Entre 1937-1948, o Brasil sustentou uma política de aparências, que acobertou as práticas antissemitas calcadas em circulares secretas. Neste artigo, discorremos sobre a omissão do governo brasileiro diante do Holocausto e o drama vivenciado pelos judeus perseguidos pelos nazistas.
Gerações da Shoá
Rastrear as trilhas dos judeus perseguidos pelo nazismo entre 1933-1945 nos leva a múltiplos caminhos e encruzilhadas que, nem sempre, têm endereço certo. No entanto, milhares desses judeus apátridas encontraram refúgio nos Estados Unidos, Argentina, Inglaterra, México, Austrália, Chile, Uruguai e Brasil. É impossível descobrirmos os paradeiros de todos, mas certamente muitos ainda podem nos contar suas trajetórias de vida, fragmentos de uma história inacabada. Cabe a todos os cidadãos – de qualquer etnia, religião ou nacionalidade – envolver-se com a reconstrução dessas trilhas que dizem respeito aos valores universais de justiça, dignidade e direitos humanos. A tarefa não é fácil, pois muitas informações continuam esquecidas nos fundos das gavetas ou reservadas para alguns poucos, que sequer têm noção do valor da construção desta memória para um futuro mais tolerante. E no caso daqueles que escolheram o Brasil como segunda pátria, maior ainda é a sua responsabilidade pois foram testemunhas oculares do maior genocídio da história da Humanidade: o Holocausto.
Desde a década de 1980, alguns poucos historiadores e arquivos históricos brasileiros começaram a buscar por indícios que os ajudassem a reconstruir a postura do Brasil diante do Holocausto e dos judeus refugiados do nazismo. Tarefa árdua, pois os arquivos diplomáticos, essenciais para a comprovação da liberação dos vistos de entrada estavam vedados à consulta pública. Os sobreviventes dos campos de concentração e os refugiados de várias nacionalidades, ainda não tinham noção da importância de mergulhar no passado e dar passos fundamentais para o registro da barbárie nazista. Ainda que tais lembranças sejam cruéis, doloridas como cicatrizes que ainda sangram, ninguém tem o direito de se calar diante dos novos genocídios, do neonazismo e do negacionismo que hoje ganham espaço em pleno século XXI. O presente não é melhor que o passado, mas certamente poderemos aprender com os erros e os acertos desde que as dívidas assumidas com a verdade histórica sejam respeitadas. Não devemos renunciar à leitura de nossa história, pois dela depende a identidade e os valores das futuras gerações que não terão a oportunidade de ver e ouvir, ao vivo, a voz de um sobrevivente do Holocausto.
Cabe a nós, de qualquer profissão, etnia, nacionalidade, partido político ou religião, preservar este legado com o objetivo de não abrir espaço para o renascimento da Besta que, como a Fênix, renasce das cinzas. Enfim, somos todos netos das cinzas e daqueles que pereceram como vítimas do nazismo: somos filhos da Memória do Mundo. A história da Shoá não é a “história do outro” pois o direito de ser tratado com dignidade diz respeito a todos nós. Através da reconstrução das histórias de vida dos refugiados do nazismo no Brasil poderemos compreender o que significa, pós-Auschwitz, ser humano e poder ser diferente. Daí a importância do diálogo entre as velhas e as novas gerações que ainda não assumiram o seu papel de guardiães da história e da memória da Shoá.
Portanto, vamos acordar o historiador que cada um traz dentro de si! Buscar indícios deste passado ainda tão recente exige sabedoria, paciência para ouvir e registrar os testemunhos daqueles que sobreviveram ao plano de extermínio sustentado pelo Estado nazista e países colaboracionistas. Os fatos dramáticos e os traumas têm que ser lembrados, gravados e transmitidos através da palavra. Sem a palavra não há transmissão. Caso contrário, estaremos sendo cúmplices do silêncio, o mesmo silêncio que, no passado, colaborou para que o Holocausto atingisse status de genocídio singular dos tempos modernos. Tanto as gerações da Shoá quanto a mídia e os educadores têm o dever ético de registro dessa memória de forma a resguardar o mundo do negacionismo, do antissemitismo e do renascimento das tendências neonazistas.
