Em fevereiro de 1945, pouco antes da derrota do nazismo, os três líderes vitoriosos, Roosevelt, Churchill e Stalin, reuniram-se em Yalta para definir os novos rumos mundiais.
Roosevelt, na ocasião, perguntou a Stalin o que ele achava do sionismo. O ditador soviético respondeu: "Em princípio, apoio o sionismo, porém, é muito difícil solucionar a questão judaica. Nossa experiência em Birobidjan fracassou porque os judeus preferem viver nas grandes cidades".
Embora não sendo verdadeira, a resposta fora bem achada. Nem Stalin nem os mandatários do Kremlin jamais conseguiram entender por que os judeus, que tanto almejavam possuir um território próprio, não haviam acorrido em massa à remota região de Birobidjan, onde poderiam desenvolver uma vida judaica plena. Faltava-lhes a compreensão, a rigor inatingível, para eles, de que o sionismo não se resumia a um desejo territorial. Significava o retorno à pátria ancestral dos judeus, na Terra Santa, onde se localizavam Jerusalém e sua moldura mística, o Muro Ocidental, a Cidadela de David, o Monte Sinai e as raízes dos ensinamentos dos patriarcas e profetas do povo judeu. Nem mesmo Leon Trotsky, o judeu Lev Davidovitch Bronstein, detentor de uma educação religiosa judaica na infância e que se tornara um dos principais revolucionários comunistas, tão importante quanto Lênin, se preocupara em entender a essência do sionismo. Fiel ao pensamento de Marx, ele considerava a religião como "um ópio do povo" e tal conceito naturalmente se estendia à religião judaica. Quando os bolcheviques criaram a Yevsektsia, a Seção Judaica do Partido Comunista, Trotsky permaneceu alheio a essa iniciativa. Ele inclusive havia trocado de nome para não ser identificado como judeu e se dizia um "internacionalista". Seu credo era no sentido de que as perseguições contra os judeus eram devidas a uma deformação social e, portanto, uma vez reformada a sociedade, com a assimilação dos judeus dentro do regime comunista, estes ficariam livres de todos os males.
E ia ainda mais longe, argumentando que quando os trabalhadores judeus abdicassem do judaísmo, os trabalhadores não-judeus deixariam de ser anti-semitas. Conta-se que o Grão-Rabino de Moscou, Jacob Maze, foi ao encontro de Trotsky para lhe pedir que intercedesse em favor dos judeus. Como sempre, Trotsky respondeu que era comunista e não se considerava judeu. O rabino replicou: "Eu sei... os trotskys fazem as revoluções e os bronsteins pagam a conta".
Em 1920, três anos depois da implantação do regime comunista soviético, a situação econômica e social dos judeus na antiga Rússia era desesperadora. Apesar de engolfados por imensos problemas de toda ordem, os novos donos do poder tentaram assentar os judeus em diferentes áreas do país. O plano inicial era concentrá-los em regiões da Ucrânia e da Criméia, mas os dirigentes locais detonaram essa intenção. Naquele ano, ao cabo do Segundo Congresso do Comintern (Internacional Comunista) foi lido um documento referente às questões nacionais na União Soviética, que dizia o seguinte: "Um exemplo flagrante da impostura contra os trabalhadores perpetrada pelas forças unidas do imperialismo é essa aventura do movimento sionista que pretende estabelecer um estado judaico na Palestina. Na verdade, o que os sionistas querem é expulsar o povo trabalhador da Palestina, porque lá os trabalhadores judeus são ínfima minoria". Mesmo assim, como havia um significativo número de judeus proeminentes entre os revolucionários soviéticos, o sionismo passou a ser visto com alguma simpatia, tendo entre seus defensores o temido Felix Djerzinsky, diretor da GPU, que anos depois se tornaria a KGB.
Finalmente, nessa atmosfera foi escolhida para se tornar um "estado judeu" a região de Birobidjan, situada no extremo oposto da Europa Ocidental, na fronteira da União Soviética com a Manchúria. Com 34 mil quilômetros quadrados, mais ou menos do tamanho da Bélgica, era um lugar horroroso, assolado por invernos implacáveis e chuvas constantes nos demais meses do ano. Era uma área bem dotada de recursos naturais, como o carvão, ferro, cobre e ouro, mas inexistia qualquer infra-estrutura para possíveis explorações.
Levantamentos feitos em 1929 descreviam Birobidjan com 53% de florestas virgens, 16% de pântanos e 14% de pradarias inóspitas, isto sem falar na impressionante quantidade de insetos que transmitiam doenças.
