'Um dos aspectos mais chocantes do maior ato de desumanidade na história da humanidade foi o extermínio de crianças, entre os milhões de vítimas. Mais de um milhão e meio de crianças foram mortas durante o terror nazista'. (Jonathan Sacks, Rabino Chefe da Inglaterra)

Embora nas primeiras décadas do século 20 a ciência tenha definido que todos os seres humanos pertencem a uma espécie única (pelas mínimas diferenças físicas entre os grupos), tornando inapropriado o uso do termo "raça", a declaração da superioridade da "raça ariana"1, a partir de 1933, pelo Partido do Nacional Socialismo Alemão, levou todos os países europeus conquistados pelos nazistas a experimentar situações extremas.

Considerando que o anti-semitismo foi parte integrante da ideologia do nazismo, pode-se dizer que o ódio ao judeu - parte da identidade européia cristã - fosse desentranhado do mental coletivo europeu, atingindo, nos 12 anos de domínio nazista, todas as nações que assumiram - por ação ou omissão - a perseguição aos judeus.

Inseridos na desigualdade, os nazistas idealizaram "uma sociedade milenar liderada por seres superiores, os arianos". A eles se opunham os judeus em condição de inferioridade, "uma não-raça", e como tal, deveria desaparecer da face da terra2. Para a concretização desse propósito, os tecnocratas do sistema, reunidos em Wansee em 1942, propuseram secretamente a "Solução Final do problema judaico". Os 11.500.000 judeus existentes na Europa deveriam ser exterminados. Seis milhões pereceram, incluindo nesse número velhos, mulheres, crianças, bebês em um "massacre administrativo" de acordo com as normas técnicas da burocracia legal reconhecida no período.

A decisão tomada pela alta cúpula nazista não resultou de um comando impulsivo, mas de um programa solidamente desenvolvido, calculado, prolongado e que exigiu o emprego de milhares de pessoas inteligentes com conhecimentos técnicos e todos os meios de que dispunha o Estado3. Na luta contra um povo sem armas, territórios ou possessões valiosas e não pretendendo sua conversão ideológica ou religiosa, os nazistas, contrariando qualquer guerra convencional, pretendiam somente o extermínio do Povo Judeu. É por isso que este projeto se transformou em acontecimento único na História da Humanidade.

Em 1939, quando a 2a Guerra Mundial foi declarada, os nazistas passaram a enfrentar duas frentes formais de batalha: uma contra os aliados e, a outra, preponderante: a guerra contra os judeus, iniciada em 19334. Embora as operações bélicas tenham acabado em maio de 1945, o anti-semitismo ainda perdura no contexto de muitas sociedades.

O ponto fundamental da Solução Final era o de permanecer secreto. E, como as "boas almas alemãs" não poderiam suportar esta importante tarefa, campos de extermínio foram construídos na Polônia, onde o anti-semitismo era forte5.

O trágico destino das crianças

Definido como "inimigo interno das sociedades européias" ou "aquele que contamina a pureza racial", o judeu deveria ser destruído. O mal deveria ser ceifado pela raiz, ou seja, o extermínio das crianças. Sabe-se que, dos mártires das guerras, as crianças são as vítimas supremas e universais, pois são criaturas indefesas.

Quando os planos da Solução Final foram colocados em ação, os judeus da Alemanha e de todos os países conquistados passaram a ser encaminhados para campos de concentração, à espera de seu destino final. Enquanto eram preparadas as máquinas de extermínio, construídas na Polônia, fuzilamentos ou a asfixia com monóxido de carbono (nos transportes de caminhões com os canos de escapamento voltados para o interior) eram técnicas utilizadas para o extermínio de agrupamentos de judeus. Depois, por vias férreas, os condenados eram encaminhados aos campos de extermínio. O destino de cada um era determinado pelo chefe do campo, assim que os comboios chegavam: homens e mulheres sadios para os campos de trabalho escravo; idosos e crianças, à morte. No conjunto, dos 6 milhões de judeus que pereceram no período nazista, 1.500.000 eram crianças6.

Quando a política anti-semita foi colocada em funcionamento, algumas famílias judias alemãs e de outras nacionalidades, não querendo expor seus filhos às discriminações (nas ruas e na escola), prevendo violências e acreditando que tal sistema não pudesse durar muito, concordaram em enviar seus filhos a famílias na Grã-Bretanha, através dos Kinder-Transport7.