Em busca da memória dos refugiados
É como se estivéssemos percorrendo uma longa estrada em busca de pequenas luzes que, esporadicamente, iluminam nomes, lugares e rostos. Muitas vezes, estes rostos emergem em meio à escuridão, sendo abruptamente apagados pela mão do esquecimento que não respeita a memória. Buscamos por vozes, mas elas estão distantes no tempo e no espaço. Tentamos identificar algumas silhuetas humanas que, cabisbaixas, passam ao nosso lado como se fossem mortos-vivos saídos de covas coletivas. Pedindo por socorro, erguem seus braços esqueléticos, de pele sobre osso, deixando à mostra apenas um conjunto de números tatuados que ainda sangram, manchando as estrelas amarelas costuradas sobre seus uniformes listrados. Difícil distinguir os farrapos de panos dos farrapos humanos. Ao fundo, não muito distante, ouvimos gritos de homens e mulheres que se superpõem aos choros de crianças assustadas. Com suas cabeças raspadas e seus semblantes pálidos, lânguidos, aquelas figuras desaparecem em meio a uma grande nuvem cinza que os encobre sem deixar vestígios. De repente, silêncio. Não é fácil reconstituir a tragédia que assumiu dimensões de crime contra a humanidade.
O entrelaçamento entre memória-esquecimento é profundo, mas nada deve-nos impedir de reconstituir este tecido de recordações, ainda que nelas predominem o ódio e a dor. Em meio ao trauma devem submergir lições de vida, momentos singulares da existência humana em que alguém estendeu a mão ao outro, compartilhou de um pedaço de pão ou abraçou alguém em meio ao desespero de ser asfixiado em uma câmara de gás. Estas lembranças não devem ser apagadas, pois “apagar tem a ver com ocultar, despistar, confundir vestígios, afastar da verdade, destruir a verdade”, como muito bem afirmou Paolo Rossi em seu livro O Passado, a Memória, o Esquecimento. (Rossi: 2010, p. 32).
Ao abrirmos as velhas gavetas e desamarrarmos as caixas de recordações em busca de indícios desse passado nazista, ainda tão incômodo, reconheceremos os sinais, sons e os odores do “mal-estar da modernidade”. A estética do nazismo, os programas de eutanásia, os assassinatos em massa e os campos da morte são exemplos de uma “evolução macabra” entre racionalidade, tecnologia e burocracia, instrumentos de uma política de Estado. Basta fazermos uma (re)leitura dos documentos nazistas para nos defrontarmos com o processo de construção da intolerância que exterminou mais de 6 milhões de judeus e milhares de ciganos, Testemunhas de Jeová e outros tantos dissidentes políticos.
Lembro-me que ouvindo o testemunho de um judeu refugiado no Brasil desde 1937 recuperamos, através de suas lembranças, o “som de um rádio” que, no passado, anunciou a chegada de Adolf Hitler ao poder. Segundo suas palavras, muitos acreditavam que “tudo aquilo passaria rápido”, sem conseqüências maiores para os judeus que tanto haviam feito pela Alemanha pois ele mesmo havia lutado na Primeira Guerra Mundial, como cidadão alemão. O som de uma voz enérgica e contundente – segundo esse testemunho – anunciava o início da Era Nazi, em 30 de janeiro de 1933, através de auto-falantes dispostos por toda a Alemanha. Mas, as fundações deste novo império estavam fincadas no século 19, construídas com elementos inspirados no pangermanismo, na xenofobia, no nacionalismo e no antissemitismo secular. O ódio contra os judeus não foi uma invenção de Hitler, pois estava arraigado há séculos na mentalidade das populações européia e alemã, em particular, adquirindo com os nazistas proporções inacreditáveis. Foi rápida a passagem do delírio à violência, pois o fanatismo nazista tornou-se um movimento popular alimentado pela propaganda mentirosa, instigada por um conjunto de mitos que reforçavam a ideia de que existia uma “conspiração internacional de judeus e comunistas” articulada para dominar o mundo.
Basta observar os detalhes desta fotografia que registrou os passos de Hitler entre os partidários do nazismo no estádio de Grunewald, de Berlim, em 1933. Complementada com os documentários elaborados pelos próprios nazistas (preocupados com o registro de sua história) recuperamos os gritos histéricos que anunciam a chegada do grande líder, idolatrado como a encarnação da própria imagem da nação: Heil! Heil, Hitler! Sob os efeitos contagiantes do discurso da salvação messiânica sustentada pelo Führer, parte da população alemã delirou acreditando, realmente, que precisava ser salva das “forças do mal”. O mundo levaria décadas para entender que aquele homem, que levou multidões ao delírio, era a expressão máxima da irracionalidade humana e que o nazismo teria um lugar garantido na história dos genocídios.
