Sobre suas ruínas restauradas surge um museu que visa preservar a memória da vida judaica na história colonial do Brasil.
Foi inaugurado em março último o Arquivo Histórico Judaico de Pernambuco. Instalado no local restaurado no qual foi construída, em Recife (PE), a primeira sinagoga das Américas, o museu é resultado de um trabalho conjunto da Associação para a Restauração da Memória Judaica nas Américas, Federação Israelita de Pernambuco, Prefeitura de Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Instituto do Patrimônio Histórico e Nacional e Ministério da Cultura. O projeto está sendo patrocinado pela Fundação Safra, através da Lei Rouanet de Incentivos Fiscais. O museu vai incluir um centro de documentação aberto ao público, mas não a realização de serviços religiosos.
Denominada Kahal Kaddosh Zur Israel – Santa Comunidade Rochedo de Israel –, as ruínas da sinagoga foram descobertas há três anos entre as paredes dos sobrados 197 e 201 na Rua do Bom Jesus, antiga Rua dos Judeus, durante as escavações arqueológicas coordenadas por Marcos Albuquerque, professor de pós-graduação em história da Universidade Federal de Pernambuco. A sinagoga foi construída entre 1636 e 1637, durante a dominação holandesa em Pernambuco, único período da história colonial do Brasil durante o qual os judeus puderam assumir a sua condição judaica abertamente. A liberdade de credo estava incluída no regulamento de 69 itens aprovado em Haia pelos Estados Gerais para as Colônias Holandesas nas Índias Ocidentais e deveriam ser implementados pelos seus altos funcionários, entre os quais, Maurício de Nassau.
Após a saída dos holandeses de Pernambuco, os portugueses tinham como objetivo primordial eliminar qualquer vestígio da presença judaica na região. Assim, suas casas foram doadas aos luso-brasileiros e os locais nos quais funcionavam sinagogas foram entregues a João Fernandes Vieira, em 1679, que os repassou à congregação ortodoxa de padres católicos, estes expulsos no século XIX.
As propriedades foram então transferidas para a Santa Casa de Misericórdia. Em 1999, a prefeitura de Recife desapropriou-as e cedeu-as em comodato por 99 anos à Federação Israelita de Pernambuco. A descoberta de um bairro judaico na capital pernambucana foi possível graças a uma coleção de mapas, plantas e documentos organizados pelo arquiteto José Luiz da Mota Menezes, que está acompanhando os trabalhos. Com esses documentos, foi possível identificar o bairro no qual os judeus viveram no tempo de Nassau.
O projeto de restauração procurou se aproximar o máximo possível da arquitetura e da decoração originais da época, trabalho dificultado pela ausência de quadros ou desenho da época. Os trabalhos de arquitetura estão sendo coordenados por José Luiz da Mota Menezes. Mesmo assim, as escavações arqueológicas permitiram reconstituir o mobiliário da época. O livro de leitura está na mesma posição em que ficava no século 17 – voltado para o leste, assim como a arca sagrada e as cadeiras. Parte da estrutura original encontrada ficará aparente, exatamente da maneira como foi encontrada, sendo protegida por paredes de vidro com iluminação especial.
Foram conservadas também as paredes laterais com pedras antigas, que também não serão cobertas. Apenas as partes novas, que não fazem parte da antiga sinagoga, serão rebocadas. A muralha que cercava e protegia a cidade – encontrada nos fundos da casa –, a mikve e alguns segmentos do piso também não serão rebocados. Para preservar o chão, foi instalada uma grelha que permite visualizar o piso primitivo. No primeiro pavimento, foi criado um balcão para indicar o local destino às mulheres nas cerimônias religiosas.
As escavações permitiram constatar que a rua do Bom Jesus – novamente denominada Rua dos Judeus – há 300 anos, era cerca de 80 centímetros mais baixa do que atualmente, pois foi encontrado outro piso sob as casas conjugadas nas quais funcionou a sinagoga. Foi possível, também, localizar a antiga margem esquerda do rio Beberibe no interior das casas. O trecho descoberto está a uma profundidade que varia de 1,60 a 2 metros em relação ao piso atual.
Segundo o professor Albuquerque, o rio tinha o seu curso exatamente na área onde vi-viam os judeus, o que significa que a rua que abrigou a sinagoga não existia no início do período colonial. Os judeus teriam começado a aterrar as margens, conquistando terreno ao longo do rio. Logo atrás do terreno, foram encontradas as muralhas que protegiam a cidade hã 350 anos. Esta muralha tem 88 centímetros de largura e 1m60 de profundidade em relação ao piso da casa. Albuquerque diz ainda, que, como os alicerces das casas não estão amarrados à muralha, é uma prova que o muro é anterior a elas e a parte dos fundos da sinagoga foi construída sobre ele. Desde que se iniciaram as escavações, foram retiradas dezenas de toneladas de terra e entulho.
A prova maior de que uma sinagoga foi construída na Rua dos Judeus entre as paredes dos sobrados 197 e 201 veio com a descoberta de um poço, que, ao que tudo indicava, seria um mikve. Sua autenticidade foi confirmada por um conselho rabínico chefiado pelo rabino David Weitman no final de outubro do ano passado. Após minuciosas medições, constatou-se que fora construída de acordo com os rígidos preceitos judaicos. O poço encontrado tem capacidade para 648 litros de água natural, profundidade de 1,50, mas recebia água somente até 1,30. A mikve será mantida exatamente como foi encontrada.
A primeira sinagoga das Américas já foi incluída nos roteiros turísticos e vem recebendo visitantes do mundo inteiro, interessados em ver de perto o local que pode ser considerado como um dos berços do judaísmo no novo mundo.