Há cinqüenta anos, no dia 11 de abril de 1961, teve início em Israel o julgamento de Adolf Eichmann, um dos principais artífices da chamada Solução Final. No tribunal instalado em Jerusalém, o réu teve o direito que suprimiu de milhões de judeus, que, por ordem sua, foram exterminados no holocausto: o direito de se defender.
No dia 11 de maio do ano anterior, David Ben Gurion, primeiro-ministro de Israel, anotara em seu diário: “Hoje de manhã recebi um mensageiro que me disse que Eichmann foi identificado e capturado na Argentina e será trazido para cá, na próxima semana. Se não for um caso de falsa identidade. trata-se de uma operação da maior importância”. De acordo com seu habitual ceticismo, Ben Gurion estava certo de que a captura de um dos mais procurados criminosos de guerra nazistas não dava o assunto em si por encerrado. Ele sabia que na esteira do seqüestro de Eichmann ainda se desenvolveria um longo processo cuja finalidade era expor ao mundo e à nova geração de israelenses os pormenores de um dos capítulos mais tenebrosos da história da humanidade.
Os eventos que culminaram com a captura de Eichmann já foram narrados à exaustão. Isser Harel,
o então chefe do Mossad, o serviço secreto de Israel, recebeu uma pista consistente sobre o paradeiro de Eichmann em Buenos Aires.
Ele mesmo chefiou uma equipe de agentes que viajou à Argentina e ali foi traçado um plano de assalto e seqüestro que, cumprido à risca, foi bem sucedido em todas as etapas. O primeiro agente a interrogar Eichmann no cativeiro foi meu querido e já falecido amigo, Zvika Malkin. Ele mesmo me contou como se desenrolou seu diálogo inicial com o prisioneiro. O assunto abordado foi a Conferência de Wannsee, um elegante castelo nos arredores de Berlim, na qual, em janeiro de 1942, os líderes do Reich optaram pela Solução Final, ou seja, o extermínio em massa dos judeus europeus. Zvika perguntou-lhe qual tinha sido seu sentimento quando aquela lúgubre decisão foi tomada. Eichmann respondeu que nada havia a ser feito porque a ordem partira do próprio Hitler. Zvika insistiu: “Mas, como você se sentiu?” Eichmann apenas repetiu: “Nada havia a ser feito”. Zvika irritou-se: “Então foi assim que você se transformou em um assassino”. Eichmann retrucou: “Isso não é verdade. Eu nunca matei ninguém. Eu me dedicava à coleta e ao transporte”. Nos dias seguintes, Zvika continuou seu contato com Eichmann, que, a certa altura, lhe declarou: “Eu estive na Palestina em 1937 e vi muitas coisas boas que os judeus andaram fazendo por lá. Depois estudei bastante a história judaica e até aprendi a oração Shemá Israel, Adonai Elokheinu ...” Pelo relato que ouvi de Zvika, aquele foi o único momento em que ele teve que se conter para não agredi-lo: “O desgraçado teve a audácia de dizer a oração que os judeus, incluindo grande parte da minha família, exclamavam quando eram levados para as câmaras de gás”. Nos dias seguintes, coube ao próprio Zvika a tarefa de convencer Eichmann a assinar um documento no qual ele afirmava que concordava em ser levado para Jerusalém para ser submetido a um julgamento. Eichmann recusou-se a assinar e Zvika argumentou, conforme narra textualmente o escritor Neal Bascomb em seu livro, Hunting Eichmann: “Não vou obrigar você a nada. Mas, se eu fosse você, assinaria o documento e vou lhe dizer por quê. Vai ser a única vez na vida em que você terá a oportunidade de dizer o que pensa. E vai estar lá em Jerusalém para dizer ao mundo todo o que você julgou que era certo, com as suas próprias palavras”. Ao longo de anos de amizade, muitas vezes ouvi do meu amigo relatos minuciosos sobre a captura de Eichmann. Malkin era uma pessoa que, tanto na forma como no conteúdo, desmistificava a figura glamorosa do espião tipo “007”. Ele sempre se referiu a outras missões secretas das quais participou como se fosse um neurocirurgião relatando uma difícil operação num cérebro, com enormes riscos a serem superados e cuidados para não deixar seqüelas. Com Malkin, aprendi que uma ação do serviço secreto é feita por seres humanos e que, por mais qualificados que eles sejam, não são super-homens; que nenhum grupo consegue ser inteiramente homogêneo e impermeável a rivalidades mesquinhas; que nenhum plano é tão perfeito a ponto de se tornar imune a erros ou acidentes de percursos.
