A história dos judeus em São Paulo é muito rica, já tendo inspirado uma boa quantidade de livros de história, memórias individuais e filmes.
Como o espaço é limitado, há que se escolher um critério para recontá-la. Neste ensaio a abordagem se dá pelas ondas de migração e origens geográficas. Não é uma história das instituições, nem de seus personagens relevantes, apesar de fazer menção a estes quando necessário; é apenas a identificação dos grupos, que hoje reunidos, compõem o que genericamente conhecemos como a comunidade judaica paulistana. Dividimos o trabalho em duas partes: na primeira, falamos dos alsacianos, dos bessarabers e dos sefaradim que vieram para cá no final do século 19 e esta história vai até os anos 1930. Na segunda parte, de refugiados, tanto dos atingidos pelos regimes ditatoriais, de Itália e Alemanha, quanto os judeus do mundo árabe, que sofreram a retaliação de seus governos pela restauração de Israel.
A cidade de São Paulo, se comparada a outras na Europa e na Ásia, é uma cidade nova, pois foi fundada em 25 de janeiro de 1554. Nasceu no processo de ocupação da terra americana por colonizadores europeus. Na data mencionada, um grupo de sacerdotes católicos, vindos pelo litoral, tinham subido a pé a serra de Paranapiacaba e, depois de mais de duas semanas de viagem, chegado a Santo André da Borda do Campo e seguido para Inhapuambuçu (atual Pátio do Colégio), onde, numa “paupérrima e estreitíssima casinha” de taipa de pilão, celebraram a primeira missa que oficializou a fundação da cidade, surgindo daí o centro da futura metrópole.
O objetivo desse grupo era a construção de uma escola para a cristianização dos indígenas, servindo assim como a ponta de lança da ocupação ibérica. Nesse momento histórico, os Estados ibéricos, Portugal e Espanha, e a Igreja Católica atuavam juntos e confundiam-se os objetivos políticos e religiosos. A política da época resumia-se numa frase: “hujus regio, cujus religio” (tal rei, tal religião). Até o século 19 foi proibida a entrada de qualquer outro grupo religioso no seu território. Os judeus locais, que tinham sido convertidos em 1496, estavam cristianizados, postos em vigilância e sujeitos ao pagamento de impostos especiais (fintas), e excluídos de participação nas profissões consideradas nobres. Mesmo assim, no grupo de fundadores da cidade se encontrava o noviço José de Anchieta (1534-1597), bisneto pelo lado materno de um converso espanhol, Bermejo, que teria sido queimado como “judaizante”, mas sem qualquer ligação com o judaísmo.
Proto-história judaica em São Paulo
Como esta política proibia a entrada em seu território de praticantes de outras religiões, que não a Católica Romana, não viveram judeus em São Paulo até o começo do século 19, porém em alguns momentos, cristãos-novos judaizantes moraram na cidade. Deles merece destaque o agricultor Teotónio da Costa Mesquita (1660–1686), morador em Santo Amaro, e o comerciante Miguel de Mendonça Valladolid (1694-1731), que viveu num sítio no bairro da Penha, ambos denunciados como praticantes ocultos do judaísmo, que foram julgados culpados de acordo com a legislação da época e queimados vivos por esta opção de vida.
Outro caso relacionado é o do padre Bartolomeu de Gusmão (1685-1724), natural de Santos, brilhante intelectual e inventor, que se aproximou de círculos secretos de cristãos-novos em Lisboa e, a partir de algumas reflexões pessoais, acreditou-se ser o Mashiach e que usaria o balão tripulado, inventado por ele, como arma para reconquistar a Terra de Israel para os judeus dispersos pelo mundo. A Inquisição soube de sua pretensão e ele, avisado por amigos influentes, fugiu, talvez para viver entre os judeus portugueses na Inglaterra, mas morreu de fadiga em Toledo. Apesar de não ter vivido em São Paulo, suas cinzas estão guardadas na cripta da catedral da Sé, nesta cidade.
Vindos da França
São Paulo não teve relevância econômica e cultural até a chegada do café, em 1817, e o estabelecimento da Faculdade de Direito, uma década depois. Estes dois eventos atraíram estrangeiros para a província e também para a cidade. Anteriormente, em 1808, Portugal, para resistir o avanço de Napoleão sobre o território lusitano, tinha- se aliado à Inglaterra e, por pressão desta potência não-católica, derrubara a proibição da entrada de protestantes e judeus no país. Isto foi o alicerce da comunidade judaica na cidade São Paulo, já que na segunda metade do século 19, chegaram judeus vindos da França.
