Os judeus chegaram junto com Pedro Álvares Cabral. Se não no mesmo navio, na mesma frota. São testemunhas e participantes desta formidável empreitada chamada Brasil. Mas estão ligados aos Descobrimentos antes mesmo de 1500 na qualidade de astrônomos
As duas letras hebraicas abaixo do 500 são a sua representação numérica em hebraico: o Tav e o Kuf. Ultima letra do alfabeto (22ª), o Tav equivale ao nosso 't' e vale 400. O kuf, 19ª letra, tem o som do 'q' ou do 'k', vale 100. Não existem evidências de símbolos aritméticos nas escrituras hebraicas.
O ano de 1500 da E.C. eqüivalente ao 5260 do calendário hebraico é representado pelas letras Reish e Samech. Começou em Setembro de 1499. O dia 22 de Abril corresponde ao 23º dia do mês de Yiar.
A conjunção de letras com números deu origem à Guemátria, fascinante sistema de interpretação hermenêutica, onde uma palavra ou grupos de palavras são avaliadas pelo valor numérico das letras. No caso dos 500 Anos as duas letras constituem apenas uma representação numérica sem qualquer cono-tação subjetiva.
Nos primeiros 250 anos da nossa história formal a presença judaica, embora expressiva, manteve-se na clandestinidade por força dos editos de expulsão em Portugal (1496-1497) e da violência da Inquisição (estabelecida em 1536 e encerrada formalmente em 1821).
Paradoxalmente, o fim da discriminação contra os cristãos novos (1773) e a diminuição do ímpeto inquisitorial fizeram desaparecer da vida brasileira quaisquer traços judaicos.
A progressiva liberalização da Colônia a partir da vinda da Corte, em 1808, até a sua completa emancipação, em 1822, permitiram que já em 1824 (ou 1826, não há certeza) surgisse a primeira comunidade judaica desde o tempo dos holandeses. A sinagoga dos judeus marroquinos, Shaar Hashamaim (A Porta do Céu), em Belém do Pará, logo depois de proclamada a Independência, é o marco do judaísmo livre em solo brasileiro.
O clima de tolerância do 2º Império e especialmente os interesses intelectuais de D. Pedro II ampliaram essa presença não apenas na Amazônia mas a estenderam ao Centro-Sul com a chegada de judeus alsacianos.
A liberdade de credos e a efetiva separação entre Igreja e Estado instituídas pela Constituição de 1891 foram essenciais para a atração de novos contingentes de imigrantes judeus de diferentes origens. O que não impediu, nos anos 30 e 40 deste século, a ocorrência de um hiato de angústias fruto da combinação de diversos fatores: a irrupção de um sentimento nacionalista logo transformado em xenofobia, o clima político decorrente das diferentes fases da ditadura Vargas e a influência nazi-fascista irradiada da Europa.
As condições para o florescimento pleno de uma identidade judaica no Brasil deram-se a partir da democratização de 1945 mas não em linha reta: a segunda fase do regime militar (1968 em diante) apresentou alguns retrocessos por força da permanente atração entre autoritarismo e anti-semitismo, mas também pela participação de judeus nos movimentos de resistência política.
Deste breve bosquejo histórico fica evidente que dos grupos minoritários, são os judeus os mais antigos (alienígenas). Mas, no caso dos judeus, nossa celebrada tendência para aproximações e amálgamas foi atalhada pela repressão inquisitorial e o sangue que dela jorrou ao longo de 300 dos 500 anos. E, posteriormente, pela persistência de alguns preconceitos político-raciais.
Comunidades como a italiana, alemã, sírio-libanesa ou japonesa, muito mais recentes, tiveram condições para apresentar-se de forma mais orgânica e contínua. Apesar do susto que os descendentes de algumas delas sofreram durante o período em que o país esteve em guerra com o Eixo (1942-1945). A comunidade israelita (o nome "judeu" ou "judaico" tinha conotações pejorativas) foi confinada e confinou-se durante grande parte destes cinco séculos, obrigada a um distanciamento e forçada discrição.
Em função deste passado longevo e irregular, ancestral e interrompido, é impossível estabelecer um relato contínuo sobre os judeus nas comemorações dos 500 anos do Descobrimento. Só agora sedimenta-se uma experiência judaica brasileira. O mais correto é estabelecer os vínculos entre os numerosos episódios da presença judaica no Brasil. E a contribuição que deles emanou.
