“Uma pessoa só é esquecida quando seu nome cai no esquecimento”, afirma o Talmud. Há 20 anos, o artista alemão Gunter Demnig trabalha contra o esquecimento, instalando “stolpersteine”, pedras de recordação na calçada diante das casas onde moravam as vítimas do Nazismo.

Gunter Demnig pertence à geração  pós-2ª Guerra. Nascido em 1947, estudou Artes e Desenho Industrial na Universidade de Berlim. Ele já disseminou suas pedras de recordação, as stolpersteine (em português, pedras-obstáculo) por toda a Europa. Seu moto é “one victim - one stone”, para cada vítima uma pedra, como se cada indivíduo ali tivesse seu túmulo. As primeiras 50 stolpersteine foram instaladas ilegalmente nas calçadas de Berlim, em 1996. Depois foi  a vez de Colônia, com 600, e, assim, a ideia foi ganhando força e vigor. Hoje, seu projeto é o maior memorial descentralizado do mundo.

O que são as stolpersteine? Trata-se de paralelepípedos de concreto, de 10 cm x 10 cm, cimentados nas calçadas. Um lado é coberto por uma chapa de latão dourado, com uma inscrição. Geralmente, nela aparece: “Aqui morava” (hier wohnte) ou “aqui vivia” (hier lebte) ou “aqui atuou” (hier wirkte), tendo, logo depois, o nome da pessoa homenageada, data, lugar de nascimento e o destino que teve: suicídio (selbstmord) ou, na maioria dos casos, deportação e assassinato nos campos (deportation ou ermordet). O objetivo dessa intervenção artística é criar pequenos memoriais para relembrar as vítimas do nacional-socialismo, mortos nas deportações, nos campos, nas câmaras de gás. Em maio de 2016 o sol brilhava no bairro de Scheunenviertel, Berlim. O lugar abrigava antigamente uma considerável população judaica, em sua maioria originária da Europa Central e Oriental. Ali, um grupo de pessoas vindas da Alemanha, Israel e Holanda e estudantes do Canadá (em viagem de pesquisa sobre a Shoá) estão prestes a iniciar uma cerimônia. Trajando seu chapéu típico, Gunter Demnig chega ao local. Ele carrega baldes de cimento, ferramentas e duas reluzentes placas em memória das vítimas judias, Erzsebet e Jakob Honig.

Após uma curta introdução, ajoelha-se e começa a cavar. Atrás do público presente, crianças brincam onde antes havia numerosos prédios habitados por dezenas de famílias. Muitas foram forçadas a sair, para depois serem assassinadas em Auschwitz. O artista termina o trabalho em 10 minutos. Após inserir as placas na calçada, ele lhes dá uma polida, tira o chapéu e volta para o carro.

À noite, numa cerimônia para lembrar os 20 anos das stolpersteine, Demnig conta que naquele dia colocara pedras comemorativas em 17 endereços berlinenses. Em 2015, passou 258 dias viajando pela Europa, colocando placas em até três cidades num só dia. Algo inimaginável em 1996, quando depositou as primeiras “pedras-obstáculo” para os 50 moradores judeus do bairro de Kreuzberg, em Berlim, como parte de um projeto artístico intitulado “Künstler forschen nach Auschwitz” (Artistas pesquisam Auschwitz). Na ocasião, as stolpersteine eram ilegais e em sua colocação não havia imprensa, polícia ou parentes, apenas alguns curiosos.

Agora são mais de 7 mil “pedras-obstáculo” somente na capital alemã e 60 mil pela Europa: de Trondheim (Noruega) até Salônica (Grécia); de Orel (Rússia) até l’Aiguillon-sur-Mer (França). Elas já se tornaram parte inseparável da paisagem urbana da Alemanha, Bélgica e Holanda. Há inclusive visitas guiadas especialmente para vê-las em cidades como Amsterdã, Budapeste e Roma.

Hoje as placas são tantas que Demnig não tem mais tempo de produzi-las. Desde 2005, o escultor Michael Friedrichs-Friedländer as faz manualmente em seu ateliê na periferia de Berlim. O artista considera todas as “pedras-obstáculo” comoventes, mas ficou particularmente emocionado com 34 delas, fabricadas para 30 órfãos e seus quatro cuidadores, colocadas diante de um orfanato de Hamburgo. Com a voz embargada, ele desabafa: “Eles tinham entre três e cinco anos... Eu não pude dormir por semanas”.