Quando chegou a Israel, Eichmann foi submetido a um minucioso exame médico e trancafiado em uma cela com paredes acolchoadas para evitar que ele se auto-infligisse algum dano físico. Nesta cela se desenvolveu um interrogatório que durou 275 horas, conduzido pelo capitão da polícia Avner Less, então com 44 anos de idade, nascido em Berlim e que havia emigrado para a antiga Palestina na década de 30. Anos mais tarde, Less declarou em uma entrevista: “Quando vi o prisioneiro pela primeira vez, com calça e camisa de cor cáqui, fiquei desapontado. Talvez eu tivesse imaginado que me depararia com um nazista tal como costumavam aparecer no cinema: alto, louro, olhos azuis e ar arrogante. Entretanto, aquele homem magro, mais ou menos da mesma altura do que eu, não passava de uma pessoa comum.
A normalidade da sua aparência e seu testemunho prestado sem qualquer emoção provocaram-me um impacto mais deprimente do eu esperava”. O relacionamento entre o interrogador e o interrogado procedeu-se em uma atmosfera de respeito mútuo, com Eichmann sempre preocupado em eximir-se de quaisquer culpas, alegando sistematicamente que apenas tinha cumprido ordens emanadas de instâncias superiores. Less, por seu turno, preocupava-se em enquadrar a responsabilidade de Eichmann no contexto da Solução Final e, à certa altura, lhe disse que seu próprio pai havia sido deportado para Auschwitz, ao que Eichmann atalhou: “Mas isto é horrível, senhor capitão, é horrível!”. E o interrogatório prosseguiu.
Less – Hitler deu alguma ordem por escrito, referente à Solução Final?
Eichmann – Para o extermínio? Eu nunca vi essa ordem por escrito, capitão. Só sei o que Heydrich me disse: o Führer ordenou a destruição física de todos os judeus. Estou repetindo suas exatas palavras. Cheguei a pedir-lhe que não me incluísse naquele processo porque jamais havia sido um soldado e tudo aquilo me tirava o sono. Mas ele não atendeu ao meu pedido.
Less – E depois você foi visitar Auschwitz?
Eichmann – Sim, mas com a finalidade de vistoriar as construções que ali estavam sendo feitas para em seguida apresentar um relatório.
Na verdade, eu só estive três vezes em Auschwitz. De tudo que presenciei, as cenas mais terríveis foram em Treblinka.
Less – Quantos judeus foram assassinados e levados às câmaras de gás em Auschwitz?
Eichmann – Eu li que Hoess, o comandante do campo, admitiu ter matado um milhão de judeus, porém considerava este número exagerado. Entretanto, refleti durante os últimos quinze anos e creio que o número total de vítimas talvez tenha de fato chegado a seis milhões.
Less – Mas Hoess lhe deu algum número específico?
Eichmann – Não, nunca. Ele apenas me disse que havia feito novas construções e que poderia matar dez mil judeus por dia.
Less – Você chegou a transmitir alguma ordem para Hoess?
Eichmann – Não, minha tarefa era observar e mandar relatórios para Mueller, o chefe da Gestapo.
Less – Hoess chegou a levá-lo para inspecionar todo o campo?
Eichmann – Sim, mas quando o campo ainda era bem pequeno. Isto consta do meu relatório para Mueller.
Less – Vocês discutiram sobre os procedimentos para fazer funcionarem as câmaras de gás?
Eichmann – Ele apenas me mostrou algumas poucas instalações para essa finalidade.