A consciência histórica desta presença foi assinalada inicialmente por Solidônio Leite Filho, em 1923 (quando a comunidade ainda era pequena), com o opúsculo Os Judeus no Brasil. Mas foi no período da repressão imigratória e política da década seguinte que se desenvolveu um movimento de afirmação israelita-brasileiro com o aparecimento de inúmeras obras com intenção e entonação historicista - reação natural da primeira geração de brasileiros de ascendência judaica às ameaças à sua identidade (v. verbete história e memória).
A descontinuidade da jornada dos judeus no Brasil estabelece obrigatoriamente uma narrativa fragmentada. Ou circular. Para qual estas breves notas sobre algumas figuras e momentos estelares servem como eventual roteiro, evocação e convocação.
Abraham Ben Rabi Schemuel Zacuth (Salamanca, c. 1452-Jerusalém, 1513). Matemático, astrônomo, astrólogo e médico judeu, autor do Almanach Perpetuum Celestium Motuum, conjunto de tábuas solares que começou a coligir a partir de 1473 (chamado ano-raiz) quando ainda vivia na Espanha. Foi um instrumento importante tanto para Cristóvão Colombo como para Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral.
Z. foi um dos que recusou converter-se ao cris-tianismo em 1492, quando da expulsão dos judeus da Espanha. Sem dificuldades conseguiu abrigo em Portugal onde sua presença foi registrada a partir de 1493, ano em que foi convocado por D. João II para uma reunião em Torres Vedras a fim de discutir as conse-qüências das descobertas de Colombo e os projetos portugueses para neutralizar o avanço espanhol. Nesta reunião começaram a ser gestadas as propostas portuguesas para os Tratados de Tordesilhas assinados no ano seguinte com os Reis Católicos.
O Almanach foi impresso em Leiria, Portugal, na oficina do tipógrafo judeu Abraham Samuel Dortas, o único texto não hebraico impresso nos seus prelos. Foram feitas duas tiragens, uma em espanhol e outra em latim, mas o texto original, redigido em hebraico (com o título Hachibur Hagadol, a grande compilação) foi vertido e atualizado pelo mestre José Vizinho, astrônomo judeu português, discípulo de Z. e um dos conselheiros de D. João II em matéria náutica e astronômica. Foi também a última obra a ser impressa numa tipografia hebraica em Portugal - no ano seguinte, com o decreto de expulsão, os estabelecimentos gráficos pertencentes aos judeus foram desmantelados (Edição facsimilar, 1986, prólogo de Luís Albuquerque, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa).
O Almanach foi fundamental para as viagens transoceânicas em geral, mas sobretudo para a navegação em rotas ao sul do Equador onde a estrela Polar (referencial astronômico dos navegadores) vai-se tornando invisível. Para os cálculos náuticos passou-se então a utilizar a altura do Sol. Com as tabelas calculadas e compiladas por Z. indicando-se o dia e o mês obtinha-se a posição do Sol em graus, minutos e segundos dentro do signo (razão pela qual o Almanach teve grande utilidade também para astrólogos). O adjetivo perpétuo, utilizado por mestre Vizinho na tradução latina, deriva do fato de estar calculado com rigor suficiente para ser utilizado durante um largo período.
Segundo cronistas contemporâneos, Z. desempenhou papel destacado como astrólogo, astrônomo e mestre de navegação dos pilotos da frota de Vasco da Gama. Escreveu sobre medicina e astrologia ("Tratado Breve en las ynfluencias del cielo", em português) e astronomia ("De los Eclipses del Sol y la Luna", em espanhol), ambos na Revista de Estudos Hebraicos Vol. 1, nº 1, Lisboa, 1928.
Recusando novamente a conversão ao cristianismo imposta, desta vez, pelo monarca portu-guês, Z. alcançou finalmente Jerusalém depois, de alguns anos de peregrinações pelo Norte da Africa e Oriente Médio. Durante este percurso escreveu em hebraico o "Livro das Linhagens", Sefer Iuchassin, uma visão do desenvolvimento da Lei Oral onde se combina a cronologia, biografia e contribuições dos sábios judeus desde a antigüidade.
O historiador Elias Lipiner desvendou alguns mistérios da biografia do sábio judeu e alguns dos seus traços pessoais: "...encarna o judeu ibérico, intelectual e honrado, de vontade própria, que não cede, nem se dobra ao peso do meio cristão que o envolve e em que foi gerado..." (Elias Lipiner, Gaspar da Gama, Um Converso na Frota de Cabral, Nova Fronteira, Rio, 1986, p.75). Posteriormente, em Os baptizados em Pé (Vega, Lisboa, 1998), reconstrói definitivamente os últimos anos de sua vida.
