Judeus que salvaram judeus das garras do nazismo também podem ser considerados heróis, com direito às mesmas honrarias concedidas aos não judeus que arriscaram suas vidas para salvar vítimas dos algozes de Hitler?

Este tema vem sendo o ponto central de um debate surgido de uma iniciativa do Comitê de Ação. Esta entidade israelense tem como objetivo a criação de um memorial em reconhecimento à coragem dos judeus que, apesar dos riscos, ajudaram seus irmãos a escapar do inferno europeu, durante a Segunda Guerra Mundial. Memorial semelhante ao existente no Yad Vashem, em Jerusalém, que lembra os que arriscaram a vida para salvar judeus – Memorial dos Justos entre as Nações.

Segundo Paula Welt, ela própria sobrevivente do nazismo e uma das prováveis candidatas à lista de “Heróis Judeus”, a simples idéia de homenagear judeus que salvaram judeus é totalmente sem sentido, quanto mais denominá-los de heróis. Pois, segundo ela, tais pessoas não fizeram mais do que a sua obrigação e o que as circunstâncias de suas vidas permitiram. “Um judeu ajudar outro judeu é o que normalmente se espera e tal atitude não tem nada de heróico. Um não judeu, no entanto, que enfrenta o perigo para salvar alguém perseguido por forças extremamente perversas e organizadas, como as nazistas, deve ser considerado herói e homenageado de tal maneira que sua contribuição jamais seja esquecida”, ressalta.

Ela foi criada em Viena e na Polônia – onde seu pai foi morto pelos nazistas. Posteriormente, fugiu para a Holanda, onde se integrou a um movimento clandestino que ajudava os judeus a fugirem dos territórios ocupados pela Alemanha. Quando se mudou para Paris, graças ao idioma que dominava, infiltrou-se na burocracia nazista e, utilizando documentos falsos e enfrentando inúmeros riscos, conseguiu um emprego como secretária na sede da Gestapo local, trabalhando diretamente com o oficial encarregado dos projetos alemães na área de construção. Foi nesta função que ela conseguiu informações sobre os projetos de engenharia e movimentos de oficiais de alta patente e também se apossar de documentos, apesar do perigo. Suas ações ajudaram a salvar muitas vidas. No entanto, ela não se considera merecedora de homenagens e ressalta: “Qualquer pessoa, na minha posição, teria feito o mesmo”.

Como em toda polêmica, há opiniões que se colocam no outro extremo. É o caso de Haim Roet, também sobrevivente do nazismo, coordenador do Comitê de Ação e um dos autores do projeto que visa criar um memorial em homenagem ao que chama de “Heróis Judeus”. Entre os objetivos da iniciativa, Roet destaca: mostrar às novas gerações que seus antepassados não foram levados pelos nazistas como “cordeiros ao matadouro” e que houve muitos que, apesar dos riscos, tentaram salvar não apenas suas vidas, mas também a de seus irmãos. “Será que por serem judeus suas ações têm menos mérito do que as dos não judeus,” pergunta Roet, relembrando a sua própria história.

Ele foi uma das cem crianças escondidas e criadas por 210 não judeus do pequeno povoado de Nieulande, ao norte da Holanda, quando teve início a ocupação alemã da região, em 1940. Posteriormente, o Yad Vashem incluiu essas pessoas no Hall dos Justos entre as Nações. Dos três organizadores da operação de salvamento, apenas dois foram incluídos na placa com a lista de nomes. Max Leons, que era judeu, foi excluído, ato considerado injusto por Roet. “Se Leons não se tivesse empenhado para a realização do projeto, talvez eu não estivesse vivo. Judeus como Leons e Paula Welt também são heróis, ainda que ela discorde”.

O historiador David Kranzler, professor da Universidade de Nova York (EUA), é favorável à iniciativa de Roet e ressalta que, até o momento, pouco foi feito para avaliar a participação de judeus em atos que resultaram no salvamento de vidas. Apesar de desconhecidos, afirma o acadêmico, estes indivíduos merecem o mesmo reconhecimento que os demais.

Um dos mais importantes historiadores israelenses sobre o tema do Holocausto, Yehuda Bauer, também ex-coordenador do Departamento de Pesquisa do Yad Vashem, afirma que, apesar das histórias de heroísmo envolvendo judeus não serem ignoradas, ainda não foram organizadas e eles ainda não foram reconhecidos como heróis pela comunidade, em geral. Apesar de não concordar com homenagens que incluam um memorial, medalhas e diplomas, Bauer acredita que deve haver um maior reconhecimento público da ação dos heróis judeus.

O cineasta Steven Spielberg informou que a Shoah Foundation pretende incluir em seu catálogo um vídeo intitulado “Judeus salvadores”. O Simon Wiesenthal Museum of Tolerance, em Los Angeles, está atuando no sentido de transformar o termo “judeus salvadores” em uma palavra-chave na Biblioteca do Congresso.

O presidente do Yad Vashem, Avner Shalev, por sua vez, opõe-se fortemente a qualquer iniciativa que classifique os judeus como heróis ou que os inclua em um memorial semelhante ao dos Justos entre as Nações. Assim como Paula Welt, ele afirma que “judeus ajudarem judeus é a regra. É o que se esperava no contexto da Segunda Guerra Mundial. Por que devemos condecorá-los como heróis ou criar-lhes um memorial especial?” Paralelamente, fontes ligadas ao museu informam que no novo prédio, ainda em fase de construção, haverá uma seção totalmente dedicada aos judeus que ajudaram outros judeus a escapar dos nazistas.

Tanto o Yad Vashem quanto o Museu do Holocausto, em Washington (EUA), têm realizado simpósios sobre os judeus salvadores, ressaltando a importância de suas ações. “A abordagem do tema em seminários e da maneira como está sendo feita é apropriada; já a iniciativa do Comitê de Ação, de criar um memorial, é totalmente inconcebível”, ressalta Shalev.

Enquanto o debate prossegue, dentro e fora de Israel, Roet continua empenhado em transformar o seu projeto em realidade. Se ele vai conseguir ou não, só o tempo dirá.


Bibliografia
“Can Jews be Holocaust Heroes?”, 
30 de julho de 2001, The Jerusalem Report.