A sessão de abertura do julgamento estava marcada para as nove horas da manhã. Ao meu lado sentou-se um jornalista francês, de cabelos brancos, que logo começou uma interessante conversa a propósito da jaula de vidro que havia sido instalada para proteger Eichmann de um possível atentado. Ele dizia que embora o réu ali devesse estar de corpo presente, era como se estivesse isolado do mundo, como se pudesse nos contaminar. Não fixei o nome daquele francês inteligente e só depois que ele foi embora, uma semana mais tarde, fiquei sabendo que se tratava de Joseph Kessel, um escritor da minha particular admiração, de quem já havia lido um belo romance chamado L’Equipage. Do instante do início do julgamento, separo as memórias auditiva e visual. Primeiro, guardo a potente voz do bedel da corte ordenando que todos se levantassem ao ingresso no recinto dos três juízes, Moshe Landau, Itzhak Raveh e Benjamin Halevy, envoltos em suas togas negras. Em seguida, deu-se o impacto da aparição de Adolf Eichmann, emergindo de uma porta estreita embutida no fundo da jaula de vidro. Vestia um terno azul-marinho, um tanto folgado para seu tamanho, assim como a camisa branca também sobrava no colarinho. Enquanto ficou de pé perante os juízes, só deixou transparecer o nervosismo com um leve tremor da mão direita. A partir daquele momento e durante todo o desenrolar do processo, comportou-se como se fosse um delegado a um congresso internacional, mantendo sempre os fones das traduções simultâneas colados aos ouvidos, enquanto consultava pilhas de papéis e fazias anotações. Nas semanas seguintes, foi de uma frieza impressionante durante as dezenas de depoimentos de sobreviventes dos campos de extermínio. Quando muito, nas passagens mais trágicas, repetia o cacoete de torcer o nariz para o lado. Fixou-se num princípio básico de defesa e dele não se desviou até a sentença de morte: havia apenas cumprido ordens. Logo no primeiro dia, coube ao juiz-presidente ler as acusações contra o réu, num total de doze, todas passíveis da aplicação da pena de morte: 1. Responsabilidade pelo assassinato de milhões de judeus. 2. Ter confinado esses judeus em condições preparatórias para suas mortes. 3. Ter causado às suas vítimas graves danos físicos e morais. 4. Ter tomado iniciativas que resultaram na esterilização de judeus. 5. Responsabilidade pela escravidão, deportações e fome de milhões de judeus. 6. Ter perseguido judeus baseado em princípios raciais. 7. Responsabilidade pelo confisco de propriedades judaicas com medidas desumanas que envolveram roubos e violências. 8. Ter praticado crimes de guerra a par dos expostos nos itens anteriores. 9. Responsabilidade pela deportação de meio milhão de judeus poloneses. 10. Responsabilidade pela deportação de 14 mil eslovenos. 11. Responsabilidade pela deportação de milhares de ciganos. 12. Deportação e assassinato de cem crianças checas da cidade de Lídice.
À direita da jaula de vidro ficava a bancada de seu advogado, o Dr. Robert Servatius. Nascido em Colônia, na Alemanha, em 1894, era um profissional de grande prestígio em seu país, sobretudo após ter defendido alguns dos acusados como criminosos de guerra no Tribunal de Nuremberg. Depois de servir no exército durante a Primeira Guerra Mundial, voltou ao serviço militar na Segunda Guerra, tendo alcançado o posto de major sem jamais ter pertencido ao partido nazista. Ele foi aceito como advogado depois de o Mossad ter revirado seu passado, sem nada encontrar que o desabonasse. Antes, porém, de assumir a defesa de Eichmann, teve que enfrentar um problema: a lei israelense não aceitava advogados do exterior em suas cortes de justiça. Fez-se, então, uma lei de exceção segundo a qual profissionais estrangeiros seriam admitidos se os processos nos quais se envolvessem pudessem implicar em pena de morte. Os honorários de 30 mil dólares foram pagos a Servatius pelo governo de Israel.
