O pequeno vilarejo holandês de Nieuwlande foi palco de um dos principais resgates coletivos de judeus, durante o Holocausto. Ao longo da 2ª Guerra Mundial, a população local decidiu que cada lar esconderia uma família judia ou pelo menos um judeu. Esta história extraordinária, no entanto, ainda é pouco conhecida, inclusive na própria Holanda. Durante a guerra, o silêncio era essencial, mas, atualmente, é importante que esta história seja contada e recontada.
Localizado no nordeste da Holanda, o pequeno vilarejo de Nieuwlande se tornou, em 1985, um dos dois únicos lugares homenageados pelo Museu do Holocausto Yad Vashem por salvarem judeus, de forma coletiva, durante a Shoá. O outro local, cuja história é mais conhecida, é Chambon-sur-Lignon, na França.
A maior parte da população de Nieuwlande era composta por protestantes religiosos; acredita-se que a fé tenha sido um elemento importante nesta operação de resgate tão singular.
Durante a Guerra
A invasão da Holanda começou em 10 de maio de 1940. As autoridades alemãs encontraram muitos colaboradores no país e esse país teve um dos maiores índices de mortalidade entre judeus da Europa Ocidental ocupada. Dos 140 mil judeus holandeses, mais de 100 mil foram assassinados.
Por outro lado, o país tem, também, o segundo maior número documentado de indivíduos que se arriscaram para salvar judeus. A geografia do território holandês dificultou a fuga da população judaica, portanto, muitos tiveram que se esconder. Entre 25 mil e 30 mil judeus conseguiram se esconder auxiliados pela Resistência clandestina holandesa. Dois terços dos que conseguiram se esconder sobreviveram à Shoá.
A deportação dos judeus começou no verão de 1942. Entre 1942 e 1943 a população de Nieuwlande decidiu que cada lar esconderia uma família ou pelo menos um único judeu, o que muitos fizeram ao longo da Guerra. A maioria dos moradores da cidade e dos arredores envolveram-se nessa operação e salvaram centenas de judeus, dentre os quais muitas crianças. Não é possível saber o número exato de pessoas salvas porque a Resistência clandestina as mudava constantemente de lugar, usando documentos falsos para identificar os resgatados.
Dada a natureza coletiva do esforço em salvar os judeus, reduziu-se parte do perigo para seus moradores: não havia medo de denúncia, já que todos os moradores da aldeia eram parceiros no “crime”. O sentimento comunitário e religioso também os impedia de informar às autoridades oficiais.
Localizado em uma área rural, Nieuwlande era um vilarejo composto por pouco mais de 150 fazendas distantes umas das outras e separadas por valas. A configuração da cidade era favorável à manutenção do segredo, e até a igreja local era usada como esconderijo. “Nieuwlande era um bom lugar para a Resistência, pois as pessoas não sabiam necessariamente o que ocorria na fazenda de seus vizinhos, e muitos não tinham sequer interesse em descobrir”, conta Hanneke Rozema, moradora do local.
Rede de apoio
À frente de toda a operação de resgate estavam Johannes Post e Arnold Douwes. O primeiro era fazendeiro e conselheiro do povoado, e foi responsável pelo recrutamento do segundo, filho de um pastor. Post foi um herói muito famoso da Resistência holandesa. Mesmo não sendo muito próximo dos judeus ou do judaísmo, dedicou-se incansavelmente a ajudá-los à medida que o antissemitismo se tornava cada vez mais evidente.
Douwes, Post e a Resistência trabalhavam para esconder judeus e outras pessoas que fugiam dos nazistas. Era uma empreitada complexa e perigosa. Envolvia recrutamento, gerenciamento e arrecadação de recursos para garantir documentos, cartões de racionamento, assistência médica e, o mais importante, encontrar pessoas dispostas a abrigar os fugitivos. Cada um dos que os procuravam recebia alimentos, novos documentos e dinheiro. Douwes e Post criaram um código para identificação de cada refugiado de acordo com o sexo e idade.
Quando, em 1943, tornou-se arriscado para Johannes Post permanecer na região, Douwes assumiu o seu lugar e passou a administrar, sozinho, toda a rede de resgate.
