“Amazing!”, exclamou o professor Charles Berlin, diretor geral da seÇão de Judaica da Harvard University Library. Ele acabara de receber uma cópia do Kol Israel, o jornal sionista publicado em Belém do Pará há exatos 100 anos, uma das primeiras publicações do gênero no País.
A verdade é que a história do Kol Israel é realmente surpreendente. Editado pelo meu avô, Eliezer Levy, mais conhecido como Major Eliezer Levy, o jornal Kol Israel se tornou um símbolo das primeiras publicações e iniciativas sionistas no Brasil. O que o torna peculiar, no entanto, é ter sido publicado em plena região amazônica, e distribuído em barcos pelos rios da bacia do Amazonas para todas as pequenas comunidades judaicas marroquinas que habitavam Cametá, Santarém, Alenquer, Itacoatiara, Macapá, Igarapé-Miri, etc. Assim, os judeus que moravam no interior da selva eram mantidos informados sobre a Declaração Balfour, a construção do Hospital Hadassah, os esforços internacionais de Chaim Weizmann e a construção dos kibutzim e moshavim que caracterizavam a colonização judaica inicial em terras da então Palestina.
Minha família materna, oriunda de Belém do Pará, mantinha viva a história do jornal Kol Israel, se bem que não tivéssemos nenhum exemplar do mesmo. Para mim, era como se fosse uma lenda, uma história verdadeira, mas longínqua e apagada. Mesmo tendo sido alvo de tese de mestrado na USP, a história do meu avô Eliezer Levy não estava devidamente documentada – faltavam os exemplares do seu jornal sionista.
Mas o que fazia essa comunidade marroquina e sionista na Amazônia?
A imigração marroquina para a região amazônica, em busca de ouro, borracha, castanha e outros produtos do comércio local, iniciou-se por volta de 1808, ano da chegada da família real portuguesa ao Brasil. Em 1822, ano da Independência do Brasil de Portugal, era constituída a primeira comunidade formal em Belém, a sinagoga Shaar Hashamaim (Portal dos Céus), que continua em atividade até os dias de hoje, em Belém. Os jovens marroquinos embrenhavam-se pela mata, estabelecendo-se em pequenas cidades à beira dos rios. Muitos se mantinham observantes dos preceitos religiosos judaicos, inclusive da Cashrut. Outros acabaram por se assimilar e casar com caboclas locais, sendo que seus descendentes hoje em dia só podem ser identificados como descendentes de judeus por seus sobrenomes tipicamente judeus marroquinos: Sicsú, Serruya, Benzaquen e outros. De qualquer modo, a vida judaica no interior da Amazônia era marcada por hábitos judaicos: muitos armazéns de beira de rio fechavam na sexta-feira à tarde e reabriam somente no domingo, nada funcionava nos feriados do calendário judaico, e o hábito da circuncisão era mantido nesses rincões distantes. Pequenas sinagogas pontuavam cidades como Cametá, Parintins e outras, e cemitérios judaicos até hoje podem ser encontrados em pequenas e médias cidades do interior do Pará e do Amazonas.
Meu avô, Eliezer Levy, teria nascido oficialmente em Gurupá, em 29 de novembro de 1877. Minha tia Hanna, a segunda de 13 filhos que viria a ter, confidenciou-me que, na verdade, meu avô nascera em Casablanca, mas trocara seus documentos para poder entrar na política brasileira. De qualquer maneira, o casal Moysés e Halia Levy, meus bisavós, moraram e mantinham comércio na cidade de Gurupá. Eliezer Levy foi levado após o Bar Mitzvá para Belém, a fim de completar seus estudos. Lá conheceu minha avó, Esther Benoliel, também de ascendência marroquina, e vieram a se casar em 21 de março de 1900 (ele com 23 anos, ela com 14!), na cidade de Cametá, tendo depois o casal se estabelecido finalmente em Belém do Pará. Tiveram 13 filhos, dos quais 12 chegaram à idade adulta.
Desde cedo, Eliezer Levy se dedicaria com afinco à comunidade judaica, tornando-se um importante líder local. Apesar de não ser diplomado em Direito, era possível, na época, praticar Direito em escritórios de advocacia. Eliezer Levy entrou inicialmente na Guarda Nacional, tendo chegado ao posto de Coronel. Apesar disso, ficou conhecido como Major Eliezer Levy. Trabalhou no escritório de advocacia de Francisco Jucá Filho, Procurador da República, e de Álvaro Adolfo da Silveira, futuro Senador da República e assessor de Oswaldo Aranha, na ONU. Tendo desenvolvido grande amizade com Álvaro Adolfo da Silveira, meu avô o introduziu ao ideário sionista precocemente, o que facilitou, segundo conta a comunidade judaica de Belém, o apoio do então chanceler Oswaldo Aranha à partilha da Palestina em dois estados, um judeu e um árabe, em 29 de novembro de 1947, e que levaria à declaração da Independência de Israel, em maio de 1948.
Em visita à comunidade de Belém para homenagens, em 1952, Oswaldo Aranha disse, agradecendo: “Não é a mim que vocês têm que agradecer, é ao Álvaro Adolfo, que me fez atrasar a votação por dois dias para que conseguíssemos o quórum favorável à Partilha, e que resultou na criação do Estado de Israel”. Segundo meus familiares, era tudo obra do Major Eliezer Levy...
