O ano de 2022 é uma data redonda na cronologia brasileira, pois, em 7 de setembro de 1822, foi proclamada a independência política do Brasil, tornando-o um país independente ao cortar seus laços com Portugal. Isto permitiu o assentamento às claras dos judeus no país, apesar destes aqui estarem presentes desde o “achamento” (termo português para descoberta) do país, mesmo que de forma discreta ou secreta.
O primeiro centenário, em 1922, foi comemorado solenemente com direito à revogação do banimento da Família Imperial, os Orleans e Bragança (netos de D. Pedro II), em 3 de setembro de 1920. Foi comemorada também a primeira travessia aérea do Atlântico pelos portugueses, a cargo do navegador Gago Coutinho (de remota origem judaica) e do piloto Sacadura Cabral, e, finalmente, a Exposição Universal no Rio de Janeiro, com a presença dos presidentes Epitácio Pessoa, do Brasil, e Antônio José de Almeida, de Portugal.
Este é o ano do bicentenário da independência do Brasil. Neste ensaio trabalhamos com o resultado de pesquisas genealógicas sobre a presença judaica no Brasil através de suas migrações.
PROTO-HISTÓRIA JUDAICA BRASILEIRA
Os primeiros judeus se assentaram no Brasil como clandestinos ou desterrados. Nas caravelas da primeira expedição, comandada por Pedro Álvares Cabral, em 1500, vieram alguns judeus, já convertidos compulsoriamente ao Catolicismo. Entre eles o mais conhecido é o tradutor Gaspar da Gama, encontrado, na Índia, pelo explorador português Vasco da Gama e incorporado à máquina de conquistas portuguesa. Outro oficial é o astrônomo Mestre João da Paz, que foi quem primeiro identificou a constelação do Cruzeiro do Sul.
A saga dos cristãos-novos, também chamados de conversos ou em hebraico de anussim (coagidos), se iniciara na Península Ibérica, oito anos antes. Em 31 de março de 1492, os Reis Fernando de Aragão e Isabel de Castela expulsaram da Espanha os judeus que se haviam recusado, terminantemente, a se converter ao Catolicismo. Pelo Édito outorgado pelos Reis Católicos o Judaísmo se tornara “ilegal” em todos seus domínios. Num prazo de quatro meses, os judeus tiveram que escolher entre o exílio ou o batismo. Muitos dentre eles que escolheram o exílio foram para Portugal. Mas isso duraria pouco, pois, em 5 de dezembro de 1496, D. Manuel, rei de Portugal, assina o Édito de Expulsão que estipula um prazo de dez meses para os judeus deixarem o reino. Mas D. Manuel não queria a partida daquela minoria tão necessária à expansão ultramarina, em seu pleno auge, e ofereceu aos judeus inúmeras vantagens se abandonassem sua fé. Mais uma vez os judeus escolheram o exílio à conversão, preparando-se para deixar Portugal.
A “solução” encontrada por D. Manuel para resolver o impasse, uma que atendesse seus interesses, foi convertê-los à força. Em 1497, os judeus, “representantes da Gente da Nação”, seriam “batizados em pé”, à força, e, assim, transformados em cristãos. Os cristãos-novos, como eram chamados, eram vistos com desconfiança e se tornaram o alvo principal da Inquisição. Tribunais do Santo Ofício acabaram por ser instalados nos domínios espanhóis e portugueses além-mar. Considerados pela Inquisição hereges, os “judaizantes”, suspeitos de continuarem praticando o Judaísmo em segredo ou, pior ainda, de levar outros de volta à sua religião, eram presos, torturados, e muitos eram mortos na fogueira.
No povoamento das terras brasileiras alguns personagens e suas famílias vieram para cá, forçados pelo degredo ou cautelosos, buscando distância da Inquisição. O establishment português via esta transferência com bons olhos, pois seria a forma de aqui recriar uma população branca, europeia e já cristianizada. Entre 1622-1628 o economista cristão-novo Duarte Gomes Solis chegou a sugerir que o Brasil se tornasse um lugar para os descendentes de judeus. Não seria melhor, perguntava ele, os judeus por aqui cristianizados, do que em Amsterdã, “judaizando” e “desenvolvendo o inimigo”? À época, a Holanda era inimiga de Portugal, e muitos conversos escolheram se estabelecer em Amsterdã, ansiosos para resgatar seu Judaísmo à sombra de leis tolerantes que lhes permitissem exercer sua fé. Abastados e influentes, os judeus portugueses tiveram papel preponderante no desenvolvimento de Amsterdã e, mais tarde, do enclave holandês em Recife.