A família Z. (com diferentes grafias ou pronún-cias - Zacuth, Çacuti, Cecuth, Çacuto, Caçuto e Cassuto) está associada antes do rabi-astrônomo e depois dele a inúmeros intelectuais judeus. O mais conhecido é o médico Zacuto Lusitano (Manuel Alvares de Tavara, 1575-1642), considerado uma das mais importantes personalidades médicas do século XVII. Nascido em Lisboa, foi para Amsterdã onde reconverteu-se ao judaísmo com o nome do seu ancestral, Abraham Zacuto. É de sua autoria o primeiro documento médico dirigido aos habitantes do Brasil (provavelmente destinado ao seu filho, Jacob Zacut, comerciante que viveu no Recife durante o domínio holandês).
? Fontes Adicionais: Francisco Cantera Burgos, El Judio Salamantino Abraham Zacut (Madri, s/d); O Testamento de Adão (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa, 1994); Victor Crespo, "Abraão Zacuto e a Ciência Náutica dos Descobrimentos Portugueses", revista Oceanos (nº 29, Janeiro-Março de 1997, "Diáspora e Expansão" pg. 119); Francisco Moreno de Carvalho in Em Nome da Fé (Editora Perspectiva, S. Paulo, 1999, p.57; Iacov Nachbin, Der Letster fun di Groise Zacutos (em idisch) Paris, 1929.
Fontes Adicionais: Francisco Cantera Burgos, El Judio Salamantino Abraham Zacut (Madri, s/d); O Testamento de Adão (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa, 1994); Victor Crespo, "Abraão Zacuto e a Ciência Náutica dos Descobrimentos Portugueses", revista Oceanos (nº 29, Janeiro-Março de 1997, "Diáspora e Expansão" pg. 119); Francisco Moreno de Carvalho in Em Nome da Fé (Editora Perspectiva, S. Paulo, 1999, p.57; Iacov Nachbin, Der Letster fun di Groise Zacutos (em idisch) Paris, 1929.
Também conhecido como Gaspar da Índia ou Gaspar, o língua (intérprete), foi o primeiro judeu a pisar no solo brasileiro (abril de 1500).
Veio na frota de Pedro Álvares Cabral, era um dos seus principais conselheiros não apenas na condição de conhecedor das línguas orientais mas sobretudo pelo tino político e seus profundos conhecimentos da realidade da Índia, de onde foi trazido por Vasco da Gama em 1498.
Os dados biográficos eram imprecisos até que Elias Lipiner (Gaspar da Gama, obra citada) novamente clarificou as referências básicas e produziu o seu perfil. Teria nascido no ano de 1458, em Alexandria, filho de judeus poloneses originários de Posnan refugiados em Jerusalém e, depois, no Egito. Não se sabe como foi parar na ilha de Angediva, perto de Goa, onde estava fundeada a frota de Vasco da Gama. Alguns depoimentos de contemporâneos dão conta que teria chegado bem jovem à Índia. Embora falasse o árabe e conhecesse bem o islamismo não existe prova de sua conversão a essa religião.
Certo é que G. casou-se como uma judia "muito douta", de Cochim (onde existia uma antiga comunidade), de quem teve um filho. O encontro com Vasco da Gama (quando já tinha cerca de 40 anos) tem vá-rias versões com alguns pontos em comum: em setembro de 1498 procurou o Almirante, aparentemente para atraí-lo para uma cilada. Vasco da Gama desconfiou, mandou prendê-lo. Sob tortura G. revelou o que sabia, permitindo aos portugueses desbaratar a armadilha. Seduzido pelos conhecimentos do judeu, D. Vasco resolveu mantê-lo consigo: obrigou-o a converter-se ao cristianismo, foi seu padrinho de batismo, escolheu o seu prenome (um dos reis Magos) e emprestou-lhe o seu próprio nome de família (o nome original seria Mamet).
Em Lisboa, o converso tanto fascinou D. Manoel que este o cita nominalmente (qualificando-o como judeu) na correspondência em que celebra a descoberta do caminho marítimo para a Índia. O prestígio na Corte garantiu-lhe um lugar de destaque na frota de Cabral. Sua contribuição ao êxito da segunda parte da viagem foi tanta que D. Manoel encarregou-o de assessorar novamente Vasco da Gama na sua segunda expedição à Índia (1502-1503). Foi também conselheiro dos Vice-Reis Francisco de Almeida e Afonso Albuquerque. Conservam-se até hoje três cartas-relatórios que G. da G. escreveu a D. Manoel relativos às coisas da Índia.