A sessão de abertura do julgamento estava marcada para as nove horas da manhã. Ao meu lado sentou-se um jornalista francês, de cabelos brancos, que logo começou uma interessante conversa a propósito da jaula de vidro que havia sido instalada para proteger Eichmann de um possível atentado. Ele dizia que embora o réu ali devesse estar de corpo presente, era como se estivesse isolado do mundo, como se pudesse nos contaminar. Não fixei o nome daquele francês inteligente e só depois que ele foi embora, uma semana mais tarde, fiquei sabendo que se tratava de Joseph Kessel, um escritor da minha particular admiração, de quem já havia lido um belo romance chamado L’Equipage. Do instante do início do julgamento, separo as memórias auditiva e visual. Primeiro, guardo a potente voz do bedel da corte ordenando que todos se levantassem ao ingresso no recinto dos três juízes, Moshe Landau, Itzhak Raveh e Benjamin Halevy, envoltos em suas togas negras. Em seguida, deu-se o impacto da aparição de Adolf Eichmann, emergindo de uma porta estreita embutida no fundo da jaula de vidro. Vestia um terno azul-marinho, um tanto folgado para seu tamanho, assim como a camisa branca também sobrava no colarinho. Enquanto ficou de pé perante os juízes, só deixou transparecer o nervosismo com um leve tremor da mão direita. A partir daquele momento e durante todo o desenrolar do processo, comportou-se como se fosse um delegado a um congresso internacional, mantendo sempre os fones das traduções simultâneas colados aos ouvidos, enquanto consultava pilhas de papéis e fazias anotações. Nas semanas seguintes, foi de uma frieza impressionante durante as dezenas de depoimentos de sobreviventes dos campos de extermínio. Quando muito, nas passagens mais trágicas, repetia o cacoete de torcer o nariz para o lado. Fixou-se num princípio básico de defesa e dele não se desviou até a sentença de morte: havia apenas cumprido ordens. Logo no primeiro dia, coube ao juiz-presidente ler as acusações contra o réu, num total de doze, todas passíveis da aplicação da pena de morte: 1. Responsabilidade pelo assassinato de milhões de judeus. 2. Ter confinado esses judeus em condições preparatórias para suas mortes. 3. Ter causado às suas vítimas graves danos físicos e morais. 4. Ter tomado iniciativas que resultaram na esterilização de judeus. 5. Responsabilidade pela escravidão, deportações e fome de milhões de judeus. 6. Ter perseguido judeus baseado em princípios raciais. 7. Responsabilidade pelo confisco de propriedades judaicas com medidas desumanas que envolveram roubos e violências. 8. Ter praticado crimes de guerra a par dos expostos nos itens anteriores. 9. Responsabilidade pela deportação de meio milhão de judeus poloneses. 10. Responsabilidade pela deportação de 14 mil eslovenos. 11. Responsabilidade pela deportação de milhares de ciganos. 12. Deportação e assassinato de cem crianças checas da cidade de Lídice.
À direita da jaula de vidro ficava a bancada de seu advogado, o Dr. Robert Servatius. Nascido em Colônia, na Alemanha, em 1894, era um profissional de grande prestígio em seu país, sobretudo após ter defendido alguns dos acusados como criminosos de guerra no Tribunal de Nuremberg. Depois de servir no exército durante a Primeira Guerra Mundial, voltou ao serviço militar na Segunda Guerra, tendo alcançado o posto de major sem jamais ter pertencido ao partido nazista. Ele foi aceito como advogado depois de o Mossad ter revirado seu passado, sem nada encontrar que o desabonasse. Antes, porém, de assumir a defesa de Eichmann, teve que enfrentar um problema: a lei israelense não aceitava advogados do exterior em suas cortes de justiça. Fez-se, então, uma lei de exceção segundo a qual profissionais estrangeiros seriam admitidos se os processos nos quais se envolvessem pudessem implicar em pena de morte. Os honorários de 30 mil dólares foram pagos a Servatius pelo governo de Israel.