No dia 28 de março de 1928, baseado em um relatório fornecido por uma comissão agrícola e científica que se havia deslocado até aqueles confins, o Comitê Central Executivo do Soviet Supremo declarou que Biorobidjan já estava em condições de receber a colonização judaica. Seria uma próspera região, a partir de seus expressivos recursos naturais e teria o iídiche como idioma oficial e obrigatório (já que o sionismo se empenhava em reviver o hebraico). Entretanto, a realidade era bem diferente do que afirmavam os documentos oficiais. No decorrer de dez anos, de 1928 a 1938, cerca de 43 mil judeus russos se deslocaram para Birobidjan. O primeiro ano foi terrível, assolado por tempestades, inundações e uma epidemia que matou quase todos os animais, além de grandes porções de terras se revelarem impróprias para qualquer cultivo. Apesar disso, o projeto Birobidjan entusiasmou as esquerdas judaicas em todas as partes do mundo. Nos Estados Unidos foram criadas organizações de apoio à iniciativa soviética, encarregadas de angariar fundos para viabilizar aquele falso estado judeu. Cerca de 1.400 judeus comunistas ali se radicaram, vindos dos Estados Unidos, da Europa, da América Sul e, até mesmo, da Palestina. Pouco tempo depois, a maioria retornou para seus países de origem.
Na década de 30, Birobidjan assumiu uma importância estratégica para o Kremlin, em função da proximidade com o Japão e da fronteira daquela região com a Manchúria, invadida pelos japoneses. Em 1934, o Kremlin proclamou Birobidjan "Região Autônoma Judaica". A propaganda oficial apontava-a como uma alternativa viável para a continuidade nacional judaica em vez da Palestina. Os nomes das ruas e as informações na estação ferroviária apareciam escritos em iídiche e russo. Em 1930, um judeu da Bielorrússia, Yacov Levin, foi nomeado primeiro comissário do partido comunista em Birobidjan. Para presidir o comitê regional executivo foi nomeado o cientista Iossif Liberberg, destacado membro da Academia de Ciências da Ucrânia.
O Kremlin acreditava que nomes de tal envergadura iriam atrair mais judeus para aquele novo paraíso. No cômputo geral, conforme apregoava o regime, ali se desenvolveria uma cultura secular judaica baseada em férreos princípios socialistas. A região passou a contar com uma biblioteca de livros dedicados a temas judaicos, todos escritos em ídiche e russo, e um jornal, Der Birobidjaner Shtern.
Quando Stalin anexou os estados bálticos e partes da Polônia Ocidental e da Bucovina, isso significou um considerável aumento da população judaica sob domínio soviético.
Foi formada uma companhia teatral que se apresentava regularmente, também em iídiche. Entretanto, nessa aparente conquista judaica estava proibido o ensino religioso, bem como as práticas litúrgicas judaicas. A exemplo dos kibutzim que os pioneiros judeus haviam implantado em Eretz Israel, os soviéticos ali dedicaram vultosos recursos para o desenvolvimento de colônias agrícolas coletivas, que resultaram em sucessivos fracassos. Isto porque essas fazendas habitadas por grupos heterogêneos careciam de dois elementos básicos que haviam impulsionado o florescimento dos kibutzim em Eretz Israel: a solidariedade humana e um profundo sentimento nacional no rumo definido do estabelecimento de uma futura pátria judaica na sua terra de origem.
Em 1936, por ocasião dos expurgos contra intelectuais e políticos judeus cometidos por Stalin, a imagem de Birobidjan começou a se desvanecer. Líderes judeus radicados em Birobidjan foram denunciados e encarcerados sob a acusação de serem "trotskistas" e "internacionalistas". Tal situação é muito bem descrita num texto de autoria do professor Edgar Leite Castro, da Universidade do Rio de Janeiro: "A Yevsektsia foi extinta em 1930. Os historiadores apontam os expurgos de 1936 a 1938 como o primeiro dos golpes que a região autônoma sofreu e, a partir desse momento, seu papel começou a se tornar nebuloso. Em 1937 foram presos o chefe do partido, Matvei Havkin, e o próprio Liberberg. Sucederam-se prisões e deportações. Sobre a esposa de Havkin, Sofia, recaiu a acusação de tentar matar Kaganovitch quando este visitou a região, em 1936. A denúncia afirmava que ela teria oferecido ao líder stalinista um guefilte fish envenenado. A culinária judaica viu-se assim colocada num dos centros da "grande conspiração" contra a União Soviética". Os comitês regionais judaicos foram extintos, seus conselheiros, executados, e a região passou a ser administrada pela NKVD, antecessora da KGB.