Na trilha da Diáspora
Documentos de arquivos oficiais e pessoais – muitos dos quais existem no Brasil – demonstram que o preconceito contra os judeus se espalhou rapidamente por todos os setores e segmentos das sociedade alemã atingindo também as instituições dos países colaboracionistas: Judiciário, Forças Armadas, universidades, igrejas, imprensa, associações profissionais e partidos políticos. Muitos dos refugiados que conseguiram vistos para entrar no Brasil eram bacharéis do Direito, engenheiros, agrônomos, intelectuais renomados, jornalistas, artistas, médicos e músicos expulsos dos seus cargos como representantes de uma “raça degenerada”. Valendo-se deste mesmo conceito, o governo brasileiro, sob a liderança de Getúlio Vargas e Gaspar Dutra, manteve, entre 1937-1948, uma política imigratória restritiva que barrava a entrada dos “não arianos”, independente da sua nacionalidade e bagagem cultural.
À medida que ouvimos os testemunhos dos sobreviventes radicados no Brasil, nos damos conta de que as paisagens se alternam compondo cenários absurdos, difíceis de explicar. As recordações se alteram, passando ora pela Alemanha ora pela Áustria, Polônia, Lituânia, Hungria, Checoslováquia, França, Itália, Grécia, Holanda, Dinamarca, Bélgica, URSS, focos de irradiação do terror nazista. Para cada lugar, vislumbramos espasmos do ódio antissemita incorporado por diferentes segmentos sociais ávidos de se tornarem “seres superiores, arianos puros”.
Calcula-se que entre 1933 e 1935 cerca de 78 mil judeus saíram da Alemanha e, em 1938, essa emigração atingiu um total de 150 mil, ou seja, uma parcela considerável da população judaica da Alemanha. Nesse país, as condições de sobrevivência iam minando, em contraposição à intolerância, que assumia dimensões inexplicáveis, ampliando o círculo das minorias escorraçadas. O pogrom de novembro de 1938 – a Noite dos Cristais – quebrou muito mais que simples vidraças. Os atos de vandalismo praticados pelos nazistas estilhaçaram em milhares de pedacinhos o mundo de ilusões que muitos judeus vinham alimentando: de que tudo ia passar. A partir daquela noite, ficou evidente que Hitler não era um mero acidente em suas vidas.
Lisboa, Marselha, Londres, Paris e Xangai despontaram como pontos de trânsito para os refugiados que, a cada dia, engrossavam as rotas de fuga à medida que os nazistas avançam em direção ao Leste Europeu. Os Estados Unidos da América era o país mais visado pelos judeus “desclassificados” de sua condição jurídica de cidadão. Mas lá, também, vigoravam as “cotas por nacionalidade”, indicando que aquela era uma emigração diferenciada. Pairava no ar a ideia de uma catástrofe mundial, mas o mundo estava cego e mudo para a tragédia anunciada.
Transformados em Cidadãos do Mundo – título do meu livro mais recente, publicado pela Perspectiva em 2010 – os judeus apátridas passaram a vagar em busca de um refúgio que lhes garantisse as mínimas condições de sobrevivência. À primeira vista, a expressão “cidadão do mundo” aparece como um elogio ao cosmopolitismo dos judeus, mas, na verdade, representa uma forma sutil de destituir-lhes de seu sentido de pertencimento a uma nação, facilitando a perseguição e reafirmando o perfil de “estrangeiro” universal. Neste contexto, os antissemitas aproveitaram para recuperar a tradicional imagem do judeu errante, tema explorado pela propaganda, literatura e cinema nazistas.
Tratados como párias pela Alemanha e nações colaboracionistas, os judeus passaram a ser vistos como indivíduos “despersonalizados”, sem direitos e deveres para com a sua pátria-mãe, agora indefinida. Reafirmo, endossando Hannah Arendt, que a perda da existência jurídica é o primeiro passo para a eliminação da existência física, como ocorreu nos regimes totalitários do século 20. Perseguidos, assustados e humilhados pela ideologia nazista, os judeus apátridas não tinham para onde ir, pois nem todas as nações expressavam o desejo de adotá-los como cidadão, como ser humano. Seu destino não tinha fronteiras, suas vidas não tinham preço. Era como se uma imensa nuvem negra pairasse sobre a Europa, envolvendo os judeus em uma profunda escuridão. Para além da tragédia vivenciada em seu país de origem, eles contavam com a indiferença e, em alguns casos, com a adesão ideológica e política de muitos outros países - que, dessa forma, colaboraram decisivamente para que os apátridas permanecessem sem refúgio e, portanto, à mercê da ideologia que os queria liquidados. E assim muitos foram exterminados, sem direito a uma lápide sequer.
