Eram duas e quinze de uma ensolarada tarde de primavera em Paris. Naquele dia, 25 de maio de 1926, dois homens se cruzaram na esquina dos Boulevards Racine e Saint-Michel. Um deles aproximou-se do outro e perguntou: “você é Symon Petliura?” – “Sou”, respondeu o outro. Ato contínuo, o primeiro matou-o com cinco disparos. Preso em flagrante, o atirador disse que seu nome era samuel schwarzbard e que ele acabara de vingar a morte de milhares de judeus, vítimas de pogroms na Ucrânia.
Em seu processo de naturalização para obter a cidadania francesa, ele adotou o nome de Samuel. Os judeus preferiam chamá-lo por três formas em iídiche, Shulem, Shmil ou Sholem. Mas, Schwarzbard ficou inscrito na história do povo judeu como Shmuel ou Shalom, os originais em hebraico. Talvez ele tenha sido um dos judeus mais polêmicos e aventureiros de todos os tempos. Até o dia em que assassinou Symon Petliura, líder ucraniano responsável por sucessivos pogroms, Schwarzbard teve uma existência tempestuosa a partir do seu comportamento como ser humano e por seu fervoroso engajamento nas correntes políticas da época em que viveu.
Shmuel nasceu na Bessarábia, no dia 18 de agosto de 1886. Quando criança, sua família mudou-se para a cidade de Balta, no sudoeste da Ucrânia, a 200 quilômetros de Odessa. Em 1900, a população de Balta abrigava pelo menos 50% de judeus, onde o pai de Shmuel instalou uma minúscula mercearia, enquanto o filho aprendia o ofício de relojoeiro. Ele era o único filho de Itzhak Schwarzbard e teve três irmãos mais velhos que morreram ainda crianças. Sua mãe, Haia, faleceu quando Shmuel tinha cinco anos de idade.
Em janeiro de 1905, um grande movimento cívico, de caráter espontâneo, promoveu uma marcha pacífica, contando com mais de um milhão de pessoas, que se dirigiu ao Palácio de Inverno do czar Nicolau II, em São Petersburgo, para reivindicar medidas como uma ampla reforma agrária, mais tolerância religiosa e o fim da censura. A guarda do palácio impediu que a multidão se aproximasse e metralhou-a sem piedade, originando um terrível massacre que ficou conhecido como “Domingo Sangrento”.
A indignação espalhou-se por toda a Rússia e Ucrânia. As populações se revoltaram contra o governo e provocaram graves distúrbios por todo o país, inclusive em Balta, aos quais aderiu o jovem Shmuel, àquela altura já pertencente ao Partido Comunista. Sua missão consistiu em organizar a defesa dos judeus de Balta para enfrentar o pogrom que, com certeza, adviria. Com a derrota dos revoltosos, as autoridades cometeram a aberração de condenar Shmuel a três meses de prisão “por provocação de pogrom”. No ano seguinte, ele partiu rumo ao Ocidente, já convencido de que a revolução de 1905 era o prenúncio de outra revolução que viria, maior e inevitável, tal como aconteceu em 1917, com a vitória dos bolcheviques.
Apesar das promessas dos novos dirigentes russos, já intitulados como soviéticos, de que não haveria perseguições aos judeus, Shmuel sentia o antissemitismo pairando no ar e aderiu ao movimento anarquista.
O anarquismo era, e ainda é, uma doutrina que preconizava a eliminação de quaisquer formas de autoridade estatal, de modo a constituir uma sociedade com liberdade total, porém baseada no princípio das responsabilidades mútuas. O anarquismo também defendia o fim do capitalismo e da propriedade privada. Foram essas crenças que levaram Shmuel a se dedicar ao anarquismo, em cujas fileiras ele mesmo se rotulava como um anarquista-machnovista, o que significava sua afinidade com os pensamentos dos líderes Nestor Machno e Kropotkin, ambos defensores de medidas anti-estatais ainda mais radicais. Shmuel viria a se definir como anarquista durante toda a sua vida, inclusive no título da autobiografia que escreveu, “Memórias de um Anarquista Judeu”.
