Em seu avanço para retomar as nações europeias conquistadas pelo Terceiro Reich, tropas aliadas libertaram campos de concentração nazistas e encontraram judeus sobreviventes. Outros milhares deles ainda estavam milagrosamente vivos, escondidos nos guetos em ruínas, nas florestas e nas cidades. Duas perguntas assombravam os sobreviventes: alguém mais se salvara? Como iriam reconstruir suas vidas?
Estima-se que na Europa tenham sido encontrados, no final da guerra, 500 mil judeus, dos quais um grande número estava in extremis, tanto em termos físicos como psicológicos. Eles não sabiam que suas provações não estavam terminadas, que os esperavam mais desilusões e sofrimentos.
Ao libertar os campos de concentração nazistas os soldados aliados ficaram assombrados, não conseguindo, muitas vezes, distinguir os judeus vivos dos moribundos e dos já falecidos. O socorro foi prestado imediatamente, mas, por maiores que fossem os esforços e a dedicação dos que tentaram salvá-los, dezenas de milhares de judeus morreram nos primeiros meses após a libertação. Em Bergen-Belsen, um dos infames campos de concentração, houve mais de 23 mil mortes em três meses após a libertação, 90% das quais eram judeus.
Acabada a guerra, os judeus remanescentes da catástrofe tentaram retornar a suas casas e imediatamente começaram a procurar desesperadamente por suas famílias, para saber se alguém sobrevivera. Para esse fim, foi criado o Central Tracing Bureau que os ajudava a localizar parentes, e as transmissões de rádio e jornais públicos continham infindáveis listas de sobreviventes e seu paradeiro.
As Pessoas Deslocadas
Antes mesmo do término da guerra, as Forças Aliadas previam que haveria na Europa uma crise de refugiados, sendo então elaborados planos para repatriar os milhões de deslocados de guerra (DP - Displaced People). Após a derrota da Alemanha, os Aliados – norte-americanos, britânicos, soviéticos e franceses – cada um deles ocupando um diferente setor geográfico na Alemanha e na Áustria – incumbiram a seus exércitos a tarefa de facilitar o rápido retorno dos DPs à sua respectiva terra natal.
Em seu avanço pela Europa, os exércitos aliados encontraram entre sete a nove milhões de pessoas deslocadas pela guerra vivendo em países que não eram os seus. Apesar da caótica situação da Europa no pós-guerra, os Aliados acreditavam que a repatriação duraria por volta de seis meses. E, de fato, entre os meses de maio e dezembro de 1945, os militares e a UNRRA – United Nations Relief and Rehabilitation Administration – repatriaram mais de seis milhões de DPs. Mas dentre estes, os judeus oriundos da Europa Oriental eram um problema à parte, cuja solução provou ser difícil e demorada.
Apesar das imensas dificuldades, os judeus da Europa Ocidental conseguiram voltar para seus lugares de origens. Mas os da Europa Oriental não tardaram em perceber que não tinham para onde ir. Suas famílias, amigos, vilarejos e cidades inteiras haviam deixado de existir. Suas casas e seus bens haviam sido confiscados, e ninguém pretendia devolvê-los. Muitos dos que retornaram passaram a temer por sua vida, constatando que o mesmo antissemitismo arraigado que existia antes da guerra ainda estava vivo e forte. Na Polônia, por exemplo, os habitantes locais iniciaram vários pogroms violentos. O pior foi o de Kielce, em 1946, no qual 42 judeus, todos sobreviventes do Holocausto, foram mortos. Esses pogroms levaram a um segundo movimento significativo de refugiados judeus da Polônia para o oeste.
Campos para DPs
O Exército norte-americano, buscando solucionar os problemas mais prementes, organizou, em sua respectiva zona de ocupação, campos para pessoas deslocadas onde lhes era garantido abrigo, alimentação, segurança. Durante os primeiros meses os rabinos do Exército norte-americano serviram como representantes dos DPs judeus, cuidando de sua correspondência e de suas solicitações.
Mas as forças aliadas não estavam preparadas para lidar com a situação encontrada nos campos, tampouco com um contingente tão grande de pessoas. No pós-guerra não havia recursos suficientes, nem locais onde podiam ser abrigados, e a terrível solução foi abrigá-los nos campos de concentração nazistas renovados. Bergen-Belsen foi um dos campos de concentração que acabou sendo transformado em campo de pessoas deslocadas.