No caso paulistano, não há um personagem que possa ser registrado como o primeiro judeu a viver abertamente como tal na cidade. Há uma relação de comerciantes franceses, nomeadamente da Alsácia-Lorena, que por viverem numa zona de desconforto, disputada pela França e Prússia, foram atraídos pelas oportunidades comerciais que surgiram com a comercialização do café. Aqui eles negociavam roupas, relógios, jóias e artigos finos importados da França para os consumidores locais.
Esse tipo de imigrante vivia em trânsito. Sua permanência na cidade era com prazo determinado. Ele vinha com a família, negociava por alguns anos e depois revendia o seu estabelecimento para um parente ou conterrâneo e voltava para a aposentadoria, na França. Dado o seu caráter passageiro, eles não criaram nenhuma instituição religiosa na cidade. Normalmente o culto era feito no seio da família. Mesmo assim, eles são importantes, pois além do seu pioneirismo, deixaram uma imagem positiva dos judeus, ajudando a aceitação dos que viriam depois.
São muitos os alsacianos que se celebrizaram na cidade. Porém, para uma história dos judeus em São Paulo, nos interessa o comissário-agente do Consulado francês, Manfred Meyer (1841-1930), que, ao lado de suas obrigações diplomáticas, também mantinha atividades comerciais e industriais. Casado com uma senhora da aristocracia rural, Elvira Isabel de Souza Queiróz, ele adquiriu, em 1860, num distante bairro rural de São Paulo, formado por chácaras para finais de semana dos mais abastados, o hoje chamado Bom Retiro, grandes lotes, onde montou a Olaria Manfredo, que forneceria material de construção para a cidade que se expandia a partir do Pátio do Colégio. A chegada da Estrada de Ferro São Paulo Railway, que ligava o porto de Santos a Jundiaí, com a inauguração da Estação da Luz, em 1867, deu vida ao bairro periférico, na época.
As fazendas de café eram tocadas por escravos, porém uma série de leis foram diminuindo o espaço destes como trabalhadores rurais, culminando em 1888 com a Lei Áurea, que declarou extinta a escravidão no país. O número de ex-escravos era pequeno para a expansão da cultura do café, e, por uma série de razões, que iam desde demográficas, “branqueamento” da população geral e até como retaliação a esta libertação, começou-se a buscar imigrantes pobres da Europa para ocupar o espaço rural. Esta leva de imigrantes veio para São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. O maior número desses imigrantes são camponeses vindos do que hoje chamamos Itália. Nem todos foram para os campos. Outros já com uma tradição de artesãos, ficaram pela cidade, exercendo profissões como sapateiros, alfaiates e prestando serviços como barbeiros, entre outros. Eles buscavam morar em bairros periféricos onde o aluguel era baixo. Graças a isso, dentre outros motivos, o Bom Retiro tornou-se um bairro de imigrantes italianos e depois de judeus, notadamente da Bessarábia.
Chegaram os Bessarabers
Estes judeus que chegavam da Bessarábia (região hoje dividida entre a Moldávia e a Romênia), na Europa Oriental, vinham de pequenos shtetlach(povoados) rurais, onde sobreviviam fazendo o pequeno comércio em lojinhas ou prestando serviços em torno da agricultura local do fumo e do girassol. O processo de “russificação” empreendido pelo governo czarista aumentara a rejeição e a hostilidade a eles, o que culminou numa série depogroms, nomeadamente os de Kishinev, entre 1903 e 1905.
Estimulados por dificuldades econômicas, secas freqüentes e por essas perseguições, os bessarabers começaram a emigrar, primeiro para os EUA, mas como este país estabeleceu cotas de entrada, começaram a vir para a Argentina e o Brasil. Eles são provenientes em sua maioria do distrito de Hotin, de um pequeno espaço geográfico formado pelas aldeias de Iedenitz, Securon, Ataki, Britchon e Soroka, todas bem próximas entre si.
As histórias pessoais são semelhantes. Um rapaz, depois de reunir as escassas economias familiares, tomava um navio em Hamburgo, ao preço de carga numa terceira classe, alimentando-se durante aproximadamente trinta dias só de batatas cozidas e chá. Ele descia nos portos de Recife, Salvador, Rio de Janeiro ou Santos, em busca de um conterrâneo que já tivesse vindo antes. Se ele descesse em Santos, tomava o trem para São Paulo até a estação da Luz, podendo ficar na cidade ou seguir para Campinas, Sorocaba ou Franca, onde trabalharia alguns anos como vendedor ambulante ou lojista e, quando prosperava um pouco mais, mandava buscar sua noiva ou esposa e filhos que tinham ficado na Europa.