Faz sentido aqui a frase de Myron Taylor, representante dos Estados Unidos junto ao Comitê Intergovernamental dos refugiados Políticos, em 1939:
“É entristecedor que a civilização européia não tenha conseguido produzir uma cultura capaz de reverter o barbarismo da indiferença, expressa não apenas na questão dos refugiados como também no que concerne aos mais elementares dos direitos humanos das nações”.
O Brasil, apesar de se apresentar como uma nação “aberta” e adepta do espírito humanitário, foi um desses países. Instituiu cotas por nacionalidades e emitiu cerca de 27 circulares secretas antissemitas entre 1937-1948, dificultando a entrada dos judeus apátridas, “classificados” como de “raça semita”, indesejáveis. Raros foram os diplomatas brasileiros em missão no exterior que tiveram a coragem de emitir vistos desrespeitando as normas secretas impostas pelo Itamaraty e, a partir de 1940, endossadas também pelo Ministério da Justiça. Dentre os raros salvadores brasileiros citamos o embaixador brasileiro Luiz Martins de Souza Dantas, hoje reconhecido como “Justo entre as Nações”, ao lado de Aracy Moebius de Carvalho, então secretária e depois esposa do escritor Guimarães Rosa, cônsul em Hamburgo. As histórias de outros tantos salvadores, ainda anônimos para a história do Holocausto,
estão sendo registradas pela equipe do projeto Arqshoah- Arquivo
Virtual sobre Holocausto e Antissemitismo, disponível no endereço www.arqshoah.com.br.
O discurso antissemita da diplomacia brasileira
É de se lamentar que grande parte dos diplomatas brasileiros no exterior tenham rendido glórias à obra e à coragem de Adolf Hitler. Aliás, precisava-se, realmente, de muita coragem para descer ao mais baixo grau de degradação humana, de modo a planejar o extermínio do povo judeu e outras minorias. Da mesma maneira, o governo brasileiro precisou de coragem para fechar suas portas aos milhares de refugiados “semitas” que, levados pelo desespero e pelo medo, tentavam apenas sobreviver. Mentira e omissão foram ingredientes corriqueiros no discurso de muitos destes diplomatas. Acobertados pelos rótulos de seus ofícios confidenciais, esses homens deixaram registrado os mais vis sentimentos antissemitas, ultrapassando os modismos racistas dos anos de 1930 e de 1940. Mário Moreira da Silva, que, em 1938, respondia pelo Consulado Geral do Brasil em Budapeste, ao colocar em prática a Circular Secreta n. 1.127 teve a honra de comunicar ao ministro Oswaldo Aranha que, só no mês de março, havia recusado visto a 58 semitas de origem húngara. Dentre estes, estavam profissionais de alto nível que, pela sua formação, poderiam trazer contribuições para o desenvolvimento do nosso Brasil: advogados, engenheiros, ourives, médicos, comerciantes, químicos, industriais, dentre outros.
Em 1938, Labienno Salgado dos Santos, primeiro secretário da Legação Brasileira em Bucareste (Romênia), escreveu ao Itamaraty enfatizando os inconvenientes da emigração semita para o Brasil. Apresentou uma síntese da situação na Hungria, Áustria e Romênia, onde, assim como na Itália e na Alemanha, os judeus atuavam como “perturbadores da ordem política, social e econômica”. Generalizando seu ódio, o diplomata informou que os judeus poderiam ser identificados por suas ideias, pois “tanto no Brasil, como na Rússia, Polônia e Romênia, eles eram encontrados entre os agentes do comunismo...”; e por seu aspecto físico e caráter, sendo os judeus descritos como mal vestidos e sujos, considerando-se isso como o “aspecto revelador de avareza e sordidez”. [Santos, Estudo..., 1938. AHI].
