Varian Fry organizou em Marselha, no verão de 1940, uma rede clandestina de fuga conseguindo salvar das mãos nazistas personalidades como Marc Chagall, Hannah Arendt, Marcel Duchamp, Jacques Lipchitz, Wilfredo Lam, Max Ernst e André Breton.

No verão de 1940, a França de Vichy concordou em prender e extraditar para a Alemanha todos os que se opunham ao regime nazista e que, nos anos anteriores à eclosão da Segunda Guerra Mundial, vindos de todas as partes da Europa, haviam-se refugiado na França.A maioria dos refugiados era composta por judeus, entre os quais artistas, intelectuais de renome e cientistas – indivíduos especialmente vulneráveis por causa de sua proeminência. Homens e mulheres que, durante a primeira metade do século XX, fizeram da Europa o dínamo cultural do mundo.

Cientes do iminente perigo que essas pessoas corriam, membros de uma organização privada americana decidiram que algo precisava ser feito para salvá-los antes que fosse tarde demais. Sabiam que esconder-se era praticamente impossível para tais personalidades e que, se não fossem salvas rapidamente, eram enormes as chances de serem capturadas e deportadas da França. Alguém precisava entrar em território francês, encontrar tais pessoas e fazer o que fosse necessário para tirá-las da região.

Quem aceitou a tarefa, apesar de sua total inexperiência, foi um jovem jornalista chamado Varian Fry. Formado em Letras por Harvard, Fry não possuía treinamento na área militar ou de espionagem. Era um jovem culto, conhecedor de vinho e de artes plásticas, editor de um jornal em Nova York. Adorava ler poesias e observar os pássaros. Até desembarcar em Marselha naquele verão de 1940, nada em sua vida poderia fazê-lo antever que se tornaria herói.

Salvar judeus era uma missão de risco. Quando lhe perguntaram por que o fez, por que fora à França, respondeu: “Porque os refugiados precisavam de mim. Mas era preciso coragem e esta era uma qualidade que, até então, eu não estava certo de possuir”. Menos ainda, Fry poderia prever o impacto que suas ações teriam na cultura do pós-guerra, levando ao deslocamento do centro cultural do mundo da Europa para os Estados Unidos, após a Segunda Guerra.

Europa na década de 1930 e 1940

A odisséia de Fry começou, sem que ele soubesse, no dia 5 de junho de 1940, quando a Alemanha atacou o norte da França. O exército francês foi estraçalhado e os sobreviventes se refugiaram na região centro-sul do país, onde os alemães ainda não haviam conseguido chegar. Dez dias após o ataque inicial, Paris capitulou e tropas alemãs desfilaram pelos Champs-Elysées.

Derrotada, a França assinou em 22 de junho um armistício com a Alemanha de Hitler. O país foi então dividido – o norte e a costa do Atlântico ficariam sob a ocupação das tropas alemãs enquanto o sul-sudeste passariam a ter um governo leal à Alemanha. Vichy passaria a ser a capital da França Livre e o general Pétain, seu líder. Entre as muitas cláusulas do armistício uma em particular alertou os refugiados: o artigo 19 previa que as autoridades francesas eram obrigadas a entregar aos nazistas qualquer pessoa que lhes fosse solicitada. Na lista dos mais procurados pelos nazistas constavam judeus famosos e críticos desse regime. Muitos haviam deixado a Alemanha com a subida de Hitler ao poder, outros estavam em solo francês vindos de outras partes da Europa. Alguns estavam em Paris há muito tempo, como o pintor Marc Chagall.

Durante o rápido avanço alemão na França, inúmeros refugiados e também cidadãos franceses deixaram Paris, mas o pânico tomou conta da cidade quando as tropas de Hitler entraram na capital. Centenas de milhares fugiram rumo ao sul. Cerca de quatro milhões de pessoas chegaram à chamada França Livre, mas não estavam a salvo, pois a qualquer momento as autoridades francesas poderiam prendê-las e extraditá-las para a Alemanha. Os que haviam feito da França seu refúgio nos anos anteriores à guerra estavam em sério perigo. A única esperança era deixar a Europa, razão pela qual milhares de pessoas foram a Marselha, o último porto francês livre, sentindo-se como “ratos presos em um navio que já afundanva”.