Em 1909, com 23 anos de idade, juntou-se a um grupo de companheiros que roubaram um banco em Viena. Preso, foi condenado a cinco anos de trabalhos forçados por assalto a mão armada. Entretanto, após cumprir quatro meses da pena, conseguiu fugir e bandeou-se para Budapeste. Ali, ao lado de outros anarquistas, assaltou um restaurante. Foi expulso do império austro-húngaro e, no ano seguinte, instalou-se em Paris, onde conseguiu trabalho numa relojoaria, mas por pouco tempo, porque, em função de seu passado, estava sempre na mira da polícia, que não lhe dava sossego. Decidiu alistar-se na Legião Estrangeira, em 1914, logo no início da 1ª Guerra Mundial. Foi destacado para um regimento de infantaria e teve o batismo de fogo na vitoriosa batalha francesa de Carency, ao norte do país. Dois anos depois, no decorrer da guerra, foi gravemente ferido pela explosão de uma granada que afetou seus pulmões e lhe deixou o braço esquerdo praticamente inutilizado. Recebeu, então, a prestigiosa Cruz de Guerra. Depois de desmobilizado, em 1917, casou-se com Anna Render, jovem judia oriunda de Odessa. Naquele ano começavam, a alcançar assustadoras proporções os pogroms na Ucrânia. De 1917 a 1921, foram atacadas 530 comunidades judaicas na sequência de 887 pogroms.
Sem saber o que ali ocorria, Shmuel e a mulher embarcaram rumo à Rússia num navio francês, em agosto, dois meses antes da revolução bolchevique. No navio, por causa da pregação anarquista que fazia, os dois foram desembarcados à força numa cidade russa e entregues às autoridades do czar. Fugiram e foram procurar abrigo em Petrograd, onde Shmuel se alistou na guarda fiel a Lenin. Em 1919, confiaram-lhe a chefia de uma brigada de cavalaria, de nome Rochelle, formada por 90 judeus, que lutou bravamente, mas sem sucesso, contra o exército austro-húngaro e contra as tropas anti-comunistas, estas mais numerosas e mais bem equipadas, comandadas por Denikin e Petliura. A brigada que ele chefiava debandou e foi com amargura que viu entrarem em Kiev os vitoriosos exércitos adversários.
Foi no decorrer daqueles combates que Shmuel soube que 15 pessoas de sua família, homens, mulheres e crianças, haviam sido assassinadas durante um pogrom. Escreveu num livro de memórias que as imagens que presenciou da devastação humana e material abatida sobre os judeus jamais se descolaram de sua retina.
Em fins de 1919, foi com a mulher para Odessa, ainda sob controle dos anti-bolcheviques, a quem pensava poder enfrentar, de alguma forma. Foi denunciado por um ex-colega anarquista e escapou de ser preso, porque pôde embarcar num navio francês, na qualidade de veterano condecorado da 1ª Guerra. Em janeiro do ano seguinte, os dois estavam de volta a Paris onde Shmuel abriu uma oficina de consertos de relógios. Mas, por trás daquele homem pacato, entregue a seu ofício, fervia uma agitada consciência política. Sempre fiel ao anarquismo, tornou-se um ativista do movimento operário judeu da França. Mais tarde, reuniu-se com um grupo de correligionários emigrados da Rússia, entre os quais o próprio Machno que tanto o influenciara. Fundou, em Paris, a União dos Cidadãos Ucranianos, ao mesmo tempo em que requereu a cidadania francesa, que lhe foi concedida em 1925.
