A intensa ação inquisitorial na Península Ibérica levou grande número de suspeitos cristãos novos1 a buscar refúgio na América colonial. Pouco tempo bastou para que três tribunais religiosos fossem instalados: na cidade de Lima (Peru, 1570); México (1571) e, em Cartagena de las Índias (Colômbia, 1610).
Esses tribunais operaram até inícios do século 19 na busca de hereges, predominantemente cristãos novos, bruxas e suspeitos por conduta inconveniente (sodomia, blasfêmia e bigamia). Os réus, presos sem comprovação efetiva e submetidos à tortura, receberam sentenças nos "Autos de Fé", realizados em praças públicas. Alguns, a pena máxima, na fogueira, efetivada pela justiça comum, determinada por sentença inquisitorial.
O tema "Inquisição e Cristãos Novos" tem despertado a atenção de escritores e jornalistas, além de historiadores. Embora não fossem instalados tribunais no Brasil, dos 40.000 processos existentes no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal, cerca de 1.200 eram de réus provenientes de várias capitanias brasileiras.
Os processos da Inquisição Portuguesa constituem uma das mais ricas fontes onde se estudar a sociedade brasileira, especialmente o cotidiano colonial, pouco estudado pela História Oficial. Os registros secretos dos notários da Inquisição - abertos ao público, no final do século 19 - compostos de exaustivas descrições manuscritas, permitem revelar, além dos aspectos políticos e econômicos, a sociedade, os costumes, a moral e a religiosidade colonial luso-brasileira. Dos processos existentes no arquivo português, cerca de 90% são de cristãos novos, sentenciados como "hereges judaizantes". Convertidos à força ao catolicismo no ano de 1497, por D. Manoel, rei de Portugal, os cristãos novos - descendentes de judeus sefaraditas, eram acusados de praticantes secretos da religião judaica.
Pesquisas históricas informam que o cristão novo, que, no Brasil, aportou desde o início da exploração e colonização da terra, era elemento pouco ligado à religião. Veio fugindo da perseguição que lhe movia a Inquisição, em Portugal. Presentes em diversas capitanias, iniciaram dispersão espacial assim que os "Visitadores do Santo Ofício" chegaram às capitanias nordestinas, em fins do século 16. Os Visitadores eram bispos encarregados de fiscalizar, inquirir, registrar denúncias, prender e encaminhar os infratores da religião católica para Lisboa. Judaizantes, luteranos, islamitas, feiticeiros, bígamos, blasfemos e sodomitas eram os principais suspeitos. Além dos visitadores, os "Familiares do Santo Ofício" (procedentes de vários grupos sociais) fiscalizavam e denunciavam "hereges" e os que agiam contra os princípios da "moral e dos bons costumes".
Nomes de família como Pinheiro, Oliveira, Nogueira, Silva e Pereira não comprovam origem judaica de cristãos novos, pois grande número de velhos cristãos traziam esses sobrenomes. Da pesquisa emerge uma variedade de nomes, além dos citados: Rodrigues, Mendes, Castro, Telles, Costa, Monforte, Dias, Paredes, Nunes, Franco, Montarroio e outros, registrados na documentação inquisitorial2. Embora a endogamia fosse comum entre os cristãos novos portugueses, no Brasil, era comum a união com índias e negras, resultando grande número de mestiços da origem. Nas primeiras décadas do século 18, povoadores de várias regiões, especialmente as do nordeste brasileiro, transferiram-se para a Capitania do Rio de Janeiro, onde, em terras de Minas Gerais, se efetivava a exploração do ouro. A cidade fluminense, porto oficial da saída do metal e entrada de mercadorias, apresentava-se economicamente agitada, o que levou a coroa portuguesa a reforçar o sistema mercantilista, controlando, diretamente, o movimento comercial, em especial o do abastecimento de gêneros de subsistência às regiões mineradoras.
O período foi marcado por grande número de denúncias de cristãos novos à Inquisição3 . A maioria foi presa e encaminhada ao Tribunal de Lisboa. A leitura dos processos revelou senhores de engenho, exploradores de minas, contratadores, comerciantes, clérigos, advogados e outros profissionais envolvidos na vida econômica, administrativa e social luso-brasileira, acusados de judaizantes. No Rio de Janeiro, em vista das prisões de expressivos agentes, negócios foram desfeitos, sociedades comerciais estancadas e congelados ficaram os bens e as dívidas dos denunciados. A Inquisição determinava o seqüestro de bens dos acusados por práticas judaizantes.