A escolha da profissão devia-se à sua baixa empregabilidade numa cidade brasileira. Ele não pretendia tornar-se agricultor, pois sua experiência européia nesse setor fora frustrante. Sua aspiração era inserir-se no meio urbano, porém com a limitação do idioma, e como o grande empregador urbano, o serviço público, estava vedado a estrangeiros, somente lhe restava o comércio ambulante (clienteltchik). Bastava adquirir a mercadoria, muitas vezes em consignação, e sair pelas periferias oferecendo de porta em porta, tornando-se involuntariamente o pioneiro na venda a crédito no Brasil.
O destino de cada clienteltchik não foi semelhante. Alguns encontravam rapidamente o seu nicho no mercado e prosperavam abrindo lojas, principalmente na área de móveis. Outros não alcançavam este sucesso e a esperança de inserção e ascensão social dessas famílias iam todas para a educação dos filhos. Assim, eles se sacrificavam de todas as formas para garantir um diploma de curso superior a eles, dando-lhes uma profissão liberal.
A regra entre os empreendedores bem-sucedidos era separar um tempo maior para a comunidade, trazendo para cá a organização social que eles conheciam na Europa. A história é comum em Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Os lojistas bessarabers fundaram muitas das sociedades que, ainda hoje, prestam serviço à comunidade judaica. Eles sabiam que não podiam depender do Estado, pois não eram convidados pelas autoridades, não desfrutavam das “vantagens” que os imigrantes destinados à agricultura aparentemente receberiam. Como lá no shtetl (povoado) eles já eram auto-suficientes em organização social e religiosa, reproduzem este modelo bem sucedido por aqui. Mantêm também a lembrança de heróis, como o seu poeta “nacional” Chaim Nachman Bialik (1873-1934), que denunciara em poesia o pogrom de Kishinev, dando seu nome às escolas que fundara no Brasil.
O início destas comunidades é muito semelhante. Logo que estes imigrantes se estabelecem numa cidade procuram reunir-se a outros conterrâneos, formando assim o minian. Organizam sociedades de auxílio mútuo, compram um Sefer Torá (o Pentateuco) na Europa e arrumam um salão ou casa para as rezas coletivas. Posteriormente constroem uma escola para seus filhos e o cemitério para a comunidade.
Isto foi assim em Recife, no Rio de Janeiro e em São Paulo, é só examinar as biografias destes pioneiros líderes comunais. Isaac Tabacow (1870-1930), originário de Securon, montou uma loja em Franca, prosperou e depois veio para São Paulo, onde participou dos principais empreendimentos comunitários. Jacob Schneider (1887-1975) também esteve em Franca, porém tomou o caminho do Rio de Janeiro, onde esteve à frente de todas as iniciativas para a formação das instituições da comunidade carioca. Em Recife, Abrão Josué Vainer, também de Securon, chegou à cidade em 1911 e encontrou oito conterrâneos. Mandou buscar um rolo de Sefer Torá por 500 mil réis e meteu-se junto com os seus companheiros na construção da estrutura comunitária local: sinagoga, escola e cemitério.
Um pequeno Shtetl em São Paulo
Nos primeiros anos dos bessarabers em São Paulo, eles não puderam criar instituições judaicas na cidade, talvez pelo pequeno número e também pela pobreza. Rezavam em casas particulares. Um pouco mais tarde, já melhor articulados, eles fundam, em 1912, na Rua da Graça nº 160, a SinagogaKehilat Israel (Comunidade Israelita) de São Paulo, com o objetivo de: “promover atividades de beneficência, criar um cemitério para a comunidade e manter uma sinagoga para os atos de culto religioso”.
Os primeiros diretores desta sinagoga foram: Isaac Tabacow(1870-1930); Jacob Schneider (1877-1936); Adolfo Kauffman (1874-1914) e Ioine Krasilchik (1873-1946); todos securoners (de Securon) e mais Bernardo Nebel (1852-1923) e Jacob Nebel (1893-1950), R. Dranger, David Berezovsky (falecido em 1924) e José Schwartzman, de quem não conseguimos apurar a procedência geográfica.