Mesmo renovados, os campos não estavam preparados de forma alguma para acolher a avalanche de pessoas que, fugindo, das zonas sob o domínio da União Soviética, procuravam refúgio na Zona Norte-americana a partir de 1945.
Meses após a libertação muitos judeus – que haviam escapado por pouco da morte quando da libertação pelas forças aliadas dos campos de concentração e trabalho forçado – ainda permaneciam nesses mesmos campos que, apesar de livres, ainda estavam por trás de arame farpado. O drama da subnutrição, tifo, piolhos e graves traumas psicológicos ainda afligiam essas pessoas.
As condições nesses locais eram muitas vezes insalubres devido à severa superlotação e à falta de suprimentos no período pós-guerra. Inicialmente, todos os deslocados (que incluíam militares alemães, guardas nazistas, sobreviventes de campos de concentração, prisioneiros de guerra e trabalhadores escravos) foram agrupados nos campos de acordo com a nacionalidade. Isso significava que, nesses campos, alguns sobreviventes judeus se encontravam lado a lado com seus antigos algozes simplesmente por serem oriundos do mesmo país.
Enquanto os soldados utilizavam médicos, remédios, alimentos das forças armadas, o mesmo não se aplicava ao vestuário. A falta de roupas civis para todos os DPs significava que, num primeiro momento, muitos judeus continuavam a se vestir com seus míseros uniformes dos campos ou as roupas dos soldados alemães.
Os sobreviventes, que se referiam a si mesmos como she’erit hapletah (o remanescente sobrevivente), um termo bíblico de Ezra 9:14 e Crônicas I 4:43, desejavam deixar o que consideravam o solo amaldiçoado da Alemanha e da Europa o mais rápido possível. Mas os portões da Terra de Israel e de outros destinos permaneciam fechados e, em muitos casos, sua condição física e psicológica impossibilitava qualquer movimento imediato.
Com o passar dos meses as relações entre os DPs judeus e o Exército norte-americano se deterioraram. À medida que o número de deslocados aumentava, os militares norte-americanos, quem sabe com que tipo de autojustificativa, passaram a impedir sua saída dos campos a não ser que tivessem uma destinação definitiva. Era uma perversidade inimaginável: os judeus atrás de arame farpado, sob a mira de guardas armados, enquanto a maioria dos criminosos de guerra nazistas viviam em suas casas, moviam-se em liberdade e continuavam a odiar as vítimas cuja destruição não conseguiram alcançar.
A situação só mudou por ordem direta do então presidente Harry Truman, dos Estados Unidos. Em 22 de junho de 1945, o presidente solicitou a Earl G. Harrison, reitor da Faculdade de Direito da Universidade da Pensilvânia e recém-nomeado delegado norte-americano ao Comitê Intergovernamental sobre Refugiados, que, na qualidade de seu enviado pessoal, preparasse um relatório sobre a situação dos judeus deslocados na Europa. Harrison fez uma visita de inspeção de três semanas aos campos de DP, acompanhado pelo Dr. Joseph Schwartz, um representante do Comitê Judaico Americano de Distribuição Conjunta (o conhecido Joint, responsável pela vinda de tantos de nossos leitores ao Brasil).
Harrison ficou chocado com o que viu nos campos e não mediu palavras em seu relatório ao presidente Truman. O relato foi uma condenação contundente da forma como os DPs judeus estavam sendo tratados, e a denúncia visava provocar uma ação rápida dos Estados Unidos.
“Como as coisas estão agora, parece que estamos tratando os judeus da mesma forma como os nazistas o fizeram, exceto que não os exterminamos. Em grande número, eles estão em campos de concentração, sob nossa guarda militar, em lugar das tropas das SS.”
Entretanto, independente das agruras, milhares destes judeus procuravam ansiosamente retornar à vida. A tentativa de reagrupar as famílias acompanhou a criação de novas; houve muitos casamentos e muitos nascimentos nos campos de Pessoas Deslocadas.
Grande parte destas pessoas eram homens e mulheres jovens, que se apaixonaram, casaram e criaram novas famílias. Os recém-nascidos representavam a grande vingança contra o extermínio do Povo Judeu. As crescentes taxas de gestações e nascimentos expressavam uma profunda necessidade judaica; era como se uma criança fosse a contribuição pessoal de cada sobrevivente para a existência continuada do Povo Judeu.