A paralisação dos negócios, estancando a economia luso-portuguesa, levou o Marquês de Pombal, ministro real, a promulgar, em 1751, decreto que limitava o poder da Inquisição, buscando com a medida o reerguimento da nação portuguesa, encorajando a burguesia para empreendimentos ousados. Pelo decreto real, não mais se permitiriam execuções e Autos de Fé no reino português.
Em 1768, para desalento dos historiadores, o ministro ordenou que as velhas listas de tributos, onde constavam nomes dos cristãos novos contribuintes, fossem destruídas. Logo depois, Pombal proibiu a distinção entre cristãos velhos e cristãos novos, na linguagem escrita e falada. Aos contraventores seriam aplicadas penas de deportação e confisco de bens. Essas medidas, além de estimular os negócios, amenizaram os conflitos entre os cristãos velhos e cristãos novos, existentes no reino.
No Brasil, os cristãos novos não constituíam grupo compacto e separado da comunidade nacional. As prisões na primeira metade do século 18, embora estancassem negócios, não conseguiram separar e excluir os conversos da sociedade colonial, mesmo quando judaizavam.
Embora estereótipos insistam em colocar os cristãos novos exclusivamente nos negócios comerciais, eles eram encontrados em diversas outras atividades: nos engenhos, nas plantações de subsistência, nas minas, ligados à caça ao índio no sertão e, ainda, na condição de "desocupados". Posicionaram-se, inclusive, como clérigos de diferentes ordens religiosas. Ocuparam cargos públicos, legalmente proibidos pelos "Estatutos de Pureza de Sangue", que também funcionavam no Brasil.
A ação do Santo Ofício da Inquisição tem sido interpretada por estudiosos, da seguinte maneira: os que justificam sua ação, ou seja, que defendem que o cripto-judaísmo foi uma realidade e o Tribunal agia de acordo com as contingências e os padrões religiosos da época; e os que afirmam que a Inquisição - instrumento do poder - ao cercear os cristãos novos, buscava impedir a ascensão da burguesia de origem judaica. Esta última assertiva, emitida por Antônio José Saraiva, conclui que os inquisidores utilizaram a religião como pretexto para encobrir o verdadeiro motivo da perseguição: a "luta de classe"4.
A professora Anita Waingort Novinsky, da Universidade de São Paulo, endossando as idéias de Saraiva, aponta que as fontes inquisitoriais devem ser analisadas com muito cuidado. Segundo a historiadora, o processo inquisitorial reflete a opinião do grupo que está no poder e atua, portanto, na manutenção da velha estrutura e com a "marca dos preconceitos que esse grupo queria encontrar nos perseguidos"5. Não se deve esquecer que as "confissões" eram obtidas sob tortura física. Embora não chegue a negar a existência do cripto-judaísmo, Novinsky declara que, desde o século 17, a Inquisição portuguesa lutava contra uma realidade que não era mais a religião judaica, mas uma força de oposição. A perseguição virulenta dos inquisidores tinha transformado o cristão novo em um homem de conflitos, que vivia num mundo cristão, sem ser aceito e identificado com a religião judaica, sem sequer a conhecer. Para a historiadora, a secular perseguição havia conduzido o cristão novo a elemento de oposição da estrutura vigente.
Notas:
1.Judeus convertidos compulsoriamente ao catolicismo, em terras da Espanha e Portugal.
2. Flávio Mendes de Carvalho, Raízes Judaicas no Brasil: Arquivo secreto da Inquisição. São Paulo, Nova Arcádia, 1992.
3 A historiadora Lina Gorenstein F. da Silva informa que 30% da população do Rio de Janeiro, no período, era de cristãos novos. In: Heréticos e Impuros. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, 1995.
4. Antonio José Saraiva. A Inquisição e cristãos novos. Lisboa, Ed Inova, 1968
5. Novinsky, Anita. Os cristãos novos na Bahia. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1972.
Rachel Mizrahi é autora de A Inquisição no Brasil: Miguel Telles da Costa. O capitão judaizante de Paraty. (2ª Ed., no prelo) e Imigrantes no Brasil: Os judeus.São Paulo: Lazuli/Ed. Nacional, 2005