Symon Petliura nasceu em 1879 na cidade de Poltava, na Ucrânia central. Lutou no exército do Czardurante a 1ª Guerra Mundial e no fim do conflito foi eleito para o Rada, parlamento que proclamou a Ucrânia como uma república autônoma. Integrou um governo de cinco pessoas nomeadas pelo Rada, conhecido como diretório, o qual presidiu. Em 1920, já como chefe da República Popular da Ucrânia, acabou sucumbindo aos soviéticos que passaram a dominar toda aquela região. Petliura fugiu para Budapeste, depois para Viena e, por fim, encontrou seu porto seguro em Paris, na Rua Thénard, no Quartier Latin,onde morava num modesto apartamento com a mulher, Olga, e uma filha. Foi durante a liderança de Petliura no diretório que ocorreram os terríveis pogroms na Ucrânia, jamais registrados em tamanha escala e violência. Contando os massacres ocorridos naquele tempo, na Ucrânia e na Rússia, estima-se que o número de órfãos judeus tenha chegado a 300 mil almas.
No dia 25 de maio de 1926, Petliura tinha acabado de almoçar num restaurante do Boulevard Racine. Seguiu alguns passos, parou diante da vitrine da livraria Gilbert, ali ficou por alguns instantes e logo dobrou na direção do Boulevard Saint-Michel, quando foi interpelado por um homem de baixa estatura vestindo uma camisa branca. Era Shmuel Schwarzbard. Ele já sabia da presença de Petliura em Paris e fizera de tudo para achá-lo, até ser bem sucedido. Segundo pormenores publicados pela imprensa francesa, o diálogo entre os dois homens teria sido o seguinte: -“Você é Symon Vasiliovitch Petliura?” – “Sim, sou”. –“Então, defenda-se, seu bandido!” Petliura levantou a bengala quando começou a ser atingido pelos disparos, enquanto Shmuel gritava: - “Esta é pelos pogroms! Esta é pelos massacres! Esta é pelas vítimas!” Ao ser algemado pela polícia, reagiu com a maior calma: -“Podem me prender. Eu matei um assassino”.
A instrução do processo contra Schwarzbard durou um ano e cinco meses, no decorrer dos quais a opinião pública francesa se dividiu, assim como havia ocorrido a partir de 1894, durante os julgamentos de caráter nitidamente antissemita do capitão Dreyfus, militar judeu injustamente acusado de espionagem. Os que acreditavam na inocência de Dreyfus eram chamados de dreyfusards, assim como os defensores de Shmuel eram os schwarbarders, estes também submetidos à ação implacável dos antissemitas.
Dois jornais judaicos se defrontaram com relação a Shmuel. O L’Univers Israélite argumentava que o assassinato de Petliura se limitava a uma questão pessoal e que o autor do atentado não deveria ser considerado um herói. Já o jornal Parizer Haynt, editado em iídiche, fazia sua ardorosa defesa. De qualquer maneira, as duas publicações ressaltavam o fato de Shmuel ter lutado no exército francês e de ter sido condecorado por atos de bravura. Assinalavam, ainda, que ele era um legítimo cidadão do país ao qual estava assimilado por vontade própria. O jornal Paix et Droit argumentou que na medida em que a comunidade judaica apoiava Schwarzbard, ela se tornava cúmplice do assassinato. Ao mesmo tempo, o jornal em iídiche destacava a semelhança entre os processos de Dreyfus e o de Shmuel. Grande parte da imprensa francesa permaneceu neutra e o assunto serviu para dezenas de reportagens que tornaram a relatar com maior ênfase os pogroms ocorridos na Ucrânia, circunstância que favorecia Schwarzbard. Mesmo assim, publicações como L’Intransigeant, L’Action Fraçaise e Le Figaro não escondiam um viés antissemita em seus editoriais O caso ganhou repercussão internacional. Nos Estados Unidos, o presidente da Federação de Judeus Húngaros declarou que “a absolvição de Schwarzbard cobrirá de glória todo o mundo judeu”.
O assunto ganhou maior dimensão quando a defesa legal de Shmuel foi assumida pelo judeu Henri Torrès, militante da esquerda, então considerado o maior advogado do país. Nos anos seguintes ao julgamento de Schwarzbard, Torrès (1891-1966) viria a se destacar como um dos mais notáveis homens públicos da França. Foi eleito senador e a par de suas atividades políticas e jurídicas, alcançou sucesso como jornalista e dramaturgo. Quando os nazistas invadiram a França, Torrès fugiu para o Uruguai e depois para o Brasil, de onde foi expulso por suas conexões comunistas. Ademais, ele tinha uma motivação pessoal e especial para atuar na defesa do réu. Seu avô, Isaiah Levaillant, tinha sido o fundador da entidade “Liga Pela Defesa dos Direitos Humanos”, criada no decorrer do caso Dreyfus.