À pouca distância da defesa ficava a bancada da promotoria, chefiada pelo jurista Gideon Hausner, que cinco anos depois do julgamento escreveu um livro admirável, intitulado Justice in Jerusalem. Nascido em 1915 na cidade de Lemberg, que pertencia ao império austro-húngaro, emigrou com a família para a antiga Palestina em 1927, formando-se em direito na Universidade Hebraica de Jerusalém. Foi membro da Haganá, lutou na Guerra da Independência, atuou como promotor e presidente da Corte Militar de Justiça e, no ano anterior ao julgamento de Eichmann, foi nomeado Procurador Geral do Estado. Eleito para o Parlamento em três legislaturas sucessivas, serviu como ministro sem pasta no governo de Golda Meir.
Antes da abertura oficial dos trabalhos, Servatius levantou uma premissa: o julgamento de Eichmann deveria ser anulado e considerado ilegal porque era conseqüência de um seqüestro, ato inaceitável em face do direito internacional. Além disso, se o acusado tivesse praticado qualquer crime, este não ocorrera no Estado de Israel, ou seja, havia o impeditivo da jurisdição. Jurista experiente, Hausner antecipara que a defesa apresentaria essa premissa. Passou, então, a relatar uma série de processos oriundos de seqüestros, em diferentes países, e cujas validades haviam sido aceitas. Não me recordo dos pormenores daquela extensa e complicada argumentação, mas lembro de um caso que Hausner citou, referente a um bandido americano que cometera um crime na Califórnia e se refugiara no México, onde foi capturado por agentes americanos e levado a julgamento nos Estados Unidos, sem nenhum empecilho legal.
A tentativa de Servatius de anular o julgamento não foi bem sucedida. Após breve recesso, o juiz-presidente Moshe Landau voltou ao recinto e leu o veredito que dava à corte israelense plena autoridade para julgar Adolf Eichmann. Quando terminou, levantando ligeiramente os olhos do papel que tinha na mão, disse para o tradutor em hebraico: “Ordene ao acusado que se levante”. Eichmann atendeu com obediência espartana. O juiz prosseguiu, sem olhar para o réu: “Ordene ao acusado que tire o fone dos ouvidos”. Essa operação demorou alguns segundos a mais do que o necessário. Os fios do fone ficaram presos nos óculos de Eichmann e só por causa deste pequeno incidente houve um clima de expectativa. A voz de Landau fez-se novamente ouvir: “O réu compreendeu as acusações proferidas no primeiro dia do julgamento? – “Sim”. O Dr. Servatius deu uma leve batida com sua caneta sobre a mesa e desviou os olhos da jaula de vidro. Hausner tinha o corpo ligeiramente afundado na cadeira e fitava os juízes. Landau perguntou: “Considera-se culpado, ou não, no que se refere ao primeiro item da acusação”? Eichmann respondeu: “No sentido da acusação, inocente”. Sua voz não demonstrava qualquer tremor e até fez um certo esforço para aprimorar a dicção. Declarou-se inocente pela segunda vez, sem alterar a voz. Na terceira oportunidade, valeu-se do tempo gasto com a tradução do hebraico para o alemão para uma rápida anotação. Depois, voltou à posição anterior, semelhante à do primeiro dia do julgamento: olhar fixo nos juízes e no emblema do Estado de Israel acima da mesa da presidência. Suas negativas duraram 7 minutos e 26 segundos.
O discurso acusatório de Gideon Hausner tornou-se célebre: “Não estou aqui sozinho perante os senhores, juízes de Israel, para acusar Adolf Eichmann. Cercam-me, neste momento, seis milhões de acusadores. Mas eles não podem apontar para esta jaula de vidro e exclamar para o homem que está ali dentro: “Eu acuso!”. Suas cinzas estão nas colinas de Auschwitz e os rios da Polônia as espalharam por toda a Europa. Serei, portanto, o porta-voz desses mortos e é em nome deles que pronunciarei a acusação”.
Naquele momento, Eichmann apertou os lábios. Foi uma reação quase imperceptível. Hausner prosseguiu: “A história do povo judeu sempre foi marcada por lágrimas e sofrimentos”. Ele falava sem gesticular. Mantinha as mãos cruzadas atrás das costas, fazendo com que projetasse seu corpo para frente: “O assassinato é inerente à raça humana desde que Caim matou Abel. Não é um fenômeno novo. Mas tivemos que esperar até o século vinte para testemunhar, com os nossos próprios olhos, uma nova forma de assassinar. Neste julgamento também encontramos um novo tipo de assassino. O indivíduo que cumpre o seu ciclo de sangue sentado em uma escrivaninha e ocasionalmente comete um crime com as próprias mãos”.
