judaico da capital holandesa e só foi reencontrá-las no campo de trânsito de Westerbork. Sua família também se encontrava num esconderijo quando foi descoberta pelos nazistas. “Não tenho recordações muito precisas daquele lugar a não ser que o mais importante era saber adaptar-se às circunstâncias. Entretanto, lembro-me bem do trem que nos levou para Auschwitz. As pessoas estavam imprensadas umas contra as outras e só nos restava dormir...em pé”.
Willy Lindwer escreve que todos os contatos que manteve com a sobrevivente Lenie de Jong foram sempre na companhia de Bloeme Evers. As duas sedimentaram uma grande solidariedade em Auschwitz. A força e a determinação de uma sustentaram a outra e vice-versa. Assim sobreviveram e ficaram amigas para sempre. O cineasta revela que ficou emocionado durante a entrevista com Lenie de Jong. Sentiu estar na presença de uma mulher sensível e agradável que lhe disse jamais ter compreendido a razão de sua sobrevivência depois de tudo o que sofreu em Auschwitz. “Talvez pessoas religiosas tenham uma compreensão melhor do que a minha”. Seu marido também foi prisioneiro em Auschwitz, no mesmo alojamento de Otto Frank. Depois da libertação, o casal fez um tortuoso caminho até regressar à Holanda, passando pela União Soviética, França e Bélgica. Suas lembranças do campo são terríveis: “Lá a higiene era abominável principalmente por causa da escassez de água. Nossa alimentação consistia de um pedaço de pão, às vezes um mínimo de manteiga ou uma colher de chá de mel. Eu e Anne partilhávamos tudo que recebíamos de manhã e à noite. Eu me lembro que num dia Anne apareceu com erupções na pele: estava coberta por sarnas. Foi levada para a enfermaria e Margot ficou ao seu lado todo o tempo. A mãe estava em constante estado de desespero. Não tinha ânimo sequer para comer a magra ração de pão. Quando as meninas foram levadas para Bergen-Belsen, a Sra. Frank ficou em Auschwitz. Nunca mais se viram”.
Ronnie Goldstein Cleef engajou-se na resistência holandesa assim que seu país foi invadido. Além de atuar como mensageira entre os diversos grupos, competia-lhe a tarefa de arranjar esconderijos para os judeus e também falsificar documentos. Denunciada, até hoje não se sabe por quem, foi presa e transportada para Auschwitz em setembro de 1944. Ali começou a desenhar e a escrever poemas que foram divulgados depois da guerra e lhe ensejaram uma bem sucedida carreira como artista plástica. Ronnie, nascida em Haia, vem de uma família judaica de comportamento liberal. Seu pai viajava muito para a Alemanha a negócios, mas embutiu nos filhos um sentimento anti-germânico. Depois da ascensão do nazismo profetizou que um dia a Alemanha invadiria a Holanda “mas nunca nos pegarão”. Contudo, Ronnie acabou sendo pega e mandada para Weterbork, onde conheceu a família Frank. Estranhou que os Frank, pai, mãe e filhas, tivessem ficado escondidos no mesmo lugar. O que era recomendável, naquelas circunstâncias, era que as famílias se separassem, pai para um lado, mãe para outro e o mesmo com os filhos. Assim, se algum membro da família viesse a ser preso, os demais teriam chance de escapar. Ela lembra que os Frank eram muito unidos e estavam igualmente deprimidos. Imaginavam que estariam a salvo em seu “Anexo” e que nunca seriam descobertos.