Na Polônia e nos países onde era grande o número de judeus, decidiu-se concentrá-los em guetos ou em um bairro, sob a autoridade de um dirigente comunitário que era obrigado a indicar os grupos a ser exterminados. Ao adotar esse critério, a maldade nazista atingiu o povo judeu em magnitude extrema. Os fortes, ainda saudáveis, eram encaminhados para as frentes de trabalho escravo.

Nos guetos, a vida se recompunha em condições mínimas de sobrevivência, de cuidados médicos e de remédios. A exigüidade do espaço, a inanição e a precariedade de higiene levaram a mortalidade a atingir índices assombrosos, principalmente entre idosos e crianças. Algumas delas, em busca de alimentos, conseguiram refugiar-se em sótãos, poços, cubículos e até granjas.

A compaixão ou o espírito de humanidade levou algumas famílias a acolher algumas dessas crianças. A decisão de manter uma criança judia era enormemente perigosa e arriscada, diante do decreto de 15 de outubro de 1941 que instituiu a pena de morte a quem protegesse judeus. Grupos de resistência também acolheram crianças foragidas dos guetos. Esconder um menor era menos perigoso do que a um adulto. Além do envolvimento natural, a criança adaptava-se mais facilmente à nova vida e havia menos possibilidade de explicações a estranhos. No conjunto, o número de meninas acolhidas superou o dos meninos, pois a circuncisão facilmente os denunciaria8.

Viver foi uma tarefa difícil. Todas as crianças que foram salvas no período tiveram sua infância roubada. Viveram sem brincar, ir a um parque, desconheciam o conceito de liberdade e o de ir à escola. Ocultas por um longo tempo, esses seres precisavam tornar-se invisíveis, enquanto a guerra transcorria. Dos atingidos, 100.000 sobreviveram, a maioria em situações difíceis e que marcaram suas vidas para sempre. Alguns voltaram a viver com seus pais verdadeiros depois de passado o inferno. Outros, jamais se recuperaram e continuam submergidos. Alguns se envergonham de suas origens.

Os que sobreviveram foram obrigados a aprender a desconfiar, a calar, a mentir e a distinguir com clareza quais os adultos confiáveis e quais os perigosos. Em suas vidas, foram incluídas a mentira, o ocultamento, o roubo, o suborno e, o que é muito mais grave, a destruição da fé no mundo adulto. Cada um vivenciou um processo de lenta recuperação da identidade, dos laços familiares e da infância perdida. A condição indispensável de sobrevivência foi a impossibilidade de expressar sentimentos ou pensamentos, ou seja, o mais invisível possível. Todos viveram com diferentes graus de silêncio ou a ordem de calar para sobreviver. A guerra é uma marca que os acompanhará enquanto viverem.

Rachel Mizrahi é Pesquisadora Doutora do Laboratório de Estudos sobre a Etnicidade e Racismo - LEER/USP.

Notas:

1 Definida pelo "branco superior, loiro, olhos azuis, alto, corajoso". O milenar "cruzamento fértil" impede consideração de pureza no gênero humano. Estatísticas indicam uma igualdade de 99,54% entre todos os estoques humanos.

2 A hierarquia racial nazista apresentava a seguinte ordem: os arianos, os nórdicos, os latinos, os eslavos, os homossexuais, os incapazes (físicos e mentais) e, depois, os de pele mais escura, os amarelos e os negros. Os judeus eram a "não-raça", pois encarnação do mal, do diabólico.

3 Historiadores afirmam que o Nazismo foi o Mal absoluto pois o Estado praticou o mal, apoiado na ciência.

4 Na 2a Guerra, os alemães, independente do envio de reforços às frentes de combates, priorizaram o transporte de judeus a campos de extermínio.

5 Esconder o genocídio e as provas dos crimes, queimando documentos e destruindo os fornos crematórios foram as ordens emitidas por líderes nazistas quando a derrota final se aproximava.

6 Na Polônia, de uma população de 3.500.000 judeus, sobreviveram 5.000 crianças; na Holanda, dos 140.000, sobreviveram 3.500; e, na França, dos 350.000 judeus, 12.000 são crianças sobreviventes.

7 Veja filme-documentário The Kindertransport Survivor, produzido pela Warner Bros. por Deborah Oppenheimer, filha de Sylva Sabine Avramovici Oppenheimer, uma das crianças do trem. A maioria delas perdeu seus pais em campos de extermínio.

8 Pela circuncisão, estabelece-se a necessária ligação judaica homem-D'us.