Uma “stolpersteine” para o Dr. Félix Bloomfield

O arquiteto Peter Bloomfield  e sua família participaram em  Kassel de uma cerimônia de colocação de “stolpersteine” em homenagem a uma vítima da Shoá,  o avô de Peter, o Dr. Félix Bloomfield, um destacado médico de quem os nazistas cassaram, assim como de todos os  médicos judeus  que viviam nas áreas sob seu domínio, o direito de exercer sua profissão. O caso Bloomfield difere dos outros, pois ele foi homenageado com duas “pedras-obstáculo”: uma colocada na sua casa e outra frente ao “Kinderkrankenhaus Park Schonnfeld”, uma clínica para crianças. A clínica infantil que funcionava existiu até pouco tempo. Atualmente virou um abrigo para refugiados sírios, iraquianos e afegãos.

Quinze anos atrás, Peter Bloomfield visitou o hospital pediátrico, que era também o primeiro de Kassel, no qual o Dr. Bloomfield desenvolvera importantes avanços na pediatria, obtendo a fórmula de um medicamento para combater os então altos índices de mortalidade infantil.  Em 1933, já impedido de exercer a medicina, o Dr. Félix ainda trabalhava no hospital que ele mesmo fundara. Patriota, negou-se a deixar Alemanha. Num primeiro momento, o círculo de conhecidos conseguiu evitar que fosse deportado. Mas, não podendo exercer a medicina para se sustentar, foi obrigado a trabalhar de  gari, coletando o lixo da cidade.  A humilhação, a falta de dignidade e a retirada da cidadania alemã levaram Bloomfield a cometer suicídio em 1942, deixando uma carta onde relata os momentos de degradação vivenciados.  No ano de 2012, voluntários da comunidade judaica de Kassel formaram um grupo que  preparou uma lista de vítimas do Holocausto, candidatos a serem homenageados com uma das stolpersteine. A moradora de Kassel, Barbara Bahr, ajudou a família Bloomfield a obter informações sobre o Dr. Félix em artigos de revistas e jornais. Barbara explica, emocionada, que “não gostaria que os nomes das vítimas fossem esquecidos”. Peter Bloomfield comenta que logo percebeu que se tratava de um projeto sério, envolvendo Gunter Demnig, e que o dinheiro deveria vir de patrocínios privados.

Peter Bloomfield chegou a Kassel com alguns membros de sua família direta. Na cerimônia também estavam presentes o irmão mais velho, Steven (68 anos) e seus familiares. Demnig queria que a cerimônia fosse realizada em um sábado, porém a pequena comunidade judaica de Kassel não concordou, ficando, então, a cerimônia para após o pôr do sol, em 1 de novembro de 2013. Emocionado, Steven Bloomfield disse: “É inacreditável que 70 pessoas entre membros da família, historiadores, médicos e boa parte da comunidade se fez presente numa noite tão fria e chuvosa”.

Durante a cerimônia, médicos e funcionários do hospital renderam uma homenagem ao Dr. Félix Bloomfield. Uma senhora idosa relembrou seu encontro com o médico. Na época, ela tinha uma doença de pele que ninguém conseguia tratar. Sua mãe a levou ao Dr. Félix que aceitou tratá-la, mesmo já banido da prática médica pelos nazistas. Arriscando sua vida, ele a tratou e  curou.

Uma stolpersteine para Charlotte Salomon 

Filha única de Albert e Fränze Salomon, Charlotte Salomon  (1917-1943) foi uma artista plástica que expressou sua arte de uma forma sui-generis. Enquanto a 2a Guerra devastava a Europa e os nazistas matavam milhões de judeus, a artista criou uma opereta que, através da ficção, contava a verdadeira história de sua família desde a 1ª Guerra até 1941.

Em sua obra, ela transformou a si mesma e a todos aqueles que fizeram parte de sua curta vida em personagens com nomes fictícios que aludiam a alguma de suas características pessoais. O resultado foi uma obra muito interessante e muito peculiar à qual deu o título tão pouco comum quanto a própria obra, “Leben? Oder Theater? Ein Singspiel”, ou seja: “Vida? Ou Teatro? Um Drama Musical”.

Após deixar a Alemanha, em janeiro de 1939, Charlotte foi enviada por seus pais para Villefranche-sur-Mer, sul da França, próximo a Nice, onde então viviam seus avós maternos. Encantada pela paisagem da Riviera francesa, tudo que ela queria era ficar sozinha e desenhar. Em setembro de 1939, estoura a 2a Guerra Mundial. Desesperada, a avó de Charlotte tenta o suicídio e, para alegrá-la, a jovem decide criar um livro de história, ilustrado, sobre o passado da família. Era a sua primeira tentativa na direção de Leben? Oder Theater?.

Ela levava seu caderno de desenho para o ar livre e, assim, pintou mais de 1 mil guaches reproduzindo tragédias familiares reais e imaginárias, misturando-as com acontecimentos históricos. Os últimos guaches são compostos apenas por palavras, pois pressentia que o tempo lhe fugia e ela precisava terminar de contar sua história. No final, escolheu 760 guaches, organizando-os em atos e cenas, e introduziu um narrador.  A história de “Charlotte Kann” será contada pela voz dela. 