Os inimigos do Reich

Durante a década de 30, centenas de milhares de artistas e intelectuais europeus – judeus e não judeus, declarados como “inimigos” pelo regime nazista, passaram a viver em Paris. Antes de iniciar o ataque à Europa, Hitler já havia declarado guerra a todos os judeus e a todos os pensadores, intelectuais e artistas que não se encaixassem na concepção nazista de mundo. O Führer, um artista frustrado, odiava todo tipo de arte moderna – expressionismo, surrealismo, bem como compositores e escritores de vanguarda. Portanto, logo que assumiu o poder, deu início ao que chamava de “depuração” da vida intelectual e artística. Para se ter uma idéia dos seus pensamentos, ao se referir à arte moderna utilizava a expressão “degeneração”, conceito usado principalmente para definir “impureza racial”.

Em 1933, poucos dias após Hitler ser nomeado chanceler da Alemanha, foram anunciadas medidas institucionais sobre o plano cultural e artístico alemão. Para os nazistas, toda arte moderna, assim como seus autores, deveria ser eliminada. No outono europeu de mesmo ano, os judeus foram banidos de toda a vida artística e intelectual do país. O ritual da queima de livros em praça pública era uma amostra do que estava para acontecer. Foi grande o êxodo da Alemanha de intelectuais e artistas.

Em um discurso em Nüremberg, em 1935, Hitler afirmou ser necessário acentuar o ajuste de contas com os “criminosos” da cultura alemã. A partir daí, a ofensiva nazista contra os intelectuais e artistas considerados ameaça à pureza alemã ultrapassou o limite das sanções institucionais. Os que não conseguiram fugir acabaram presos e enviados para campos de concentração.


Comitê de Resgate de Emergência

Após a invasão da França, os membros de uma organização americana da qual fazia parte Varian Fry reuniram-se, cada vez mais alarmados pelas notícias vindas da França. Era óbvio que algo de concreto tinha que ser feito para salvar os perseguidos. Criaram portanto o “Comitê de Resgate de Emergência”, cuja missão era encontrar lideranças judaicas e intelectuais anti-nazistas presos na Europa e levá-los para a América do Norte e do Sul.

Para viabilizar a operação, o grupo arrecadou, entres os próprios membros a soma de US$ 3 mil, na época uma quantia significativa. Com o apoio de Eleanor Roosevelt, conseguiram 200 vistos especiais. Coube aos escritores Thomas Mann e Jules Romains e ao diretor do Museu de Arte Moderna, Alfred H. Barr Jr., a responsabilidade de fazer uma lista com os nomes dos 200 indivíduos mais representativos da “Intelligentzia” européia. Só não havia um voluntário disposto a ir para a França.

Apesar de seu despreparo, Fry se ofereceu para ir, se não encontrassem, a tempo, alguém mais qualificado. A favor de Fry estavam sua fluência em vários idiomas e o fato de conhecer profundamente a situação política na Europa. Em 1935, tinha ido à Alemanha como correspondente estrangeiro do jornal americano The Living Age. Em Berlim, Fry testemunhara pessoalmente a violência nazista e seu ódio contra os judeus. Ele sabia que as ameaças feitas por Hitler tinham que ser levadas muito a sério.

Fry não tinha a aparecia de um herói; mais parecia um “yuppie” de nossos dias. Vestido de forma impecável, com um cravo vermelho na lapela, seus amigos o descreviam como “um jovem exuberante e agradável, culto e bonito”. Mas ele possuía algo inestimável – não tolerava injustiças – e estava sempre pronto a combatê-las. Seus pais costumavam dizer que, ainda estudante, Fry abandonara a escola altamente conceituada que freqüentava por considerar humilhantes algumas de suas tradições.

No dia 3 de agosto de 1940, aos 32 anos, Fry desembarcou em Marselha. Tinha US$ 3 mil amarrados em uma das pernas e no bolso a lista de 200 nomes. Suas instruções eram claras: permanecer na cidade por três semanas, encontrar e contatar os nomes da lista, distribuir o dinheiro e conselhos e voltar para os Estados Unidos. Mas, 24 horas após sua chegada, Fry já se havia conscientizado da complexidade de sua missão. Três semanas eram um espaço de tempo ridiculamente curto e a lista feita em Nova York era insignificante quando comparada com a realidade. Centenas de milhares – e não apenas 200 refugiados – precisavam de ajuda e as dificuldades eram imensas. Em 1945, escreveu: “Os refugiados começaram a vir ao meu quarto no dia seguinte. Muitos estavam com os nervos em frangalhos e sua coragem já havia desaparecido”.