Entre os conversos que deixavam a Península Ibérica rumo ao Novo Mundo é possível identificar-se os primeiros descendentes de judeus que se estabeleceram em solo brasileiro na documentação oficial da época e na genealogia destas famílias. São dezenas delas. Uma das primeiras é a família de Heitor Antunes e Ana Rodrigues, sua esposa e prima, e os filhos do casal. Ele era natural de Covilhã e a família se dizia descendente dos “Macabeus”, tanto que Ana era conhecida como a “Macabeia”.
Dentro das possibilidades, eles procuravam seguir as leis da Cashrut (alimentação permitida pelas leis judaicas) e mantinham uma sinagoga secreta. Afirmava-se que foi Heitor Antunes quem trouxe o primeiro Sefer Torá para o Brasil e para a América. Ana foi denunciada como judaizante. Deixaram farta descendência entre Sergipe e Bahia, como o romancista baiano Jorge Amado (1912 – 2001), autor da lei da liberdade de culto religioso no Brasil, na Constituinte de 1946.
É possível nomear outras famílias, como a de Diogo Fernandes e Branca Dias (1520-1580), de Viana do Castelo, que viveram em Pernambuco e cujos descendentes podem ser encontrados até hoje. Branca Dias ficou mais conhecida pela peça teatral contemporânea, que leva seu nome, de autoria de Dias Gomes. O médico cearense Cândido Pinheiro, seu descendente, ocupa-se em levantar a sua descendência através de documentos primários e livros.
O ano de 1591 marcou a primeira visitação do Tribunal do Santo Ofício ao Brasil. Durante o período de perseguições vários cristãos-novos são delatados à autoridade inquisitorial e morreram queimados ou garroteados.
Nas proximidades do novo ano novo judaico de 5484 (1724 do calendário gregoriano), o santista Bartolomeu de Gusmão, capelão real, recebeu a informação de que seria preso como judaizante. Por isso, ele e o irmão fugiram para a Espanha e dali talvez para um país mais tolerante – ele desenvolvera a convicção que era o Messias e que devolveria a Terra de Israel para os judeus do mundo todo. Acabou morrendo de exaustão, em meio à fuga, em 1724.
Este período de perseguição se estendeu até 1808, quando a capital do reino foi transferida para o Rio de Janeiro e, por influência do aliado inglês na guerra contra Napoleão, passou a tolerá-los. Nesse momento chegaram aqui alguns comerciantes ingleses de origem judaica.
Em 2015 Portugal promoveu, através do Decreto-Lei nº 30-A/2015, a concessão, quando pedida, da “nacionalidade por naturalização” aos judeus como reparação pelo tratamento dado nos tempos inquisitoriais a seus antepassados. Centenas de brasileiros já receberam esta nacionalidade depois do processo ser examinado por peritos da Comunidades de Lisboa, Porto e Belmonte. Porém, nos últimos meses, houve alterações na atribuição da cidadania portuguesa aos descendentes de judeus sefarditas introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 26/2022. Essas alterações dificultam a obtenção da cidadania e provocaram uma série de protestos por parte da comunidade portuguesa.
COMO “INVASORES”
As guerras entre potências europeias transferiram-se também para o Brasil. Na época o país fazia parte dos domínios do reino espanhol. O conflito entre Espanha e Países Baixos chegou em Salvador e depois em Recife. Isto levou ao estabelecimento de um enclave holandês em Recife, entre 1630 e 1654.
O domínio holandês sobre o território brasileiro ia da foz do São Francisco até o Maranhão. Junto a esta ocupação vieram judeus de origem ibérica, muitos deles nascidos como cristãos-novos em Portugal e Espanha, que, como mencionamos acima, ao chegarem à Holanda, haviam voltado ao Judaísmo. Ao se estabelecer em terras brasileiras os judeus incorporam-se rapidamente à elite local como comerciantes, financiadores dos donos de engenhos de açúcar e mercadores. Essa comunidade desenvolveu-se, em especial, em área próxima ao atual porto.
A presença expressiva e a tolerância governamental holandesa em Recife permitiram a abertura de uma primeira sinagoga a funcionar em terras do Novo Mundo, a Kahal Kadosh Zur Israel, no Recife, e até de um cemitério judaico. Foi contratado o rabino Yitzhak Abuhab (1605 - 1693), nascido como Simão da Fonseca, em Castro Daire, e bisneto do último Gaon1 de Castela. Compôs o tribunal que excomungou o filósofo Spinoza. Vieram também oficiais como mohel (circuncisador) e schochet (abatedor de animais segundo a tradição judaica).