Na véspera da Segunda Guerra Mundial ali residiam menos de vinte mil judeus, que continuavam acreditando nas promessas de plena autonomia e se esforçavam para manter o iídiche como um idioma vivo. Nessa conjuntura, para lá se deslocaram camponeses da Rússia e da Ucrânia, sem nenhum vínculo com o judaísmo. Ao mesmo tempo, os judeus radicados na região não encontravam resposta para uma angustiante pergunta: como desenvolver uma identidade judaica sem as tradições religiosas do judaísmo, já que a religião era proibida pela constituição soviética?
Quando Stalin anexou os estados bálticos e partes da Polônia Ocidental e da Bucovina, isso significou um considerável aumento da população judaica sob domínio soviético. De imediato, as autoridades pretenderam transferi-la para Birobidjan, mas seu destino final acabou sendo a Sibéria e campos de concentração. No pós-guerra, em função dos portões fechados pelos ingleses na Palestina, milhares de refugiados e sobreviventes do Holocausto tomaram o rumo de Birobidjan, onde passaram a viver 30 mil judeus. Nessa ocasião, ali ocorreu uma breve renascença judaica, na esperança de que a região ainda pudesse vir a ser uma espécie de República Socialista Judaica.
A decepção foi devastadora. Os chamados "íidichistas" foram acusados de estar engajados em atividades subversivas, por disseminarem uma cultura nacional própria, alheia à cultura oficial soviética. Todos foram condenados a severas penas, com trabalhos forçados na Sibéria. Após a morte de Stalin, em 1953, os sobreviventes foram libertados e retornaram para suas famílias nas maiores cidades da União Soviética, mas a vida judaica em Birobidjan já não passava de uma ruína. Do texto do professor Castro, destaco mais um trecho assustador: "É significativo que a maioria das lideranças e ativistas comunistas da Região Autônoma de Birobidjan tenha continuado confiante no triunfo conjugado da revolução e da causa judaica. Havkin, que permaneceu preso até 1956, entendia o stalinismo como um trágico acidente de percurso no processo revolucionário".
Mesmo assim, o regime comunista conseguiu fazer daquela região uma espécie de vitrine, numa demonstração de que havia tentado dar o melhor para os judeus e que se o projeto tinha fracassado, a culpa cabia aos próprios judeus. No início da década de 60, o diplomata Yossef Tekoah, então embaixador de Israel no Brasil, foi designado para igual posição na União Soviética. Em suas próprias palavras, "é um posto que ninguém pede, mas que também ninguém recusa". Anos depois de sua estada em Moscou, ele me contou que o Kremlin lhe organizou uma visita oficial a Birobidjan, no contexto daquela maquiagem: "Os judeus correspondiam a menos de 10% da população local e não ficaram mobilizados com a presença de um embaixador do Estado de Israel. Eu tinha a impressão de estar percorrendo um enorme museu e minha maior preocupação era não encostar nas portas e nas paredes, porque todas ainda continham tintas frescas".
Em 1989, ao serem abertas as fronteiras da antiga União Soviética, dos 12 mil judeus que viviam em Birobidjan, 10 mil emigraram para Israel. Em função da abertura decorrente do colapso soviético, Birobidjan pôde retomar uma incipiente vida judaica, com a realização de eventos, de cultos religiosos em suas respectivas datas, de preservação do Shabat e do ensino do idioma iídiche.
A jornalista americana Sue Fishkoff escreveu, há cinco anos, uma série de reportagens para a Jewish Telegraphic Agency em que destaca a presença, naquela região, do movimento Chabad, responsável pela construção de um edifício que contém nova sinagoga, conduzida por um rabino especialmente designado para essa localidade. Uma cozinha casher foi doada pela organização americana Joint. E, como a vida judaica sempre apresenta ocorrências inusitadas, acontece hoje em Birobidjan um curioso fenômeno: em vez de os judeus se assimilarem à cultura russa, os russos do lugar se assimilam à cultura judaica. A professora de iídiche e de hebraico na escola instalada pela Agência Judaica era, ou ainda é, uma senhora não-judia.
Há pouco, foram divulgadas através da internet fotografias de Birobidjan, bem ao feitio de "vitrine". São belas imagens fortemente coloridas, a exemplo do que se costuma ver nas ilhas do Caribe. Nelas aparecem a praça Sholem Aleichem com uma escultura do escritor, a fachada de um teatro (onde é muito duvidoso que ainda aconteçam representações em iídiche) e outros prédios e ruas com consagrados nomes judaicos. Os capitalistas russos de hoje ainda alimentam a ilusão de que Birobidjan persiste como um suposto estado judaico.