A atuação do conselheiro não se restringe aos sucessos da Índia, vai muito além. Relacionou-se com Américo Vespúcio em 1501, quando retornava da expedição de Cabral e foi seu declarado informante numa das quatro famosas cartas, a mais fidedigna (denominada "Carta de Cabo Verde", de 4 de Junho de 1501). Encontraram-se em Bezeguiche, que hoje acredita-se seja Dakar, e G. da G. passou ao comerciante-navegador florentino não apenas as informações sobre a Índia como os dados sobre a viagem de Cabral e, principalmente, suas observações sobre o Brasil (que Vespúcio ainda não conhecia). Nesta carta, como na seguinte, oferece dados mais concretos e substanciais sobre o "paraíso terrestre" do que aqueles registrados por Pero Vaz de Caminha. Na "Carta de Cabo Verde" de Vespúcio, o língua Gaspar é citado nominalmente três vezes (uma delas como judeu que se fez mouro), evidenciando-se como principal informante.
O cartógrafo Martin Waldseemüller, que pela primeira vez designou o Mundus Novus de Vespúcio como América (1507), indicou como uma das suas fontes a obra manuscrita "Relatio Gasparis Judei Indici" (que não pode ser outro senão G. da G.) e da qual jamais foi encontrada qualquer cópia.
Há indicações precisas de que G. da G. casou-se em Lisboa (antes de incorporar-se à frota de Cabral) com uma fidalga portuguesa. Em viagens posteriores à Índia tentou reaproximar-se da primeira mulher, a douta judia de Cochim, que se negou a converter-se ao cristianismo. Melhor sucedido foi em relação ao filho único que a ele juntou-se. Batizado com o nome de Baltazar (outro dos Reis Magos), recebeu o mesmo sobrenome, da Gama. Desconhece-se o local e a data da sua morte.
Mercador e fidalgo português, de remota orígem inglesa, nascido provavelmente em Évora. Já em 1494 é mencionado como Cavaleiro da Casa Real. Figura dominante no primeiro contrato de arrendamento do comércio da terra de Santa Cruz, cerca de outubro de 1502.
Noronha merece um verbete não porque fosse judeu, converso ou cristão novo, mas justamente porque não tendo qualquer traço judaico na sua ascendência - supostamente associado a anônimos mercadores cristãos-novos - tem sido acusado de ser o introdutor da escravidão no Brasil. E, por extensão, são os cristãos-novos e os judeus incriminados como os responsáveis pelo infame negócio. Acusação complementar é de que Noronha & Cia. foram os responsáveis pelo sacrilégio de trocar o nome místico de "Terra de Santa Cruz" para "Terra do Brasil" (de modo a valorizar o produto que levavam para a Europa).
Trata-se de múltipla falácia que convém esclarecer porque tem sido relembrada na atualidade não apenas nos sites e na propaganda anti-semita, como em alguns desvãos acadêmicos dominados pela ignorância e/ou ressentimento.
Historiadores portugueses do porte de J. Lúcio Azevedo (que não tinha simpatias pelos judeus), Duarte Leite, Jaime Cortesão e Antônio Baião sempre mostraram-se muito céticos com relação à ascendência judaica de Noronha.
Expulsos em 1496, massacrados no grande pogrom de 1506 de Lisboa, os judeus só poderiam continuar em Portugal se convertidos ao cristianismo. Com o estigma de cristãos-novos conseguiram uma certa proeminência no mundo dos negócios. Não há notícia de qualquer converso que, à época, tenha recebido mercês e títulos nobiliárquicos (inclusive brasão) semelhantes aos oferecidos a Noronha. A última honraria data de 1532: recebeu-a de D. João III (o introdutor da Inquisição em Portugal quatro anos depois) onde, além de outros elogios pelos serviços prestados, considerava-o limpo de sangue.
Também não existem provas de que os parceiros de L.-N. tenham sido cristãos-novos nem se conhecem seus nomes. O documento de arrendamento não sobreviveu, é apenas mencionado numa carta do italiano Pietro Rondinelli, escrita em Sevilha, datada de 3 de outubro de 1502 e na qual o missivista sem mencionar nomes, fala num contrato entre D. Manuel e certos cristãos novos pelo qual poderiam trazer o pau-brasil e escravos das terras recém descobertas. Não se sabe quem forneceu a informação a Rondinelli, seguramente Américo Vespúcio, mas suas informações em geral não são inteiramente fidedignas.