Eichmann, de súbito, pegou uma caneta e começou a escrever. O quê? Onde foram parar suas anotações? Até hoje não se sabe. As palavras do promotor enchiam o recinto do tribunal: “Esses assassinatos levaram ao conceito de um crime desconhecido nos anais da humanidade, mesmo em seus períodos mais tenebrosos: o crime do genocídio”.
Creio ter sido no dia seguinte que Gideon Hausner levou um gravador para o tribunal. Quando mais uma vez, ao ser questionado por Servatius, o réu repetiu “eu estava cumprindo ordens”, o promotor pediu um aparte e botou o aparelho para funcionar. A voz de Eichmann ecoou no tribunal: “Eu mataria meu próprio pai se recebesse uma ordem para isso”. Hausner completou: “Isto é a revelação do que pensa um nazista não arrependido”.
Em outra ocasião, Hausner de novo se valeu de um gravador ligado ao equipamento de som do tribunal para transmitir trechos do interrogatório conduzido por Avner Less. É a voz de Eichmann que se ouve: “O general Mueller me disse que estava havendo extermínio de judeus em Minsk e Lvov. Ordenou que eu fosse para lá e lhe remetesse um relatório. Em Minsk, vi como os soldados atiravam nas pessoas que caíam numa fossa. Senti meus joelhos tremerem”. – “A fossa estava cheia de cadáveres?” – “Sim, estava cheia. Voltei a Berlim e fui falar com Mueller. Disse-lhe que aquela não era a solução para o problema judaico. Não sei quem deu a ordem para que aquilo acontecesse. Só pode ter sido Himmler, que, decerto, recebeu instruções diretas de Hitler”. Preocupado em perceber em Eichmann qualquer sinal de emoção, um tremor de lábios que fosse, observei-o atentamente. Olhei para a galeria e o que vi foi de enternecer e apavorar ao mesmo tempo: um homem levanta os óculos até a altura da testa e enxuga as lágrimas que lhe escorrem pela face; ao lado, uma mulher soluça. Voltei-me na direção de outras pessoas que se enfileiravam na galeria. Era triste. Não havia um só rosto que conseguisse esconder o profundo sentimento causado pelas recordações que se avivavam na voz do carrasco, narrando com espantosa simplicidade os horrores de que havia participado. Pairou, então, sobre o tribunal uma indagação generalizada. Por que Hausner estava apresentando gravações nas quais Eichmann se defendia com tanta eloquência? Mas, o promotor sabia onde queria chegar. Quando os sobreviventes começaram a depor, a arenga de Eichmann ruiu. Ali estavam os homens e mulheres que haviam conhecido Adolf Eichmann como o assassino de Auschwitz ou de Treblinka, que tinha sido diretamente responsável por um número incalculável de crimes.
– “Por que vocês não reagiram?”
O promotor Gideon Hausner fez esta pergunta para todas as testemunhas sobreviventes dos campos de concentração. As respostas eram irrelevantes. Mas era necessária a indagação para mostrar à juventude nascida em Israel que a passividade não tinha sido absoluta. Depoentes narraram o que foram as rebeliões do gueto de Varsóvia, do gueto de Vilna e do campo de Sobibor. Os atos de bravuras, os sacrifícios até as últimas gotas de sangue despertaram nos sabras um inusitado sentimento de admiração por seus irmãos exterminados pelo nazismo. Cumprida esta etapa, a promotoria pôde dar por concluída a sua missão.
