Muito já se escreveu sobre a herança de judeus na Península Ibérica. Depois de uma visita a 15 cidades portuguesas, incluindo as sinagogas e museus de Lisboa, Belmonte, Castelo de Vide e tomar, pode-se concluir que a herança judaica foi muito forte e altamente representativa.

Expulsos da Espanha em 1496, os judeus encontraram abrigo no país vizinho, a que chegaram das mais diversas formas, incluindo caminhadas a pé e a utilização de carros de boi, sempre somente com a roupa do corpo. Diz a história que os primeiros judeus foram para Castelo de Vide, ainda no período romano. A situação começou a se complicar a partir de 1497, quando o rei D. Manuel I determinou a conversão forçada, que deu origem aos cristãos-novos e aos criptojudeus, estes com a característica de manter os postulados da sua crença de forma oculta. Muitos deles, por isso mesmo, vieram para o Brasil, em busca de liberdade religiosa.

É preciso entender que, antes da Inquisição, árabes e judeus viveram 400 anos em perfeita harmonia, na Península Ibérica, onde floresceram lado a lado judiarias e mourarias que ainda hoje subsistem como locais históricos. Sendo ambos os povos originários do patriarca Abrahão, é difícil compreender as razões da posterior animosidade nessas relações.

O fato mais chocante da nossa viagem foi a revelação, nas sinagogas portuguesas, dos nomes dos  cristãos-novos que foram queimados pela Inquisição, pelo simples fato de terem origem judaica. Um crime inominável que levou o presidente Mário Soares, em 17 de março de 1989, numa visita a Clive, a declarar enfaticamente: “Na paisagem alentejana e nesta tão bela terra, a judiaria ergue-se, desafiando os séculos, como um símbolo que desejamos seja de tolerância, de fraternidade e de unidade essencial do gênero humano. Em nome de Portugal, peço perdão aos judeus pelas perseguições que sofreram em nossa terra”.

Um consolo, é certo, para tanto sofrimento, envolvendo nomes e sobrenomes que nos são extremamente familiares: Gonçalves Dias, Diogo Lopes, Ana Mendes, Jorge Nunes, Garcia da Orta, Leonor Rodrigues, Álvaro Pais, Cristovão de Torres, Leonor Vaz, Filipa Mendes, entre outros. O caso de Garcia da Orta é emblemático: médico e pesquisador de plantas medicinais, amigo de Camões na Índia, morreu e foi enterrado como católico. A Inquisição desconfiou dele e mandou desenterrar o corpo, que foi exumado. Então se descobriu que era judeu: foi queimado depois de morto, em 1580, numa prova da barbárie desses tempos. O mesmo ocorreu com a sua irmã Catarina.

Assinala-se a presença judaica em Vide no extenso período de 1300 a 1600. Muitos deles eram cardadores que vendiam seus produtos nas feiras da Espanha (Cáceres, Zafra, Córdova, Sevilha etc). Antes, em Belmonte, tínhamos tomado conhecimento da existência das famílias Vaz, Henriques, Rodrigues, Nunes, Morão, De Sousa, Mendes, Diogo, Cunha e Pereira. De notável, o sobrenome Gouvêa, que era da mãe judia de Pedro Álvares Cabral, o que pode explicar a razão de ter ele selecionado para a viagem ao Brasil uma tripulação constituída basicamente de cristãos-novos.

Com a destruição do templo de Jerusalém, por parte dos romanos, no ano 70 e.C., os judeus dirigiram-se à península ibérica, no que a história denominou de Diáspora ou dispersão. De início na Espanha (Sefarad), onde foram bem acolhidos, deixaram fortes marcas culturais da sua passagem, de que talvez tenha sido o maior símbolo o médico e filósofo  Maimônides, Rabi Moshe Ben Maimon, cuja codificação dos 613 mandamentos da Torá é até hoje lembrada.

Sabe-se que, no ano de 1492, os reis Fernando e Isabel expulsaram os judeus do seu território, com a violência que caracterizou a Inquisição na Espanha. Acolhidos inicialmente pelo rei português D. Manuel, o Venturoso, os judeus, com os seus conhecimentos científicos e náuticos, foram figuras decisivas nas descobertas marítimas. Pode-se lembrar a importância do astrolábio, invenção de Abrahão Zacuto, na Escola de Sagres, para facilitar essas conquistas.

Com o Tribunal da Inquisição chegando a Portugal, de novo houve perseguições, mortes e conversões forçadas, que deram origem aos cristãos-novos, bastante numerosos, e aos criptojudeus, que mantiveram a sua devoção de forma oculta. Quem vai a Toledo ou Córdoba sente as marcas da presença judaica na Espanha. Fomos ao interior de Portugal – e ali a memória está mais presente, em sinagogas e museus que existem até hoje em cidades como Belmonte (Sinagoga Bet Eliahu, doada pela coletividade israelita de Marrocos, especialmente a família Azoulay), Tomar e Castelo de Vide, para só citar essas três. Na primeira das cidades, uma grande descoberta: a mãe de Pedro Álvares Cabral, Gouveia de solteira, era cristã-nova.

Em Tomar, entrevistei a administradora da sinagoga, Teresa Carvalho, que se apresentou com uma luzidia estrela de Davi no peito. Perguntei qual a sua religião. Ela pareceu espantada: “Sou judia!”. E completou: “Aliás, a minha mãe também era, e os meus avós.” Quis saber o sobrenome dos ancestrais. Ela foi rápida: “Todos Carvalho e todos nascidos aqui em Tomar. O meu marido é judeu, chama-se Luís Vasco, e tem origem espanhola. Sua família nunca teve outra religião”. O Museu, naquela cidade, chama-se Abrahão Zacuto.

Fiquei fascinado com essas informações, que se repetiram ao longo da viagem. Com uma particularidade que ressaltei na comunicação feita à Academia Brasileira de Letras: “As judiarias e as mourarias existiram em Portugal, lado a lado, durante cerca de 400 anos, e sempre com muita amizade. Tratavam-se como irmãos, que eram mesmo pelas origens comuns: o patriarca Abrahão.”

Há muitas lembranças desse tempo de liberdade religiosa que infelizmente não perdurou para sempre. O que fica em nosso espírito, depois de uma visita dessas, é a tristeza por verificar que essa comunhão entre árabes e judeus foi lamentavelmente interrompida. Quem sabe, pode estar próximo o dia em que será reestabelecida, especialmente no Oriente Médio. A paz beneficiaria todos os povos daquela região.

Arnaldo Niskier é Doutor em Educação, integrante da Academia Brasileira de Letras e presidente do CIEE/RJ