Esta sinagoga, que completará o seu centenário proximamente, é o primeiro espaço físico documentado dos judeus em São Paulo e também a célula-mater de outras instituições judaicas contemporâneas. É possível rastrear algumas instituições que vão surgindo nesse começo, escola, biblioteca e sociedades de auxílio mútuo, tanto na economia, quanto na saúde. Na década seguinte à fundação da sinagoga, depois de muita luta contra a legislação positivista que impedia a construção de cemitérios de um grupo religioso qualquer na cidade, em 1923, foi aberto o Cemitério Israelita de Vila Mariana, contando com a generosidade do industrial Maurício F. Klabin (1860-1923), da Lituânia, membro de uma família que marcará a comunidade com sua filantropia, na aquisição do terreno original.
Como o número de famílias era pequeno, o recrutamento das lideranças comunitárias era feito em alguns clãs, como os Tabacow e os Teperman, cujos membros dirigiram as principais sociedades criadas para servir a comunidade. É num destes clãs, os Teperman, que se moldou a principal liderança paulistana, o industrial Leon Feffer (1902-1999), que esteve à frente das principais iniciativas da comunidade e foi também o primeiro cônsul honorário de Israel na cidade.
Ao grupo bessaraber incorporaram-se judeus de outras origens na Europa, notadamente da Polônia, e de regiões do império russo, como a Galícia e Lituânia, mas que trazem como ponto de união o iídiche, língua franca entre eles. Isto favorecerá uma integração entre estes grupos e também o surgimento de expressões locais de escritores e atores que se manifestam nesse idioma. São personagens como o escritor Meier Kucinski (1904-1976), que foi mascate e depois professor na cidade, autor de um belo título: Di Palme Benkt Tsu Der Sosne (A palmeira sente saudade do pinheiro) ou a dinastia de atores fundada por Jacob Cipkus (1852-1935), originária de Berdichev, que, de carroça, ia de aldeia em aldeia, na Europa, fazendo as suas apresentações, e que deixou descendentes atuantes no teatro paulistano até os dias de hoje. São apenas dois exemplos, porém há mais...
Judeus do Império Otomano em São Paulo
A longa crise política e econômica que culminou com a queda do Império Otomano, na primeira década do século 19, impulsionou para o Brasil uma onda migratória judaica dessa região. Inseguros com a substituição da monarquia pela república, assustados pelo serviço militar obrigatório e em busca de melhores oportunidades de vida, migram para o Rio de Janeiro e São Paulo.
De acordo com o historiador prof. Yosef Yerushalmi, autoridade internacional na história dos judeus ibéricos e do Oriente, os judeussefaradim orientais que viviam sob domínio turco otomano eram divididos em dois grupos – os que falavam árabe e os que falavam ladino. Esses dois grupos vão chegar ao Brasil em duas correntes distintas de imigrantes.
Mesmo sendo um pequeno grupo, os sefaradim, cujo idioma era o árabe, ciosos de uma identidade regional diferenciada, constroem duas sinagogas – uma na Rua Odorico Mendes, na Mooca – a Sinagoga Israelita Brasileira, no nº 174, dos vindos de Sidon, e a outra no nº 328, a União Israelita Paulista, para congregar os originários de Sfat. O sucesso econômico de membros desta comunidade, levou-os para bairros mais nobres e, assim, a sinagoga sidonita migrou para a Rua Piauí.
Já os que falavam ladino, em sua maioria ismirlis (de Esmirna), organizaram em 1929 a Comunidade Israelita Sefaradi de São Paulo, que receberá vários nomes, dentre eles, se chamará Sinagoga Israelita do Rito Português, na década de 1940. Ela será conhecida como a sinagoga da Abolição, nome da rua onde esteve localizada até ser demolida, em 2005. Já que se esvaziara, com a mudança de seus membros para outros bairros de São Paulo, esta comunidade foi historicamente uma anfitriã para judeus que chegaram depois deles, muitas vezes em situações difíceis. Recebeu os alemães e italianos que fugiam dos regimes nazi-fascistas e, mais tarde, os egípcios e sírio-libaneses, que também iriam construir as suas sinagogas.
Nos seus primeiros anos em São Paulo, os sefaradim não se comunicavam com os ashkenazim, pois desconheciam esta comunidade, desconhecimento que era recíproco. Com o passar do tempo, a interação entre eles foi aumentando, começando por relações comerciais, depois por necessidade religiosa, aquisição de comida casher e a busca de sepulturas no cemitério israelita fundado por bessarabers, até que o conhecimento entre os grupos amadurecesse e chegasse ao reconhecimento e respeito à identidade específica de hoje.
Paulo Valadares é Mestre em História Social (USP), genealogista e autor (com Guilherme Faiguenboim e Niels Andreas) de "Os Primeiros judeus de São Paulo" (2009