O Major Eliezer Levy terminou por ligar-se, politicamente, ao governador Magalhães Barata e acabou sendo nomeado por três vezes, entre janeiro de 1937 e julho de 1944, prefeito de Macapá. Até hoje seu nome é conhecido e homenageado na capital do Amapá, tendo dado seu nome a importante rua e ao porto (trapiche) de Macapá.
Mas seu ideal judaico foi sempre ligado ao ideário sionista. Desde 1905 seus escritos revelavam admiração pelas ideias de Theodor Herzl e pela movimentação política dos primeiros líderes sionistas. Fundou o Comitê Ahabat Sion em novembro de 1918, coincidindo com o final da 1ª Guerra Mundial. Em seguida, iniciou a publicação do jornal Kol Israel. Mas as edições impressas do jornal, que aparentemente duraram até dezembro de 1923, desapareceram. Decidi ir atrás do que houvesse restado dessas publicações. Em uma visita às sinagogas de Belém, nas quais há muitos documentos antigos guardados (a comunidade Shaar Hashamaim, fundada em 1822, continua ativa), nada pude encontrar. Em conversas com líderes comunitários em Belém ninguém conseguiu me ajudar muito. Nunca haviam visto um exemplar do Kol Israel. Meus tios, filhos do Major Eliezer Levy, juravam ter visto os exemplares na infância, mas nenhum havia guardado um número sequer do jornal. Decidi investigar então o Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, certo de que um documento dessa importância histórica haveria de ter sido preservado pelo País. Nada foi conseguido na busca eletrônica dos Arquivos Nacionais.
Finalmente, em uma de minhas viagens a Israel, decidi tentar por uma última vez: entrei na ferramenta de busca do Archion Hamerkazi Shel Haam HaYehudi Yerushalaim (Arquivo Central do Povo Judeu Jerusalém). Para surpresa minha, na pesquisa inicial do termo “Kol Israel ”, já apareceu: “conjunto de jornais sionistas editados em Belém do Pará, de 1918 a 1923 – coleção completa”. Mal pude acreditar que eles realmente tivessem a edição completa. Um e-mail para a diretora geral do Arquivo confirmou que possuíam as edições do jornal e que estariam à minha disposição para estudo e cópias eletrônicas.
Desta maneira, em dezembro de 2017, 99 anos após sua publicação, estava eu manuseando o Kol Israel original editado por meu avô. A coleção completa estava lá, amarelada, desbotada, com o papel extremamente fragilizado pela passagem do tempo, provavelmente por muitos anos no calor e na umidade da Amazônia. Mas era perfeitamente legível e consegui que o Arquivo me fizesse uma cópia fac-símile de todos os números do jornal. A doação do Kol Israel ao Arquivo do Povo Judeu fora feita por um sr. Serruya, em data não identificada.
De volta ao Brasil, consegui imprimir três cópias do jornal: uma para o Centro de Memória e Documentação do Museu Judaico de São Paulo, em fase de construção, outra para a coleção de Judaica da Biblioteca da Universidade de Harvard, e a terceira para a família.
Mas o que há nestas edições do Kol Israel ? No primeiro número, A Voz de Israel – “órgão independente de propaganda sionista” e “órgão do Comitê Ahabat Sion”, publicado no dia 8 de dezembro de 1918 (5 de Tebet de 5679, segundo o jornal), proclamava, em sua primeira coluna: “Um sonho de vinte séculos vae ser enfim realidade. Dispersos há dois millênios pelo mundo, a raça hebraica sofredora, resignada, laboriosa e tenaz, ella continuou a chorar a sua desdita, cantando ao mesmo tempo com as harpas...”. No mesmo número podia-se ler sobre a fundação “em setembro último”, na Nova Universidade Hebraica em Jerusalém, um “acto que marca uma victoriosa etapa nos domínios intellectuaes, abrangendo todas as modalidades scientíficas e artísticas...”.
Em seus vários números, o Voz de Israel acompanhava, por exemplo, o “Extraordinário Protesto do Judaísmo Norte-Americano contra os “Progroms” (sic) da Polonia”, ou uma carta de Max Nordau à comunidade judaica de Londres, ou o “Soccorro à Palestina: De New York com destino a Jaffa zarpou o grande transatlântico “Leviatã” - a seu bordo seguiu com aquelle destino uma missão judaica, composta de 250 pessoas, encarregadas de distribuir importantes socorros aos israelitas residentes na Palestina”. Misturavam-se ainda notícias da política brasileira, propaganda comercial da comunidade judaica de Belém, notas sociais e curiosidades do mundo judaico. Um retrato dos anseios e aflições de uma comunidade distante, mas intensamente ligada à luta pelo ideal sionista.
O Kol Israel acabou de completar 100 anos de sua primeira edição. Apesar de o Major Eliezer Levy ter falecido em 1946, pouco antes da criação do Estado de Israel, sua obra perdura até hoje, símbolo da unidade do povo judeu, em seus rincões mais distantes, pela causa do Estado de Israel.
Sergio Daniel Simoné Presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica e Presidente do Museu Judaico de São Paulo.