No ano de 1640, a presença dos holandeses em território brasileiro esteve ameaçada pelo fim da União Ibérica. Nessa época, o envolvimento dos espanhóis em diversas guerras na Europa ameaçava seriamente a hegemonia do espaço colonial formado pelos portugueses. Em 1645, eclode a chamada Insurreição Pernambucana, durante a qual grandes proprietários de terra se mobilizaram em favor da expulsão dos holandeses do Nordeste brasileiro.
A guerra civil foi cruel para os judeus presos pelos espanhóis. Por fim, em 1654, uma esquadra portuguesa cercou Recife e acabou retomando a região depois de 24 anos de domínio holandês.
Com a expulsão dos holandeses do Brasil, naquele mesmo ano de 1654, os judeus deixaram Recife e dividiram-se em dois grupos: um foi para o Caribe e dali para Nova Amsterdã – que viria a ser a cidade de Nova York. Outro não teve recursos ou não quis ir e seus integrantes internaram-se pelo interior do Nordeste brasileiro, já como “católicos”.
É possível através das genealogias identificar os descendentes como, por exemplo: do rabino Abuhab descende o empresário Arthur Hays Sulzberger (1891-1968), dono do The New York Times; e de Ambrósio Vieira, o engenheiro e moré (professor) João Fernandes Dias Medeiros, líder de renascimento judaico em Natal, na década de 1970.
A INDEPENDÊNCIA
Migração é uma combinação de vontade individual eeventos coletivos. Muda-se para onde haja um mínimo de estrutura, até aprender a língua, os costumes locais e a forma de ganhar o sustento. Os primeiros judeus que chegaram ao Brasil, sem esconder sua real identidade, são súditos britânicos, que atraíram outros, de variadas origens nacionais.
As várias correntes migratórias relevantes foram compostas por judeus vindos de várias partes do mundo. Os magrebinos são sefaradim e divididos entre toshavim (autóctones) e megorashim (ibéricos), vindos do Norte da África, notadamente do Marrocos. Falavam a hakitia. Fugiam da pobreza e, a partir de Belém, se espalharam pela Amazônia. Fundaram instituições e desenvolveram uma identidade peculiar. Já os alsacianos, estes fugiram da Guerra contra a Prússia (1870). Era um Judaísmo restrito à família e não criaram nenhuma instituição.
Imigraram também para o Brasil judeus oriundos do Império Russo. Os pogroms no Império Russo, no final do séc. 19, abalaram por sua crueldade e violência o mundo, tanto que o engenheiro André Rebouças (1838 - 1898), descendente de um frade de origem cristã-nova, forneceu a D. Pedro II o plano de construção de um estado judeu no Paraná, para os judeus russos. Não foi atendido; mas o Brasil tornou-se um destino. Como eles vieram de forma definitiva, sem expectativas de retorno à terra de origem, construíram as principais instituições judaicas como sinagogas, associações culturais e beneficentes, cemitérios etc.Uma parte deles, os bessarabers, ou oriundos da Bessarábia, região da Moldávia, formaram o maior contingente dos judeus que vieram para cá. Falavam iídiche.
Vieram também se estabelecer em terras brasileiras judeus oriundos do Império Otomano. Os turquinos, em menor número, vislumbraram o final do Império Otomano e vieram para o Brasil, assentando-se principalmente em São Paulo e Rio de Janeiro. Sefardis e mizrahim (autóctones) falam ladino. São divididos por suas cidades de origem: Esmirna, Istambul, Salonica, Sfat (a Terra Santa, à época, fazia parte do Império Otomano) etc.
Fugitivos do Nazifascismo também encontraram refúgio no Brasil, apesar da política do presidente Getúlio Vargas (1937-1945) e das Circulares Secretas antissemitas emitidas durante seu governo. Quando a doutrina antissemita se tornou programa político na Alemanha e Itália, cidadãos destes países e dos ocupados por eles vieram para o Brasil, mesmo com as dificuldades para a obtenção do visto brasileiro. Os alemães (iekes) são majoritariamente ashquenazim. Os italianos dividem-se entre sefaradis – estes em ponentini (portugueses) e levantini (Norte da África); e ashquenazim, além dos que estavam em Roma desde os Césares. Os judeus de Livorno falavam o baggito.