Ao todo, fiquei seis semanas em Jerusalém cobrindo o julgamento de Eichmann. Tive raiva de mim mesmo quando percebi que a sua fisionomia e postura já me eram familiares. Afinal de contas, o que concluí a respeito dele? Que era um homem sem consciência fiel à sua consciência. Assim eu o vi durante o tempo em que estive a poucos metros da sua jaula de vidro. Estava nervoso? No primeiro dia, acho que sim. Procurou disfarçar o nervosismo? Nem por um segundo. Se em algumas ocasiões deixou-se dominar pela emoção, também não procurou disfarçá-la. Quanto aos trágicos depoimentos das testemunhas, considerou-as com um verniz de interesse ou, então, com total apatia.
Karl Adolf Eichmann foi condenado à morte e enforcado no dia 1º de junho de 1962.
Não descansa em paz.
Zevi Ghivelder é escritor e jornalista
A Conferência da Solução Final
Interrogatório conduzido pelo Presidente da Corte e pelo advogado Servatius
Servatius – O acusado poderia explicar em que circunstâncias se deu o seu envolvimento com a iniciativa da Conferência de Wannsee que estabeleceu a “Solução Final”?
Eichmann – A Conferência foi convocada por Heydrich, que pretendia estender o alcance de sua influência.
Servatius – Ele receava alguma dificuldade? Tinha motivo para ter esse tipo de receio?
Eichmann – A experiência mostrou que todas aquelas questões eram tratadas por diferentes autoridades e não havia coordenação dessas atividades. Quer dizer o seguinte: as pessoas enxergavam as árvores, mas não enxergavam a floresta. Foi por isso que Heydrich convocou a Conferência, principalmente com o intuito de se valorizar perante Hitler.
Servatius - É verdade que o acusado redigiu o discurso de Heydrich?
Eichmann – Sim, é verdade.
Servatius – Pode reproduzir em que termos lhe foi pedido que redigisse o discurso?
Eichmann – Eu fui incumbido de fazer uma pesquisa sobre tudo que Heydrich deveria falar. Resultou na apuração de uma série de dificuldades referentes às deportações de judeus. Entretanto, pelo que vejo agora, há passagens no texto que não foram escritas por mim. Heydrich teve ter acrescentado outros tópicos. O objetivo era mandar os judeus como força de trabalho para a construção de estradas na Europa Oriental. Devo acrescentar que durante a Conferência de Wannsee coube-me a tarefa de anotar os pronunciamentos das pessoas presentes, auxiliado por uma secretária.
Servatius – Em seu protocolo não há menção sobre o espírito em que se desenvolveu a Conferência. Pode fazer algum comentário a esse respeito?
Eichmann – O clima da Conferência foi muito tranqüilo, principalmente por parte de Heydrich. Bebeu-se muito, porém não houve embriaguez.
Servatius – E os demais participantes?
Eichmann – Houve uma atmosfera de consenso que superou as expectativas. Alguns presentes, como Buehler e Stuckart, chegaram a evidenciar grande entusiasmo pela realização da Solução Final.
Servatius – As pessoas presentes à Conferência estavam a par dos procedimentos que seriam tomados para o extermínio dos judeus?
Eichmann – Com certeza.
Servatius – Quanto tempo demorou a Conferência e o que aconteceu depois de seu encerramento?
Eichmann – Talvez uma hora ou uma hora e meia. Depois as pessoas se reuniram em pequenos grupos para trocarem idéias. Heydrich estava particularmente exultante.
Juiz presidente – Ainda com relação à Conferência de Wannsee, o senhor respondeu ao assistente da acusação que a Conferência não abordou as formas específicas de execuções, os sistemas das matanças.
Eichmann – Meritíssimo, eu não me lembro dos detalhes. Só sei que todas as conversas foram muito francas e abertas.
Juiz presidente – Torno a insistir. Os meios de execuções foram inseridos em seu protocolo?
Eichmann – Não, isso não ficou registrado por escrito.
Juiz presidente – Falou-se sobre execuções em câmaras de gás?
Eichmann – Com gás, não.
Juiz presidente – Então, como?
Eichmann – Falou-se sobre fuzilamentos, mas não sobre câmaras de gás.
Juiz presidente – O senhor declarou à corte que não se considera anti-semita e que nunca foi anti-semita. É verdade?
Eichmann – Anti-semita? Não, eu nunca fui.