Até o ano de 1942, a Riviera francesa estava sob domínio da Itália. Apesar de aliados de Hitler, os italianos não pretendiam deportar judeus, o que lhes permitiu viver dentro de certa normalidade até setembro de 1943 quando a área é ocupada pelos alemães. Eichmann envia para lá o SS Alois Brunner com a missão de deportar 1.800 judeus que  ainda viviam na região. Fracassaram as tentativas de organizar o resgate desses judeus, pois Brunner foi mais rápido e, em 24 de setembro, prendeu centenas, entre eles, Charlotte Salomon e Alexander Nagler, seu marido.  Os dois são deportados para Drancy e, em seguida, para Auschwitz. Charlotte, já grávida de cinco meses, não sobreviveu à primeira seleção, enquanto Nagler viveu até 1944.

Pouco antes de ser deportada, Charlotte tinha uma única preocupação: salvar seu trabalho se não fosse possível salvar sua vida. Assim, entregou as mais de mil pinturas a um amigo próximo, o médico Dr. Moridis,  pedindo-lhe: “Guarde isto em segurança, toda a minha vida está aqui”. Ela jamais poderia imaginar quão longe “sua vida” chegaria, após a guerra.

Terminada a guerra, o Dr. Moridis entregou o trabalho de Charlotte a Ottilie Moore, velha amiga da família. Finalmente, o pai, Albert, e sua segunda esposa, Paula Lindberg-Salomon, foram a Villefranche-Sur-Mer para reivindicar o que Charlotte pintara nos anos em que lá vivera. Ottilie, no entanto, só lhes entregou o pacote que continha os guaches de “Vida? Ou Teatro?”.

Os stolpersteine de Albert Salomon, Paula Lindberg-Salomon e Charlotte Salomon, foram colocados na Wielandstrasse 15,Berlim, em 25 de agosto de 2012, por iniciativa de Gerhard Schoenberner, amigo da família.

Uma stolpersteine  para  Olga Benário

Em 12 de fevereiro de 2008, Olga Benário Prestes completaria 100 anos. Como ponto alto das homenagens, a “Galeria Olga Benario”, de Berlim, inaugurou uma pedra-obstáculo em frente ao último endereço que esta revolucionária ocupou na capital alemã. Sua stolpersteine está instalada na calçada da Innstrasse 24, no bairro de Neukölln, e foi inaugurada por sua filha única, a professora Anita Leocádia Prestes, nascida na prisão de Barnimstrasse, Berlim, em 1936, e arrancada dos braços de sua mãe 14 meses depois.

Olga Benário nasceu em Munique e nos anos 1920 já era considerada pela República de Weimar como uma agitadora comunista. Juntamente com seu amigo, Otto Braun, mudou-se para Berlim, tornando-se membro da Juventude Comunista. Ocuparam um pequeno apartamento na Innstrasse, onde foram presos. Olga logo foi libertada, organizando junto com os camaradas uma ação para resgatar Otto Braun da prisão de Moabit.

Em abril de 1928, invadiram a sala do tribunal para onde Braun era conduzido, rendendo os policiais e libertando o preso. Após esta operação, Olga e Braun fugiram rumo a Moscou para trabalhar pelo “Movimento Trabalhista Internacional”.

Em 1935, Olga conheceu Luiz Carlos Prestes nas fileiras do Partido Comunista Internacional. Logo se apaixonaram e partiram de Moscou para Rio de Janeiro, onde  organizaram, sem sucesso, a Intentona Comunista de 1935. Em 1936, Olga foi presa, grávida, e entregue à Gestapo pelo presidente Getúlio Vargas. Em setembro do mesmo ano, foi enviada a Berlim, tendo a filha, Anita, na prisão. No começo de 1938 foi separada da criança e enviada para o campo de concentração de Lichtenburg.

Olga passaria ainda três anos no campo de mulheres de Ravensbrück, antes de ser deportada, em 1942, para as câmaras de gás em Bernburg. Em 1984, a “Associação dos Perseguidos pelo Regime Nazista” fundou a Galeria Olga Benario.  O espaço vem-se tornando nos últimos anos uma referência sobre a coragem feminina.

Itália coloca suas “Stolpersteine”

A Itália se rendeu à ideia de Gunter Demnig, também homenageando dessa forma suas vítimas do Holocausto. Os italianos entenderam que a memória não se limita ao único dia comemorativo, como, por exemplo, o Dia da Deportação dos Judeus de Trieste, mas se torna parte inseparável do presente e do futuro. O local onde as stolpersteine  foram colocadas em Roma estão listados no site  www.memoriedinciampo.it. Há sete instituições que participaram do projeto, dentre elas o Antigo Centro Histórico de Roma.  O projeto de Demnig é financiado por inúmeras entidades e conta com o apoio do presidente da Itália.