Imbuído do objetivo de salvar o maior número de pessoas, Arnold Douwes atravessava grandes distâncias, de bicicleta, parando de casa em casa, de fazenda em fazenda, perguntando se os moradores aceitariam abrigar uma criança judia. Em alguns casos, quando tinha seu pedido negado, forçava as pessoas a aceitar e dar abrigo a um fugitivo dizendo que eram ordens da Resistência.
Nesse processo de percorrer o campo em busca de novos refúgios, Douwes contou também com a ajuda de Max (Nico) Leons, judeu refugiado em Nieuwlande. Nico teve uma participação cada vez mais ativa na Resistência, inclusive tomando parte em missões clandestinas mais perigosas para ele do que para alguém com uma aparência mais ariana.
Além de Nico, alguns judeus escondidos na cidade tiveram forte participação na Resistência. Entre eles, Isador Davids e Lou Gans, dois jovens judeus refugiados que produziam cartões e panfletos antinazistas ridicularizando os alemães. Estes cartões eram vendidos para arrecadar recursos para o esforço de resgate.
Depois de serem convocadas para o processo de deportação, as famílias judias – muitas das quais viviam em Amsterdã – eram encaminhadas a Arnold Douwes, para que a rede pudesse auxiliá-los a viver na clandestinidade. Muitas vezes ele mesmo entrava em contato com essas famílias, em Amsterdã, incentivando-os a permitir que seus filhos fossem levados para outros lugares mais seguros. Ele mesmo os buscava em Amsterdã ou na estação de trem de seu distrito e os levava – adultos e crianças – para locais seguros.
Além de refúgios adicionais para as novas pessoas que chegavam, muitas vezes era necessário encontrar novas casas para os que já estavam escondidos. A situação mudava repentinamente e de um minuto a outro um determinado lugar deixava de ser seguro. Em inúmeras ocasiões, Douwes, de bicicleta, transferia os foragidos de esconderijo. Membros da Resistência também construíam esconderijos na floresta, logo além da linha das casas, onde os judeus poderiam se refugiar temporariamente se alguma incursão nazista estivesse se aproximando.
De certa forma, as pessoas escondidas em Nieuwlande desfrutavam de alguma liberdade e alguns até trabalhavam nos campos. A liderança estava consciente de que o povoado inteiro poderia ser punido se a operação fosse descoberta, por isso foram adotados medidas e procedimentos de segurança para garantir o sigilo, como, por exemplo, a proibição de qualquer comunicação entre os escondidos e o mundo exterior.
Arnold Douwes foi logo incluído na lista dos mais procurados pela Gestapo e, para não ser preso, mudou até a sua aparência. Mas acabou sendo preso em 1944. Enquanto aguardava a execução foi resgatado em uma surpreendente operação executada pela Resistência. Permaneceu escondido até a libertação da Holanda. Johannes Post foi capturado pelos nazistas e executado em 1944. A Holanda foi libertada pelos aliados em 5 de maio de 1945.
Colega de Anne Frank
Apesar do layout de Nieuwlande,favorável para a manutenção em segredo de toda essa ação, ainda assim ocorriam incursões e buscas nazistas atrás dos judeus. Sally Kimmel, um menino judeu e ex-colega de classe de Anne Frank, viveu um ano escondido no vilarejo sem saber que seu tio, sua tia e dois primos estavam escondidos a poucos quilômetros de distância, até que finalmente conseguiu se reunir com a família.
Em fevereiro de 1945, durante uma patrulha feita por uma unidade nazista holandesa, um homem próximo a uma fazenda despertou a atenção dos nazistas, por sua aparência de estrangeiro. O proprietário, Jan van der Helm, foi abordado pela patrulha e morto a tiros ao tentar fugir. O esconderijo de Sally Kimmel e sua família foi descoberto, e seu tio, Szaya Reiner, foi espancado até a morte diante da esposa, filhos e sobrinho. Os quatro foram enviados para um campo de concentração e, felizmente, sobreviveram ao Holocausto. Os nazistas, entretanto, não descobriram o grande segredo de Nieuwlande.