Quando veio a ordem de deportar os judeus para Auschwitz, Ronnie e os Frank se encontravam no mesmo vagão do trem da morte. Mas, os humilhados e infelizes passageiros ignoravam que a morte seria sua Solução Final. Alguns judeus tinham recebido de seus familiares cartões postais vindos de Buchenwald apenas com relatos dos trabalhos que faziam porque todos os conteúdos de todas as correspondências eram monitorados pelos alemães. Portanto, julgavam que estavam viajando para um campo de concentração apenas para trabalhar. Além disso havia uma centelha de esperança. Os prisioneiros ficaram sabendo que os aliados já haviam libertado Paris, ou seja, a guerra estava prestes a terminar. A narrativa de Ronnie sobre a chegada a Auschwitz é semelhante à de tantos outros sobreviventes: “Era uma situação surreal, parecendo ficção científica extraída de um filme. Fomos colocados em filas e submetidos a uma seleção cujos critérios nos eram desconhecidos. Lá estava Mengele que apontava, nada falava, apenas apontava para as pessoas. Para a direita nós, os jovens, e quem mais tivesse aparência sadia. Para a esquerda, os mais idosos e as crianças”. Depois das primeiras semanas no campo, Ronnie fez amizade com Anne Frank a ponto de ambas dividirem a mesma caneca porque só possuíam uma. Em seguida, decorrido algum tempo, as prisioneiras foram postadas em filas e submetidas a uma nova seleção. Ronnie ficou ao lado de Anne e Margot. Conforme recorda, no que se refere àquela ocasião, Anne parecia muito calma, mas, na verdade, estava apática e ausente. De súbito, foram levadas a um barracão vazio e tiveram seus cabelos raspados. À medida em que o tempo corria, as pessoas emagreciam, ficavam doentes, muito doentes e morriam. Ronnie, acometida pela febre escarlate, foi parar na enfermaria junto com Anne e Margot, cobertas por sarnas, e em vias de serem vítimas do tifo. As irmãs tinham a mãe o tempo todo ao seu lado. Quando Ronnie voltou para o barracão, mais uma vez ficou ao lado de Anne e Margot. Conforme seu relato, a aparência das meninas era terrível e o pavor maior das prisioneiras era a seleção sempre conduzida pelo Dr. Mengele, cujas atrocidades pseudocientíficas eram desconhecidas dos internos de Auschwitz. Como era natural, as prisioneiras se dividiam em grupos nos quais prevalecia um pacto tácito de solidariedade. Anne, Margot e a mãe faziam parte de um grupo de mulheres holandesas e algumas alemãs. Foi neste grupo que as Frank contaram às demais sobre sua experiência no chamado “Anexo”, o esconderijo no qual viveram em Amsterdã. Quando se passaram alguns dias sem que Ronnie visse as irmãs, soube que elas haviam sido transportadas para o campo de Bergen-Belsen aonde transcorreriam suas últimas semanas de vida.
Bibliografia
Lindwer, Willy, “The Last even Months of Anne Frank”, editora Anchor Books, EUA, 1992.
Zevi Ghivelder é escritor e jornalista
O túmulo de Anne Frank
O campo de concentração de Bergen-Belsen, túmulo de Anne Frank, foi construído pelo regime nazista em 1940, entre as pequenas cidades de Bergen e Belsen, a 17 quilômetros ao norte de Celle, na Baixa Saxônia. Ao longo do tempo o campo foi ampliado e dividido em três partes. Uma abrigando prisioneiros de guerra, outra para acomodações dos próprios alemães e a última para prisioneiros sem uma qualificação específica. Em 1944, depois do Dia D e à medida que as forças aliadas se aproximavam da Alemanha, Bergen-Belsen tornou-se um sinistro lugar somente para prisioneiros judeus, evacuados dos campos de concentração mais próximos das frentes de batalhas, a oeste, e do exército soviético, a leste. No início de 1945, a superlotação e as péssimas condições sanitárias provocaram epidemias de tifo, tuberculose e disenteria. No dia 15 de abril daquele ano, forças britânicas libertaram o campo onde encontraram cerca de 60 mil prisioneiros, a maioria deles, doente. Anne Frank e sua irmã ali haviam morrido, um mês antes da libertação.
Anne Frank no palco e no cinema
O livro “O Diário de Anne Frank” foi adaptado para o teatro por Frances Goodrich e Albert Hackett. O espetáculo estreou no teatro Court, na Broadway, no dia 5 de outubro de 1955. O papel de Anne foi interpretado por Susan Strasberg; Otto, o pai, por Joseph Schildkraut (famoso no teatro em íidiche, em Nova York) e a mãe por Gusti Haber. No mesmo mês e ano a peça foi apresentada na Alemanha e, no ano seguinte, na Holanda, contando com a presença da Rainha Juliana na platéia. Houve outra encenação na Broadway em 1997, dirigida por James Lapin e tendo Natalie Portman no papel de Anne. No Brasil, a mais recente encenação da peça estreou no Teatro Deodoro, em Maceió, no dia 4 de novembro de 2015, apresentação do Grupo Cena Livre.
No cinema, o filme, de 1959, foi dirigido por George Stevens com Millie Perkins no papel principal. Os intérpretes do pai e da mãe foram os mesmos da versão para o palco, na Broadway.