A última grande leva de imigrantes judeus que se estabeleceram no Brasil foram os judeus originários do mundo Islâmico-árabe. A independência de Israel, em 1948, levou países árabes a retaliar. Os judeus que viviam no mundo muçulmano passaram a sofrer humilhações, perseguições, pogroms, prisões e torturas, e foram forçados a abandonar os países onde viviam. O componente maior desta migração são os sírios, os egípcios, no começo da década de 1950, em razão das políticas anti-Israel de seus governos, e, depois de estourar a Guerra Civil do Líbano, os libaneses.
CONCLUSÃO
O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) não tem o número exato para quantificar os judeus brasileiros. O critério de “quem é judeu” foi o da autodeclaração. Segunda estas estimativas são acima de cem mil pessoas.
Pesquisando em cemitérios judaicos encontramos gente originária de todas as nações, de países europeus, africanos, asiáticos, “israelianos” (era assim que os cidadãos de Israel eram chamados, oficialmente) até do Rajastão (o cantor Beny Yanga) e só não encontrei, ainda, um “judeu de Kaifeng”, judeus autóctones da China – isso apesar de ter identificado vários “judeus de Harbin”, russos nascidos na China, que foram trabalhar nas ferrovias chinesas.
Neste bicentenário, o Brasil continua sendo um endereço seguro para os judeus.
Vítimas da Inquisição
Inúmeros “judaizantes”, cristãos-novos “suspeitos” de praticar o Judaísmo em segredo, que viviam em terras brasileiras, foram delatados à Inquisição portuguesa. A relação que segue inclui apenas os morreram queimados ou garroteados em Autos de Fé realizado em Portugal, não contemplando os que morreram pelas torturas físicas e psicológicas, más condições da prisão, inverno rigoroso e falta de alimentação. As vítimas documentadas são:
1) Gaspar Gomes, natural de Portugal, soldado e sapateiro, preso na Bahia e executado em 1644.
2) José de Liz (Isaac de Castro), natural de Tartas (França), estudante, preso em Salvador e executado em 1647.
3) Teotônio da Costa Mesquita, natural de Lisboa, lavrador, preso em São Paulo e executado em 1686.
4) Rodrigo Álvares, natural de Avis, boticário, preso em Salvador e executado em 1709.
5) João Dique de Souza, natural de Lisboa, Senhor de Engenho, preso no Rio de Janeiro e executado em 1714.
6) Mateus de Moura Fogaça, natural do Rio de Janeiro, soldado e mineiro, preso no Rio de Janeiro e executado em 1720.
7) Teresa Pais de Jesus, natural do Rio de Janeiro, casada com professor, presa no Rio de Janeiro e executada em 1720.
8) Manuel Lopes de Carvalho (não era cristão-novo), natural de Lisboa, sacerdote católico, preso entre a Bahia e Minas Gerais, executado em 1726.
9) João Tomás de Castro, natural do Rio de Janeiro, médico, preso no Rio de Janeiro e executado em 1729.
10) Félix Nunes de Miranda, natural de Almeida (Portugal), comerciante, preso em Salvador e executado em 1731.
11) Guiomar Nunes, natural de Pernambuco, esposa de latoeiro, presa na Paraíba e executada em 1731.
12) Miguel de Mendonça Valadolid, natural de Valadolid (Espanha), comerciante, preso em São Paulo e executado em 1732.
13) Diogo Correia do Vale, natural de Vila Real, médico, preso em Ouro Preto e executado em 1732 com o filho Luís Miguel.
14) Domingos Nunes, natural de Freixedos, comerciante, preso em Minas Gerais e executado em 1732.
15) Luís Miguel Correia, natural de Viseu, lavrador, preso em Ouro Preto e executado em 1732.
16) Fernando Henriques Álvares, natural de Vila Moura, lavrador, preso no Rio São Francisco e executado em 1733.
17) Manuel da Costa Ribeiro, natural de Celorico da Beira, comerciante, preso em Ouro Preto e executado em 1737.
18) Luís Mendes de Sá, natural de Coimbra (nasceu numa prisão inquisitorial onde a mãe estava presa), comboieiro, preso no Rio das Contas e executado em 1739.
19) António José da Silva, o Judeu, natural do Rio de Janeiro, advogado e teatrólogo, preso em Lisboa, executado em 1739. É a mais conhecida vítima brasileira da Inquisição. (Biografado em livros e no filme de Jom Tob Azulay).
20) João Henriques, natural de S. Vicente da Beira, boticário, preso em Paracatu e executado em 1748.
Paulo Valadares é Mestre em História Social (USP), autor (com Guilherme Faiguenboim e Anna Rosa Campagnano) de “Dicionário Sefaradi de Sobrenomes /Dictionary of Sephardi Surnames”, dentre outros trabalhos.