A estratégia de Torrès consistiu em arrolar mais de 80 testemunhas e de obter declarações favoráveis ao acusado de personalidades como Albert Einstein, o escritor Joseph Kessel, Leon Blum (que a partir de 1936 seria por três vezes primeiro-ministro da França) e Édouard Herriot (que também foi primeiro-ministro), Henri Bergson, Romain Rolland e Alexander Kerensky. Do ponto de vista legal, fez um impressionante levantamento sobre os pogroms, de modo a emocionar os jurados e colocar Schwarzbard mais na posição de acusador do que de réu.
E eis que entra em cena, na esteira de Torrès, a favor de Schwarzbard, a Viscondessa de Noailles (1902-1970), figura emblemática da aristocracia francesa. Nascida Marie-Laure Bischoffsheim, herdeira de grande fortuna, obteve o título de nobreza ao se casar com o Visconde de Noailles. Seus salões foram, durante 40 anos, os mais badalados e concorridos de Paris. Vivia cercada e admirada por artistas e intelectuais que se beneficiaram de seu mecenato, como Jean Cocteau, para quem patrocinou o filme “O Sangue de um Poeta”, e Luis Buñuel que lhe deveu o financiamento do filme “A Idade de Ouro”. A Viscondessa fez com que a nata da intelectualidade parisiense se posicionasse a favor de Shmuel e, assim, de certa forma coibiu parte da elite que, para não contrariá-la, eximiu-se de iniciativas ou de pronunciamentos antissemitas.
O julgamento de Shmuel Schwarzbard começou no dia 18 de outubro de 1927 e durou oito dias. Na argumentação inicial, Torrès disse que o crime de Shmuel não era um crime, era um justo ato de vingança pelos milhares de judeus vítimas de pogroms na Ucrânia. A promotoria, tendo à frente o competente Cesare Campinchi, argumentou que Petliura jamais tivera qualquer responsabilidade quanto aos pogroms e que o acusado agira na condição de agente remunerado da União Soviética, à qual interessava a eliminação do mais influente nacionalista ucraniano.
O réu foi acusado pela transgressão dos artigos 295, 296, 297, 298 e 302 do Código Penal francês, ou seja, assassinato premeditado sujeito à pena de morte. Indagado pelo juiz se se considerava culpado ou inocente, Shmuel exclamou: “Inocente!”
O promotor vasculhou todo o seu passado e perguntou as razões pelas quais ele havia sido preso na Ucrânia, em Viena e Budapeste. Longe da verdade, respondeu que aquelas prisões jamais tinham acontecido.
Na sequência do questionamento, não se comportou como um acusado atemorizado. Pelo contrário. Ergueu a voz e declarou com uma ponta de orgulho: “Durante meses andei pelas ruas de Paris com uma fotografia de Petliura no bolso. Imaginei que ele estivesse nas imediações do Quartier Latin. Encarava as fisionomias dos passantes na esperança de encontrá-lo. Até que naquele dia eu o avistei. Perguntei se ele era o Petliura, mas não tive resposta. Ele apenas levantou a bengala e eu percebi que tinha encontrado o homem certo. Dei-lhe cinco tiros de revólver. Quando um policial se aproximou, entreguei a arma e disse que tinha matado um grande assassino”! O juiz perguntou: “O senhor quer dizer que o crime foi premeditado?” Shmuel retrucou exultante: “Sim, foi, sim!”