Navios armados por L.-N. participaram de diversas frotas que vieram ao Brasil em 1501, 1503 e 1505. Não há documentos sobre seus parceiros comerciais nem sobre a carga que trouxeram, o certo é que o pau-brasil era a mais valiosa (em 1504, D. Manuel doou a L.-N. a ilha de S. João, ou da Quaresma, provavelmente por ele descoberta em 1503 e posteriormente batizada com o seu nome).
Enquanto o primeiro contrato de arrendamento da terra recém-descoberta permanece envolto em dúvidas e mistérios, um segundo contrato entre a Coroa e um grupo de mercadores alemães apenas um ano depois (6 de outubro de 1503) está claramente registrado nos livros da Chancelaria de D. Manuel (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Livro 22, fl. 25). As única mercadorias mencionadas são as especiarias e o abrasil. Outras concessões de 1509 e 1510 a mercadores flamengos e alemães não mencionam a Terra de Santa Cruz nem especificam as mercadorias muito menos o tráfico de escravos. Difícil acreditar que o primeiro arrendamento fosse mais explícito que os seguintes - o contrário seria mais lógico.
Das passagens das naus de L.-N. pelo Brasil conhecem-se unicamente os detalhes da viagem da nau Bretôa que partiu de Lisboa a 22 de fevereiro de 1511. Seus armadores, além do fidalgo, eram o florentino Bartolomeu Marchione, seu sobrinho Benedicto Morelli e o português Francisco Martins. Sobre Marchione não existe nenhuma suspeita de judaísmo: estabelecido em Lisboa desde 1486 financiou sucessivas viagens à Africa e Índia. Uma das caravelas da frota cabralina pertencia a Marchione. O opulento mercador negociava com açúcar da ilha da Madeira e recebeu inúmeros privilégios de D. Manuel inclusive a legitimação de diversos filhos naturais de, pelo menos, duas mulheres diferentes. Do outro sócio, Francisco Martins, nada se conseguiu apurar.
No livro de bordo registra-se que o destino da viagem era ho brazill. Significa que, apesar de decorridos onze anos da descoberta, impunha-se com naturalidade o nome Brasil. Nas rigorosas instruções aos responsáveis pela caravela está dito que pode-riam trazer o pau-brasil devidamente escriturado (para o pagamento dos impostos ao fisco), papagaios, gatos, macacos e escravos. Com efeito, além da carga da madeira, a Bretôa trouxe 36 cativos, indígenas (seis do capitão, cinco do escrivão, três do mestre, oito do piloto e o restante distribuído entre os demais tripulantes, entre os quais o despenseiro). Nenhum dos escravos pertencia aos armadores. As mesmas instruções proibiam terminantemente a captura de naturais mas permitiam o embarque de aborígenes prisioneiros (que assim ficariam livres do sacrifício) (cf. António Baião, "O comércio do pau-brasil" in História da Colonização Portuguesa, obra citada, vol. II, pp.315-347).
O nome Brasil é anterior ao país. Aparece cerca de 500 anos antes de 1500. Uma pauta aduaneira em latim bárbaro e datada de 1085 estipulava o preço do kerka bersil. No romance Perceval le Gallois, do ciclo de aventuras do Rei Artur, de Chrétien de Troyes (1160), mencionam-se trajes tintos em bresil. O nome foi utilizado em relatos e mapas de meados do século XIV para designar misteriosa ilha no Mar Tenebroso com localização variada. O primeiro registro da Ilha do Brasil data de 1325 e consta da carta do genovês Angel Dalorto que a situa a oeste da costa sul da Irlanda.
Durante algum tempo as terras descobertas foram conhecidas como Terra dos Papagaios. Os nomes Santa Cruz ou Vera Cruz, usados na correspondência oficial simplesmente não tinham apelo - no planisfério de Martin Waldseemüller, de 1516, combinaram-se os nomes mais populares: Brasília, Sive Terra Papagalli (Brasil ou Terra dos Papagaios).
As hipóteses envolvendo a suposta ascendência judaica de Fernão de Noronha e a substituição do nome religioso das novas terras por outro com mais apelo (ou tradição) foram tratadas com naturalidade pelos primeiros historiadores modernos como Francisco Adolfo Varnhagen e Capistrano de Abreu (ambos pioneiros na revelação de importantes documentos sobre a Inquisição no Brasil).