Um diário e um jornal
As atividades e ações da Resistência e a vida subterrânea dos foragidos estão bem documentadas. Lou Gans e Isador Davids, por exemplo, passaram a maior parte da Shoá sob as tábuas de uma antiga igreja, em Nieuwlande, onde, além dos cartões já mencionados, produziam um jornal escrito à mão, De Duikelaar, termo em holandês para “pessoa escondida”, nome que foi dado ao novo museu de Nieuwlande, inaugurado em 2018, em sua homenagem. A publicação incluía caricaturas dos políticos nazistas e histórias sobre a vida na clandestinidade. Os dois adolescentes sobreviveram à guerra e permaneceram na Holanda. Somente duas cópias dos jornais ainda existem e uma destas está exposta no museu da cidade.
Violando seus próprios protocolos de segurança, Arnold Douwes escreveu um diário sobre suas atividades, deixando-as registradas em detalhes. Escrevia uma página do diário, colocava dentro de uma garrafa e a enterrava. Somente as desenterrou no final da guerra. Em 2018, foi publicada uma edição de seus escritos em inglês e em holandês, com o título de Os Diários Secretos de Arnold Douwes. Ele foi um dos poucos membros da Resistência que manteve um diário durante a 2ª Guerra Mundial.
Depois da Guerra
Ao término da Guerra Arnold Douwes se casou com Jet Reichenberger, uma mulher judia a quem havia resgatado. Na década de 1950, eles emigraram para Israel, onde viveram em um moshav e criaram três filhas. Acabaram se divorciando e, após a separação, Douwes retornou à Holanda.
Ele foi homenageado pelo Estado de Israel com o título de “Justo entre as Nações”, honraria concedida a não judeus que arriscaram a vida para salvar nossos irmãos durante a Shoá. E Yad Vashem guardou seu nome para a posteridade com o plantio de uma árvore no início da Avenida dos Justos entre as Nações, em frente à entrada do Museu.
Temperamental que era, como ele próprio se descrevia, Douwes ameaçou queimar sua árvore no Yad Vashem se todo o seu povoado não fosse também homenageado. Em 1988 o Museu dedicou um monumento ao vilarejo e a todos seus habitantes.
Johannes Post, responsável por recrutar Douwes e iniciar as atividades para esconder judeus em Nieuwlande, também foi homenageado postumamente com o título de “Justo entre as Nações”.
Em 1985, em uma rara entrevista concedida ao jornal regional Nieuwsblad van het Noorden, Arnold Douwes declarou: “Eu fiz tudo isso porque não tinha outra escolha”. Douwes faleceu em 1999, aos 93 anos.
Max “Nico” Leons, o judeu que trabalhava para a Resistência em Nieuwlande, também sobreviveu à Shoá, falecendo em 2019.
Nos últimos anos, Nieuwlande começou a contar sua história. Um dos esconderijos usados para abrigar judeus foi restaurado e transformado em monumento em lembrança à Guerra. Na fachada vê-se uma cópia do certificado do Yad Vashem, em hebraico, concedido à cidade (foto à pág. 59).
Em 2018, foi inaugurado em uma velha escola da cidade o primeiro museu em homenagem ao resgate, com o nome de “De Duikelaar”, nome do jornal clandestino de Lou Gans e Isador Davids. “Contar a história é dizer que o que aconteceu aqui foi extraordinário, mas para muitos dos que participaram da operação e suas famílias, era tão evidente que era a coisa certa a se fazer que não era algo a se orgulhar”, disse Hanneke Rozema, moradora da cidade e uma das fundadoras do museu. “Eu acredito que esta seja uma das razões, pelo menos parcialmente, dessa história ser relativamente desconhecida”, completou.
BIBLIOGRAFIA
The Memorial Honoring the Village of Nieuwlande, artigo publicado no site https://www.yadvashem.org/righteous/about-the-righteous/related-sites-html
This Dutch village is finally ready to tell its unique Holocaust rescue story, artigo publicado por Cnaan Liphshiz na edição on line do jornal Times of Israel em 16 de fevereiro de 2021