A acusação apresentou 200 documentos e mais um considerável número de testemunhas, todas ucranianas, que afirmaram que Symon Petliura jamais havia incitado um pogrom. Chamou, em seguida, um transeunte inglês que, por acaso, havia presenciado o crime e que declarou: “Quando um dos homens caiu, o que portava a arma tinha uma expressão de angústia misturada com exaltação”. Outra testemunha da acusação insistiu em dizer que Petliura não tinha sido um antissemita. A maior parte das pessoas que assistiam ao julgamento protestou: “É mentira! É mentira!” Ao que Shmuel acrescentou: “Eles esfaquearam os judeus a sangue frio!” Mas a testemunha continuou aos gritos: “Eu insisto em dizer que o acusado é um agente de Moscou!” Schwarzbard levantou-se furioso do banco dos réus e gritou de volta: “Então prove o que você está dizendo”.
Das 80 testemunhas arroladas, Torrès chamou apenas sete. O depoimento mais marcante foi o de uma jovem judia chamada Haia Grinberg que trabalhara como enfermeira da Cruz Vermelha e cujos avós tinham sido vítimas dos massacres. Ela declarou que, de fato, nunca tinha visto Petliura agir, mas que muitos soldados perpetradores dos ataques lhe asseguraram que estavam agindo sob suas ordens. E continuou: “Jamais esquecerei os rostos daquela gente que levou seus entes queridos ao cemitério para enterrá-los numa vala comum. Foram trazidos para o hospital feridos sem pernas e sem braços ao lado de crianças mutiladas. Posso vê-los agora, diante dos meus olhos”.
Em seguida, Torrès, recorrendo a seus magníficos dons histriônicos, assumiu a palavra: “Senhores membros do corpo de jurados, confiram a liberdade a este homem que traz na fronte o estigma da tragédia de seu povo. Os senhores detêm hoje em suas mãos os destinos de milhares de seres humanos que estarão vinculados ao veredito que a França aqui vai pronunciar. Eu lhes exorto a praticar um verdadeiro ato de civismo proferindo a absolvição. Não lhes peço um perdão levado pela emoção. Se este homem for privado da liberdade, a França não será mais a França e Paris não será mais Paris!”
O júri recolheu-se para deliberar e retornou apenas 35 minutos depois. Shmuel Schwarzbard estava absolvido.
Dias depois, Henri Torrès recebeu a seguinte mensagem assinada por Albert Einstein: “Saúdo o advogado Torrès cuja sustentação magistral e vibrante, com senso de humanidade e de justiça, ergueu um monumento para a causa da lei que o tempo não vai apagar”. Um dos mais importantes desdobramentos do caso Schwarzbard teve como protagonista um jornalista francês, Bernard Abraham Lecache. Pouco depois do assassinato de Petliura, ele foi enviado para a Ucrânia como correspondente do jornal Paris-Soir.
Ao cabo de três meses de trabalho, reuniu documentos e depoimentos sobre os pogroms que serviram de base para a defesa de Torrès a quem de fato ele convenceu que assumisse a defesa de Shmuel. Em função do processo, Lecache fundou a Liga Internacional Contra o Antissemitismo, conhecida pela sigla Lica, a qual presidiu de 1927 a 1968, e que, depois da 2ª Guerra, teve importante papel na denúncia de franceses que haviam colaborado com os ocupantes nazistas. Em 1967, sempre batalhando contra todas as formas de racismo, a Lica exortou a opinião pública a apoiar Israel durante a Guerra dos Seis Dias.
Desde o julgamento até os dias atuais, tem sido questionado o verdadeiro papel desempenhado por Petliura durante os pogroms. Há seis anos, por ocasião do octogésimo aniversário do assassinato, o professor de história ucraniano Yury Shapoval escreveu um texto intitulado “O Symon Petliura que nós ainda não compreendemos”. Ele argumenta que inexistem provas concretas capazes de inserir Petliura no comando dos pogroms e que “assim como o sangue dos judeus foi derramado na Ucrânia o sangue de Petliura foi derramado, em Paris”.
Acrescenta que o julgamento de Schwarzbard estigmatizou Petliura como “pogromista” e antissemita e que, de forma incompreensível, as sólidas razões apresentadas pela promotoria não causaram impacto nos jurados. No fim do texto, admite que o assunto deve ser pesquisado com maior profundidade porque “a figura de Petliura tem sido objeto de inúmeras manipulações”, o que não impede que ele seja até hoje reverenciado na Ucrânia como um grande herói nacional.