Coube a Gustavo Barroso (um dos fundadores da Aliança Integralista Brasileira e que não escondia suas inclinações anti-semitas e fascistas) a tarefa de converter especulações infundadas em panfletos de rancor político.
Mais recentemente, sem o ranço ressentido mas na mesma direção de Barroso, o prof. José Gonçalves Salvador insistiu na infame tese de que a escravidão no Brasil é obra dos cristãos-novos partindo do pressuposto de que Fernão de Noronha (ou Loronha), Bartolomeu Marchione e Francisco Martins eram conversos, ignorando a documentação divulgada mais de meio século antes ("Os Magnatas do Tráfico Negreiro", Ed. Pioneira-Edusp, 1981, pg. 19).
Nenhum grupo é amnésico", constatou o historiador francês Charles-Olivier Carbonell. "Todo povo tem história, completa o inglês Eric Hobsbawm, "...o passado é, portanto, uma dimensão permanente da consciência humana...". A noção de identidade obtém-se da transformação da memória em história. Diante de pressões positivas ou repressões negativas.
Quatro anos depois do opúsculo de Solidônio Leite Filho, foi publicada no Rio, por iniciativa do primeiro Grão-Rabino (não-ortodoxo), Dr. Isaias Raffalovich, a obra de divulgação do americano Paul Goodman, História do Povo de Israel (com uma inserção sobre os judeus no Brasil, seguramente de autoria de Marcos Constantino).
Veio de Paris, em ídiche, o primeiro trabalho histórico moderno produzido por um judeu radicado no Brasil, Iacov Nachbin (jornalista e ativista que primeiro fixou-se no Recife e depois no Rio). Der Letster fun di Groisse Zacutos ("O Último dos grandes Zacutos", v. o verbete Zacuto) não se referia ao Brasil mas em textos anteriores, no mesmo idioma (1928, no Idische Folkstzaitung, S.Paulo) e posteriores (1930, na revista socialista nova-iorquina Zukunft ), Nachbin estudou com afinco a história dos judeus no Brasil.
À medida em que agravam-se as restrições à imigração de refugiados da Europa e crescem as manifestações anti-semitas, surgem os primeiros sinais de uma resistência que se manifesta através de uma percepção histórica e de uma afirmação cultural. A primeira obra buscando uma conexão identificatória é a História dos Israelitas no Brasil, de Izak Raizman (primeiro em idisch, depois em português, São Paulo, 1935 e 1937).
O fracassado levante comunista de 1935 e a severíssima retaliação do governo Vargas contra as "conspirações estrangeiras" provocaram no ano seguinte uma safra de obras onde se irmanam autores judeus como não-judeus. Saíram em 1936: Os Judeus na História do Brasil, organizado pelo livreiro Uri Zwerling (Rio) com diversos autores (entre os quais, Gilberto Freyre, Arthur Ramos, Rodolfo Garcia, Roquete Pinto, Agripino Grieco, etc.); Israel no Brasil, de Fernando Levisky (S. Paulo). Publicado em 1937: Em Legítima Defesa, A Voz de um Judeu Brasileiro), do líder comunitário curitibano Bernardo Schulman (três edições no mesmo ano) e Almanack Israelita, Israel no Passado e no Presente, diversos autores, organização do jornalista Samuel Wainer e do prof. Inácio de Azevedo Amaral (Rio). A série encerra-se em 1940, antes do alinhamento do Brasil contra o nazi-fascismo, com a obra do jurista Evaristo de Morais, Os Judeus (Rio).
Estavam criadas as sementes para uma historio-grafia judaico-brasileira ou luso-hebraica da qual Elias Lipiner (1916-1998) foi o seu expoente. Seus primeiros trabalhos foram publicados ainda no início da década de 40 em publicações argentinas, em espanhol. Em 1949 sai em Buenos Aires seu primeiro livro relativo ao assunto, em ídiche, Bai di Taichn fun Portugal ("Às margens dos Rios de Portugal') sobre Samuel Usque e a sua crônica da Expulsão "Consolação às Tribulações de Israel").
Indispensável incluir neste cruzamento de história e biografia o mais importante pesquisador dos descobrimentos e das ciências náuticas portuguesas, o engenheiro naval Joaquim (Judah) Bensaúde (1859-1952). Descendente de uma antiquíssima família de judeus marroquinos que, com o fim da Inquisição em Portugal, estabeleceu-se nos Açores. O neto de uma de suas primas, Sara Bensaúde, chama-se Jorge Sampaio. É presidente da República Portuguesa.