Durante sua vigência, entre 1946 e 1950, os campos de DP como Feldafing, Fohrenwald, Landsberg e Pocking – localizados perto de pequenas cidades que nunca haviam abrigado uma comunidade judaica – tornaram-se, por um curto período, centros de uma vibrante vida cultural judaica.
Juntamente com o auxílio de muitas organizações, como o Joint, a Cruz Vermelha, a Organization for Rehabilitation through Training (ORT) e a UNRRA, as estruturas autônomas criadas nos campos auxiliaram esses sobreviventes, “pessoas deslocadas”, a recuperar sua dignidade.
Uma de suas principais carências era o contato humano. Haviam perdido sua família e estavam sozinhos no mundo. Assim, a vida foi desabrochando entre eles. Estabeleceram atividades educacionais, treinamentos vocacionais, atividades culturais, entre outras.
Em muitos campos de DP, os judeus libertados elegiam representantes quase que imediatamente após sua libertação. Em Bergen-Belsen, já em 18 de abril de 1945, formaram um comitê representativo, até a criação do primeiro Congresso de Judeus Libertados na Zona Britânica, convocado em setembro daquele ano. Na Zona Norte-americana, foi constituído o Comitê de Judeus Libertados na Baviera (mais tarde expandido para o Comitê de Judeus Libertados na Zona Norte-americana), em uma reunião em 1º de julho de 1945 no campo DP de Feldafing. Em dezembro de 1947, a pequena comunidade de DPs judeus na Zona Francesa elegeria um comitê central semelhante. Os dois principais líderes políticos eleitos pelos DPs em 1945 foram Josef Rosensaft, empresário da cidade polonesa de Bedzin, na Zona Britânica, e Zalman Grinberg, médico da cidade lituana de Kovno, na Zona Norte-americana. A maioria dos partidos judeus do pré-guerra na Europa Oriental participaram das eleições, incluindo os socialistas do Bund e os ortodoxos do Partido Agudat Israel.
No entanto, ao contrário da Europa do pré-guerra, os sionistas de todos os matizes claramente passaram a dominar o espectro político. A linha oficial de todas as organizações que representavam o She’erit Hapletah era sionista. Eles repetidamente pediram ao governo britânico que abrisse a emigração para a Palestina sob Mandato Britânico, e a visita de David Ben-Gurion aos campos de DP, em outubro de 1945, ajudou a ampliar o entusiasmo pela causa sionista. Os sobreviventes ansiavam por criar raízes em outros países. A maioria sonhava em ir para Eretz Israel e lá restabelecer o Estado Judeu, mas os britânicos, que governavam a região, proibiram sua entrada à terra que, há milênios, lhes pertencia. As leis de cotas de imigração dos Estados Unidos e de outras nações, como o Brasil, tampouco facilitaram o restabelecimento geográfico destas pessoas deslocadas.
A Agência Judaica comprou barcos para levar os judeus de volta à sua Terra Sagrada, mesmo que ilegalmente, mas quando essas embarcações eram interceptadas, os britânicos impediam sua entrada e os enviam de volta à Europa e ao campo de detenção, em Chipre. Com isso, a imagem do Reino Unido no mundo ficou extremamente arranhada.
À medida que a crise escalava, o governo britânico decidiu submeter o problema da Palestina às Nações Unidas (ONU). Em uma sessão especial, em 29 de novembro de 1947, a Assembleia Geral da ONU votou pela divisão da Palestina em dois novos estados, um judeu e outro árabe, recomendação esta que os líderes judeus aceitaram e os árabes rejeitaram.
Com a retirada pelos ingleses de suas forças militares da Terra de Israel, no início de abril de 1948, os líderes sionistas se mobilizaram para estabelecer um Estado Judeu moderno.
Em 14 de maio de 1948, David Ben-Gurion, presidente da Agência Judaica para a Palestina, anunciou a formação do Estado de Israel, declarando:
“O Holocausto nazista, que engoliu milhões de judeus na Europa, provou novamente a urgência do restabelecimento do Estado Judeu, que resolveria o problema da falta de moradia judaica, abrindo suas portas para todos os judeus e elevando o Povo Judeu à igualdade entre as nações”.
Os sobreviventes do Holocausto, dos campos de deslocados na Europa e dos campos de detenção em Chipre foram recebidos alegremente em Eretz Israel, a ansiada terra judaica.
Enfim, o judeu estava de volta a seu Lar ancestral.
Mendy Tal é Cientista Político e Ativista Comunitário