Oficialmente, a única forma de sair da França era através da Espanha ou de Portugal. Mas para tanto era necessário um passaporte válido e uma série de vistos: o de saída francês, um salvo-conduto para a fronteira; um de trânsito espanhol e outro português e, finalmente, um visto que permitisse a entrada da pessoa em um país que a aceitasse. A maioria dos refugiados não tinha passaporte, além de ser muito difícil encontrar um país que permitisse a entrada de refugiados, em particular, de judeus.

Rede clandestina de fuga

Após tomar a decisão de ficar o tempo necessário para salvar o maior número de pessoas, Fry tentou inutilmente obter o apoio das autoridades americanas na França. Logo percebeu que ninguém o ajudaria, além de Hiram Bingham, vice-cônsul americano em Marselha. Estava sozinho e percebeu que, para montar uma rede clandestina de fuga, precisava ter uma fachada legal e encontrar pessoas confiáveis que o ajudassem. Trabalhava dia e noite. Alugou um escritório onde passou a funcionar o “Centro de Assistência Americano” (American Relief Center) e conseguiu reunir um pequeno, mas dedicado grupo.

O grande economista Albert Hirschman foi o seu primeiro “cúmplice”. Outros rapidamente se juntaram, entre eles, americanos que estavam na França, por acaso, na época da invasão alemã, como Miriam Davenport, uma estudante de arte, e Mary Jayne Gold. Esta última era uma linda herdeira de Chicago que usava sua beleza, quando necessário, para pedir que “olhos se fechassem” na hora certa.

Acabou ajudando a financiar a operação com outros US$ 3 mil. Alguns europeus, também refugiados, participavam da operação. Eram indispensáveis já que conheciam os que precisavam de ajuda e sabiam como encontrá-los.

Entre esses estavam Walther Mehring, o poeta Hans Sahl e Bill Freier, um artista austríaco que usou seu talento para forjar documentos de viagem.

Trabalhavam sem parar, contra o tempo, e sob o olhar atento das autoridades francesas e da Gestapo. Durante o dia entrevistavam e distribuíam dinheiro ou ajudavam a encontrar onde abrigar os refugiados.


Uma imensa fila se formava diariamente, antes mesmo de abrir o centro. À noite, o grupo se reunia com Fry para planejar e discutir as atividades secretas. Sabiam da gravidade das decisões a serem tomadas e também das trágicas conseqüências frente a uma derrota.

Fry aprendeu rapidamente e, em pouco tempo, conseguiu montar uma eficiente rede clandestina de fuga, via Lisboa. Conhecia a importância de um passaporte, um visto ou uma carteira de identidade francesa. Tentava obtê-los através de seus contatos. Vladimir Vochoc, cônsul tcheco em Marselha, sempre pronto a dar um passaporte com nome falso para os inimigos do Reich, foi uma peça indispensável para a rede de Fry. Às vezes documentos eram comprados no mercado negro, outras vezes acabavam sendo forjados. Vários artistas – incluindo Max Ernst, Marc Chagall e André Breton – e outras centenas de pessoas que os nazistas queriam eliminar, tiveram que sair da França sob nomes fictícios e com passaportes falsos.

Fry se envolveu com o submundo de Marselha para trocar dólares e para encontrar contrabandistas que estivessem dispostos a assumir os riscos de transportar “contrabando humano”. Uniu-se com todo tipo de oponentes do Terceiro Reich – refugiados franceses, judeus e não-judeus. Organizou fugas de campos de internação onde os franceses detinham os judeus antes de os deportar para a Alemanha.

Às vezes os refugiados eram escondidos em pequenos barcos ou em trens, rumo à Espanha. Uma vez em território espanhol, com alguma sorte, partiam para Portugal onde podiam, finalmente, embarcar em um navio que os levaria até a América do Norte ou ao Caribe. Outras vezes eram obrigados a fazer a pé a travessia das montanhas dos Pirineus. Era uma escalada longa e difícil e, para os mais velhos, quase impossível. Mas quando esta era a única alternativa, reuniam todas as suas forças e faziam a longa caminhada sob sol escaldante.

Os obstáculos enfrentados por Fry eram os mais variados. Muitos dos artistas estavam enraizados na França e não tinham plena consciência do perigo que corriam. Em suas memórias Fry relembra o primeiro encontro que teve com Marc Chagall, em uma cidade na Provença. O artista, há anos naturalizado, considerava-se cidadão francês e pretendia permanecer na região durante toda a ocupação nazista. Fry sabia que Chagall estava na lista negra nazista, mas soube esperar até convencê-lo. “Eu tinha que ter paciência, não podia apressar um artista como Chagall”, disse certa vez.