Entretanto, o dito professor ignora o julgamento dos criminosos de guerra nazistas que teve lugar, depois da 2ª Guerra, em Nuremberg. Aquele julgamento deixou claramente instituído o princípio da responsabilidade. De fato, nenhum daqueles réus nazistas havia cometido um assassinato com as próprias mãos, mas era inegável a responsabilidade de todos com relação ao Holocausto e outros atos criminosos. Do mesmo modo, é categórica a responsabilidade de Petliura pelas ocorrências dos pogroms na Ucrânia. Nos anos que se seguiram ao julgamento, Shmuel dedicou-se a escrever relatos autobiográficos, poemas impregnados de sensibilidade e pouca ficção, tudo em iídiche, às vezes usando o pseudônimo Baal Hachaloimes (Senhor dos Sonhos).
Em 1929, requereu um visto para emigrar para a antiga Palestina (Eretz Israel), que foi negado pelos mandatários britânicos. Viajou, então, para os Estados Unidos, onde fez palestras em diversas cidades, assim como na França e na Dinamarca.
Voltou a Paris, aonde lhe veio a idéia de publicar uma grande enciclopédia judaica em idioma iídiche. Aconselharam-no a viajar para a África do Sul, onde poderia obter o capital necessário para a edição junto aos judeus que ali começavam a fazer fortunas.
Shmuel desembarcou na Cidade do Cabo em 1938, onde morreu um mês depois, no dia 3 de março, vitimado por um ataque cardíaco. Seu funeral, naquela cidade, foi acompanhado por espantosa multidão. Em 1967, em cumprimento a um desejo que havia deixado por escrito, seus restos mortais foram transferidos para Israel, onde repousam no Moshav Avihayl. Embora anarquista e internacionalista, seu coração jamais tinha deixado de bater pelo povo judeu. Em Beersheva e em Jerusalém, há ruas em sua homenagem chamadas Hanokem, O Vingador.
No final da autobiografia que escreveu, lê-se: “Eu abri um novo capítulo em nossa sombria e sangrenta história milenar. Com a cabeça erguida, exigimos o direito de existir em igualdade com todos os povos”.
Zevi Ghivelder é escritor e jornalista
No idioma russo, a palavra pogrom significa de forma genérica um ataque contra populações civis, incluindo destruições, assassinatos, saques de propriedades e estupros. Entretanto, a partir do final do século 19, o termo pogrom passou a especificar os ataques contra as aldeias e as populações judaicas na Rússia. Esses morticínios ocorreram em três grandes ondas: de 1881 a 1884, de 1903 a 1906 e de 1917 a 1919.
Pogroms na Ucrânia em 1919
Durante os dois a três primeiros anos que se seguiram à Revolução Soviética, os pogroms se sucederam com crescente frequência e violência na Ucrânia e na Bielorússia. Calcula-se que, entre 1918 e 1922, cerca de 150 mil judeus foram massacrados naquelas duas regiões. Os assassinos pertenciam ao Exército Branco, comandado pelo general Denikin, e ao Exército Popular da Ucrânia, comandado por Symon Petliura.
De 15 a 17 de fevereiro
Ataque desfechado pelas tropas de Petliura na província de Podolsk, com a ocorrência de decapitações, estupros e saques.
De 22 a 26 de março
Massacres e saques em Jitomir pela tropa de Petliura.
De 11 a 12 de maio
Morticínio e saques na província de Gorodish, perto de Kiev.
De 12 a 14 de maio
Morticínio e saques em Uman, perto de Kiev.
De 18 a 19 de maio
Morticínio e saques em Smela, perto de Kiev.
De 15 a 18 de junho
Massacre e saques comandados por Denikin em Karkov.
De 16 a 18 de agosto
Morticínio e saques em Progrebish.
De 2 a 8 de setembro
Morticínio e saques em Fastov, perto de Kiev.
De 28 a 29 de setembro
Novo ataque a Smela.