Na edição 65, Morashá publicou uma entrevista com Icchak Manski na qual ele conta sobre a época em que conviveu com os chamados Judeus da floresta, que, sob a liderança dos irmãos Bielski, encontraram refúgio nos bosques da Bielorrússia, escapando da fúria nazista. Geni Koschland, filha de seu irmão, Moishe Manski, em carta à Redação, complementa a matéria e conta um pouco da história de seu pai, que lutou ao lado dos Bielski.
"Em primeiro lugar quero parabenizá-los pela entrevista. Meu pai sofre de uma doença degenerativa e, embora lúcido, não mais consegue comunicar-se. Mas, como fui a pessoa da família que mais conversou tanto com ele quanto com meu tio sobre a guerra e a forma como ambos sobreviveram, pensei que seria interessante complementar a reportagem publicada com outras informações.
Meu tio, Icchak Manski, fugiu do gueto de Lida e logo se juntou a um grupo de partisans russos. Ele foi guerrilheiro, pois era imbuído desse espírito de luta e vivia com um único objetivo: lutar contra os alemães e, se possível, matá-los. Isto se comprova com o fato de que, após o término da guerra, ele foi atrás do SS que matou meus avós, Kalman e Sheine. Mas, a bem da verdade, ele nunca fez parte do grupo dos Bielski.
Meu pai, quando sua saúde ainda o permitia, prestou um depoimento de quatro horas para o projeto Survivors of the Shoah - Visual History Foundation, em junho de 1997. É o único sobrevivente do grupo dos irmãos Bielski que veio para o Brasil.
Ele fugiu do gueto de Lida para a floresta de Novogrudok, local que se chamava Naliboki. Lá, primeiramente, encontrou um grupo de partisans russos chamados Iskrá. Com eles aprendeu a dinamitar os trilhos das estradas de ferro, com o intuito de dificultar as operações e o avanço das tropas nazistas. Ficou na região por cerca de dois meses. Sentia certo ódio por parte dos partisans russos. Um dia, devido à escassez de alimentos, os russos mataram o cavalo de meu pai. Depois daquilo, ele começou a temer por sua vida. Ouviu falar que "mais adiante", suponho que mais para dentro da floresta, havia um grupo de partisans judeus. Criou coragem e deixou os russos. Foi-se embrenhando cada vez mais para o centro da floresta até encontrar Tuvia Bielski e seus irmãos, ou, como ele o chamava - Têvinke. Ali ele resolveu ficar. Meu pai, diferentemente do meu tio, que era um excelente atirador e só almejava lutar contra os nazistas, queria mesmo era salvar vidas. Logo se entrosou muito com Têvinke, que também tinha como propósito primordial salvar o máximo possível de judeus.
Meu pai viveu, ou melhor, sobreviveu por um ano e dez meses na pusha Naliboki. Na época, papai tinha apenas 17-18 anos. Suas principais tarefas eram dinamitar as estradas de ferro e retirar judeus do Gueto de Lida. Havia um serviço de informações, tanto no grupo, quanto no gueto, que sabia quando os partisans vinham a Lida, como procediam e onde deveriam aguardar aqueles que quisessem fugir. Do outono de 1942 até a liquidação do gueto, em 18 de setembro de 1943, meu pai conseguiu levar até Naliboki cerca de 20 grupos, alguns com poucas pessoas, outros com dezenas de judeus.
Em determinada ocasião, os nazistas o balearam na perna. Perguntei-lhe como conseguira escapar. Ele me contou que apesar da forte dor que sentia, continuou correndo, pois sabia que sua vida dependia de poder seguir em frente. Só caiu no chão quando já estava dentro da floresta, longe de seus perseguidores. Precisou ficar afastado das operações de salvamento até se recuperar.
Meu pai já havia tentado salvar seus pais e irmã, porém minha avó contraiu tifo e não teve forças nem condições para a fuga. Meu avô não quis, obviamente, ir sem ela e minha tia era pequena. Eles não sabiam que corriam perigo ficando no gueto. Quando meu pai pôde retornar, os partisans souberam de alguma forma que a deportação dos judeus do gueto era iminente. Apesar de ter conseguido salvar dezenas de judeus dessa cidade, ele não logrou salvar seus pais nem sua irmã Genia (Henia Guitl), da qual levo o nome. Quando chegou no gueto, todos os judeus haviam sido deportados na véspera, 18 de setembro de 1943, para o campo de extermínio de Maidanek.