Assim que as leis antijudaicas foram promulgadas na França, em 3 de outubro de 1940, Chagall soube que chegara a hora de deixar a Europa. Foi a Marselha com a sua família, mas a polícia o prendeu ao chegar. O que salvou o grande pintor foi a ousadia e a coragem de Fry. Assim que recebeu a notícia, foi até o presídio de Marselha, ameaçou as autoridades de divulgar a notícia da prisão do artista na imprensa internacional, um fato que teria uma repercussão negativa para o governo de Vichy. Chagall foi libertado e conseguiu sair da França atravessando os Pirineus a pé até a Espanha, partindo em seguida para os Estados Unidos.

Nos 13 meses que permaneceu na cidade, ajudado por seu grupo, Fry salvou milhares de pessoas. Algumas das mentes mais brilhantes do século XX, como Otto Meyerhoff – Prêmio Nobel de Química – e o pianista Heinz Jolles, os artistas Marcel Duchamp e Wilfredo Lam, o escultor Jacques Lipschitz, o novelista Lion Feuchtwanger, o poeta Franz Werfel e sua esposa Alma Mahler, e Gropius Werfel. E muitos outros, menos conhecidos, além de sindicalistas e soldados britânicos.

O fim da operação

Após o general Pétain anunciar que a França de Vichy iria colaborar com Hitler, aumentaram os riscos para Fry e sua equipe. Ele ignorou várias advertências feitas pelo governo norte-americano, que o considerava um “encrenqueiro” e queria que voltasse para os Estados Unidos. Perseverou mesmo quando autoridades dos EUA retiraram o seu passaporte, deixando-o atuar em território inimigo sem nenhuma identidade. Fry ficou porque acreditava que os refugiados estavam acima de sua própria segurança.

Em setembro de 1941 Fry foi preso pela polícia francesa, sendo expulso do país com a anuência da Embaixada norte-americana. “Não podemos apoiar um cidadão norte-americano que está ajudando as pessoas a infringir a lei francesa”, disse um diplomata dos EUA ao próprio Fry.

Ao voltar para Nova York contou sua história, na tentativa de alertar o público norte-americano sobre os objetivos dos nazistas. Foi inútil, pois nada mudou na política norte-americana sobre refugiados de guerra judeus. Era tão crítico dessa política que o FBI abriu um arquivo sobre ele. Por isso teve dificuldade para conseguir um emprego durante o resto de sua vida. Em 1945 publicou o livro Surrender on Demand, no qual relatou sua missão em Marselha.

Varian Fry morreu repentinamente em 1967, em Connecticut, enquanto estava revisando suas memó-rias. O policial que o encontrou olhou para os documentos espalhados ao redor de Fry e incluiu em seu relatório que “o indivíduo morreu enquanto escrevia um romance de ficção”.

Infelizmente Fry passou quase toda sua vida sem que suas ações fossem reconhecidas. Somente alguns meses antes de sua morte a França o homenageou com a comenda da Legião de Honra.

Seus méritos, no entanto, ainda não haviam sido reconhecidos em seu próprio país. Isto aconteceu apenas em 1996, quando o então Secretário de Estado norte-americano, Warren Christopher, plantou uma árvore no Jardim dos Justos, no Museu do Holocausto Yad Vashem, em Israel. Fry foi o primeiro e único americano a ser agraciado com a medalha dos “Justos entre as Nações”, do Yad Vashem. Ainda em 1996, Warren Christopher homenageou Fry durante a abertura de uma exposição no Congresso dos EUA.

Em 1998, Fry foi homenageado com o título de “Cidadania Comemorativa do Estado de Israel”, concedido a alguns dos que foram condecorados com a medalha “Justos entre as Nações”.


Bibliografia:

"And Crown Thy Good" Varian Fry in Marseille - The Varian Fry Foundation and the Chambon Foundation;
"Memo to Congressmen" by Suzan Morgenstein, curator of the Varian Fry special exhibit at the United States Holocaust Memorial Museum. Updated by Walter Meyerhof;
La liste noire e Varian Fry - La République des Letters
A memoir, Miriam Davenport Ebel (1915-1999)
Varian Fry and the Emergency Rescue Committee: A Resource Guide for Teachers United States Holocaust Memorial Museum Washington, DC
"Varian Fry: Assignment Rescue, 1940-2941" exhibit Varian Fry Before and After Marseilles , Some biographical notes by Annette Riley Fry.