A Itália constituiu um comitê científico para dar suporte ao projeto das stolpersteine, com renomados historiadores. Em janeiro de  2012 foi agraciado com uma “pedra-obstáculo” o padre Pietro Pappagallo, que escondeu judeus durante a guerra. Traído por uma alemã, ele foi preso e condenado à morte em 1944. Um cubo de latão no chão da Via Urbana 2, em Roma, homenageia o sacerdote.

Houve, na Itália, atos de vandalismo contra as stolpersteine. No início de 2012, em Santa Maria in Monticello, pessoas desconhecidas removeram e substituíram por pedras normais as comemorativas ali colocadas. Elas estavam dedicadas à memória das três irmãs Spizzichino: Graziela, Letizia e Elvira, judias mortas no Holocausto. Atos bárbaros, ultrajantes e vergonhosos como estes não apagarão jamais a memória destas três pessoas, pois a memória de um ser humano não está ligada à materialidade visível de uma placa, vivendo eternamente na mente e no coração daqueles que os valorizam.

Palavras Finais

As stolpersteine convidam à reflexão. Lidar com datas e acontecimentos históricos é emocionante, mas descobrir uma inesperada “pedra-obstáculo”, começar a ler a sua inscrição e ver a casa onde a pessoa viveu ou trabalhou, é totalmente diferente. O projeto stolpersteine devolve às vítimas o seu nome. Deixa evidente que se está diante do que foi um ser humano com nome, um lar, uma família e uma história única. Fatos cruéis vão adquirindo um rosto e se tornam tangíveis. Vizinhos se emocionam ao ver as pedras e, assim, tomam consciência dos seus destinos dramáticos. Descobre-se que o horror não poupou a cidade, o bairro ou a rua; mas que numa realidade triste houve também pessoas corajosas que arriscaram a vida contra o regime de terror.

As pedras de Gunter Demnig são lápides. Elas relembram a morte de crianças, mães, avós, tios, parentes com nome e sobrenome. Registram a data em que cada um foi preso, humilhado, deportado, escravizado, morto, incinerado em nome das nefastas filosofias e políticas do Terceiro Reich. Apesar de sua tradução em português, estas pedras não devem representar um “obstáculo”. Elas testemunham o quanto um Estado totalitário conduzido por seres inescrupulosos, adeptos a filosofias imorais, pode converter-se numa máquina de destruição.

Há também críticos do projeto stolpersteine, como Charlotte Knobloch, ex-presidente do Conselho Central dos Judeus na Alemanha. Segundo ela, colocar pedras memoriais no chão é ofensivo, pois as vítimas judias voltam a ser pisoteadas. Gunter Demnig contesta a crítica afirmando: “Quem se abaixa para ler a inscrição na pedra-obstáculo, curva-se diante das vítimas”.

Encerro este artigo registrando um poema anônimo intitulado “Stolpersteine”:

Me deparei com você,
alma irmã transformada em pedra,
gravada numa calçada pavimentada,
transitada por milhares.

Como dente dourado,
extraído do passado urbano,
reintegrado em espaços perdidos
e inutilizados, ao longo do tempo.

Quintal - Hinterhof,
[mistura] de luto e culpa,
que arde nos meus olhos,
piscando com o brilho do sol,
daquele último verão;             
mexendo no passado,
agitando seu nome,
dos pés à cabeça:
Gisela e Elvira,                                         
Sofia, Edith e Kira.

Uma memória brilhante,
perdida, porém polida,
lembrada nas calçadas,
e nas “pedras-obstáculo”.

BIBLIOGRAFIA
Aquino, Felipe, As pedras de tropeço de Roma. Editora Cléofas, 2012.
Charlotte Salomon, A obra de uma vida. Morashá, abril de 2012
http://www.stolpersteine.eu/en/home/
Festiner, Mary Lowenthal, To paint her life: Charlotte Salomon in the Nazi era. University of California Press, 1997
Morais, Fernando, Olga. 2ª edição. Companhia das Letras, 1993.
http://stolpersteine.jimdo.com/ biografien/ dr-felix-blumenfeld/

Prof. Reuven Faingold é historiador e educador; PHD em História e História Judaica pela Universidade Hebraica de Jerusalém. É sócio fundador da “Sociedade Genealógica Judaica” do Brasil e, desde 1984, membro do “Congresso Mundial de Ciências Judaicas” em Jerusalém. Atualmente, é responsável pelos projetos educacionais do “Memorial da Imigração Judaica” de São Paulo.