Esta mesma opinião era compartilhada por Jorge Latour, Representante de Negócios do Brasil em Varsóvia e Roma, em 1936 e 1938, respectivamente. A intenção de Latour era demonstrar ao governo brasileiro que, desde o período bíblico, o povo judeu nunca teve domicílio fixo. Munido do discurso antissemita, distorce os fatos e define as comunidades judaicas como “pequenos estados dentro do estado”, configurando a imagem de um cancro incrustado no corpo da nação. A descrição dos traços dominantes da psique judaica completa-se com a ideia de que, por inclinação, o judeu “nutre o amor ao dinheiro”, sendo, via de regra, “um maçom, um amante das organizações secretas, um simulador nato, prosélito das ações e influências ocultas...”. Para confirmar seus argumentos de que o judeu era uma “raça indesejável”, Latour enviou ao Itamaraty, em 1937, um conjunto de fotografias que mostravam “judeus velhos e sujos” em Varsóvia. Este mesmo diplomata foi nomeado presidente do Conselho Nacional de Imigração durante o governo Dutra, sendo o responsável pela emissão de outras Circulares Secretas antissemitas que proibiam a emissão de vistos aos judeus sobreviventes do Holocausto. Trivialidades do Mal.
Na contramão dos acontecimentos
A partir de centenas de relatórios e estudos diplomáticos, assim como de milhares de vistos indeferidos aos judeus apátridas, fica evidente que o governo brasileiro não se empenhou em salvar e ajudar as vítimas do nazismo. Devemos considerar que o processo de integração dos refugiados à comunidade judaica, em geral, foi facilitado por uma verdadeira rede de contatos articulados por suas organizações comunitárias (Landsmannschaften), que desenvolveram um intenso programa de acolhimento aos judeus até então sem destino. Estas associações supriram, durante anos, a lacuna deixada pelo Estado, que não prestou nenhuma assistência aos recém-chegados. Os refugiados, por uma questão de identidade e de segurança, procuraram seus grupos nacionais (asquenazitas, sefaraditas e orientais) que funcionaram como elos com sua cultura de origem.
Ao invés de ajudar, as autoridades brasileiras mantiveram-se em constante estado de alerta, preocupadas com a possibilidade de os judeus transmigrados invadirem o território nacional através das fronteiras vizinhas. Vários diplomatas, antissemitas convictos, exigiam o cumprimento das Circulares Secretas que funcionavam como instrumentos de contenção dos judeus expatriados. Inclusive, em plena guerra, todos os judeus radicados no Brasil foram passíveis de vigilância e investigação pelo DOPS, suspeitos de serem “Súditos do Eixo”, apesar de espoliados pelo nazismo e desclassificados como apátridas. Vários foram presos e fichados como “inimigos em potencial”, como demonstra a historiadora Renata Mazzeo em seu recente inventário dos documentos do DEOPS intitulado Judeus em Tempos de Guerra (Editora Humanitas, 2011).
Enfim, tanto a documentação diplomática como policial produzida pelas autoridades brasileiras envolvidas com a questão dos refugiados judeus perseguidos pelo nazismo pode ser avaliada como um verdadeiro atestado de inércia. Os governos Vargas e Dutra fizeram jogo duplo na tentativa de não assumir responsabilidades perante ao mundo, que clamava por ajuda. Assim mesmo, apesar das restrições e da inércia, milhares de judeus conseguiram entrar no Brasil munidos de vistos de turistas, vistos diplomáticos ou em trânsito, e, até mesmo como católicos, contribuindo para a configuração das modernas comunidades judaicas radicadas em várias cidades brasileiras. Uma política de aparências prestou-se para acobertar as práticas antissemitas sustentadas pelas circulares secretas e pela omissão diante da tragédia. Neste momento, cabe aos ex-refugiados do nazismo, agora cidadãos brasileiros, contarem as suas versões com o objetivo de preservar a memória de um genocídio que extrapola as fronteiras da história da Alemanha nazista.
Maria Luiza Tucci Carneiro é historiadora, Professora Livre Docente do Depto. de História da Universidade de São Paulo. Autora de: O Anti-semitismo na Era Vargas; O Veneno da Serpente. Reflexões sobre o Anti-semitismo no Brasil; Preconceito Racial em Portugal e Brasil Colônia; e Cidadão do Mundo. O Brasil diante do Holocausto e dos judeus refugiados do Nazismo, publicados pela Perspectiva, dentre outros. Em coautoria com Celso Lafer publicou Judeus e Judaísmo na Obra de Lasar Segall, pela Ateliê Editorial. Atualmente coordena junto ao LEER-USP o Arqshoah- Arquivo Virtual sobre Holocausto e Antissemitismo, cujo portal é www.arqshoah.com.br