Após a vitória dos russos, em julho de 1944, meu pai voltou a Lida para procurar sobreviventes da família. É então convocado pelo exército russo. Por muitos meses sua função foi ler o que estava escrito nas paredes das prisões onde os nazistas prendiam comunistas e simpatizantes do governo russo. Entre os prisioneiros, muitos eram judeus e estes delatavam seus alcagüetes escrevendo em iídiche seus nomes nas paredes da prisão. Meu pai, que lá ficou por oito meses, foi obrigado a ler os nomes dos colaboracionistas dos alemães.
Por sorte, meu tio e meu pai - que desde a fuga do Gueto de Lida nunca mais haviam se encontrado e um nem sabia se o outro estava vivo - reencontraram-se. Meu tio convenceu meu pai a partir. Juntaram-se a alguns grupos de partisans judeus - entre eles os Bielskis - que tinham decidido fugir da Rússia para Israel.
Os dois irmãos atravessaram a Europa. Chegaram na Romênia no dia 8 de maio de 1945, o dia do término da 2ª Guerra Mundial. Estavam na cidade de Alba Julia (na Transilvânia) nesse dia, quando foi realizado um desfile na cidade. Os judeus locais vieram prestigiar os heróis e foi nessa ocasião que meu pai conheceu minha mãe, Dina Abraham. Dois meses depois se casaram e fugiram, juntamente com outros partisans, para a Itália, onde ficaram aproximadamente dois anos e meio em acampamentos precários, esperando para emigrar para Israel.
Como os britânicos estavam impondo medidas cada vez mais rigorosas para impedir que os judeus fossem para a Terra de Israel, meus pais, juntamente com meu tio, ainda solteiro, vieram para o Brasil, com a ajuda da organização judaica Joint Distribution Committee e recomeçaram sua vida em São Paulo.
Meu pai e meu tio se tornaram empresários e sócios em todos os seus empreendimentos. Três anos depois, meu tio se casou com Blima Abuliac. Eles tiveram quatro filhas; meus pais tiveram dois: meu irmão Carlos, e eu.
Em 1978, aos 19 anos, viajei para os Estados Unidos e Canadá pela primeira vez. Isaac Mendelssohn, um primo do meu pai que morava em Nova York e que também fizera parte dos "judeus da floresta de Naliboki" fez questão que eu visitasse os Bielski. Telefonou ao Tuvia contando que a filha do "Meishinke", como era conhecido meu pai, estava lá. Imediatamente, Têvinke marcou um encontro para o sábado seguinte, à noite, quando tive o prazer de conhecê-lo. Estavam em sua casa Têvinke e Lilke, sua esposa, Zus e Arale, seus irmãos, alguns partisans e outros judeus que foram salvos por meu pai. Todos me abraçaram e perguntaram por ele, chamando-o de "Taiere Kind", criança preciosa e querida.
Tive mais dois encontros com Tuvia Bielski. Era alto, forte e imponente. Um homem maravilhoso, líder nato, carismático, brincalhão e meigo. Seu coração era maior do que ele. Infelizmente, em 1980, quando estive novamente em New York, ele estava no hospital se recuperando de uma cirurgia no estômago, seu eterno problema. Fui visitá-lo na Unidade de Terapia Intensiva e, mesmo com dores, ele sorriu e acenou para mim, depois levou a mão à boca, como se estivesse mandando um beijo. Sua esposa, Lilke, era uma mulher de fibra, uma Eshet Chail, mas sem perder o encanto. Até sua voz era forte e rouca, um pouco viril. No hospital conheci sua filha mais velha e revi seus dois filhos, Michael e Robert.
Ainda em março de 1978, no Canadá, tive o prazer de conhecer Faye Drueck (Feigale) e seus filhos. Ela, seu falecido marido e seu filho primogênito, Joseph, também foram salvos pelo meu pai. Sua filha, Sandy, já estava casada e quando fomos apresentadas, ela me disse uma frase tocante: "Diga a seu pai que ele não só salvou a mim, a meu marido e ao Joe. Depois da guerra tive mais dois filhos e Sandy está esperando um bebê. Logo terei meu neto em meus braços. E quantos de nós já têm bisnetos! É impossível contabilizar quantas pessoas de fato foram salvas por seu pai ..." Conheci também mais um partisan do grupo Bielski, Harry Finkelstein (Hirshke), sua esposa Renia, filhos e netos.
É uma pena que o mundo tenha despertado para estes homens maravilhosos somente depois de 60 anos, quando já não há muitos sobreviventes para contar sua história e, entre os que ainda vivem, poucos são os que ainda conseguem dar o seu depoimento.
Como me disse o cinegrafista Paulo Baroukh, que filmou a entrevista que a Sra. Paulina Faiguenboim fez com meu pai para a Fundação Shoah, num dos intervalos da gravação do depoimento: "Acompanhei dezenas de depoimentos de vítimas. Hoje estou tendo o especial prazer de ouvir o relato de um Herói".
Geni Koschland