Ao longo da história, houve vezes em que os judeus colocavam em risco a vida para tocar o shofar, em Yom Kipur, junto ao Kotel. assim foi durante o mandato britânico na então palestina, como relata em suas memórias o rabi Moshe Segal.
Os ingleses haviam baixado os seguintes decretos, destinados a humilhar os judeus justamente no local mais sagrado de sua fé: é proibido rezar em voz alta para evitar que se perturbe os moradores árabes; é proibido ler de um rolo da Torá (significando que aqueles que oravam no Muro teriam que ir a uma das sinagogas no Bairro Judeu para fazer a leitura da Torá); é proibido tocar o shofar em Rosh Hashaná e Yom Kipur. O Governo britânico colocou mesmo um intenso policiamento no Kotel para garantir a aplicação das medidas. No Yom Kipur daquele ano de 1930, eu me encontrava no Muro, rezando. Durante o breve intervalo entre a oração de Mussaf e a de Minchá, ouvi de passagem umas pessoas cochichando com outras: "Onde teremos que ir para ouvir o shofar? Aqui, será impossível tocá-lo. Há tantos policiais quanto fiéis, orando...". O próprio comandante da polícia estava lá, para se assegurar de que os judeus não iriam - D'us nos livre! - fazer soar o toque longo e solitário que encerra o jejum.
Fiquei atento aos sussurros e pensei, com meus botões: Será possível privar-nos do som do shofar que acompanha a nossa proclamação da Soberania Divina? Será possível privar-nos do toque do shofar, símbolo da redenção de Israel? É bem verdade que o toque do shofar ao término do Yom Kipur era apenas um costume, mas, de qualquer maneira, "um costume judaico equivale a um mandamento da Torá"! Aproximei-me do Rabi Yitzchak Horenstein, que fazia as vezes de rabino de nossa "congregação", e lhe disse:
"Dê-me um shofar".
- "Para quê?"
- "Vou tocá-lo".
- "O que você está dizendo? Não está vendo os policiais?"
- "Pois eu vou fazê-lo soar".
O Rabino se afastou de mim, abruptamente, não sem antes lançar um olhar para o pequeno púlpito do lado esquerdo, bem no fundo da ruela. Logo entendi que o shofar estava lá dentro. Quando chegou a hora do toque do shofar, fui até a pequena armação de madeira e me inclinei sobre a mesma.
Abri a gaveta e fiz o shofar escorregar para dentro da manga do paletó, escondendo-o. Pronto; estava já em minha posse, mas, e se eles me vissem antes de eu ter a chance de soprá-lo? À época, eu ainda era solteiro e, pelo costume asquenazita, não podia usar o talit. Voltei-me para a pessoa que rezava ao meu lado e lhe pedi emprestado o dele. Meu pedido deve ter-lhe parecido estranho, mas, como os judeus são um povo bondoso, ainda mais nos momentos mais sagrados do mais sagrado dos dias, ele me entregou o seu xale de orações, sem dizer palavra.
Envolvi-me com o seu talit. Naquele momento, então, senti que havia criado um domínio privado, só meu. Em meu redor, prevalecia um governo estrangeiro que governava o povo de Israel até mesmo em seu dia mais santificado. E, apesar de estarmos no local mais santificado para a nossa fé, não tínhamos a liberdade de servir a nosso D'us. Só que, sob este talit, o domínio era outro, por completo; era outra realidade. Aqui não estava sob o domínio de nenhum outro a não ser o meu Pai Celestial. Aqui eu faria o que ele me ordenava - e não havia força na Terra que me impedisse de fazê-lo. Quando foram proclamados os versos finais da oração de Neilá - "Escuta, ó Israel", "Abençoado o Seu Nome" e "o Eterno é D'us Único" - agarrei o shofar e fiz soar um toque longo, nítido, triunfal. Tudo aconteceu muito rapidamente. Muitas mãos me agarravam. Tirei o talit que me cobria a cabeça e deparei-me com o comandante da polícia, que ordenou a minha prisão.
Levaram-me à kishla, a prisão da Cidade Velha, e um policial árabe foi destacado para fazer a minha guarda. Muitas horas se passaram. Ninguém me deu comida nem água para quebrar o jejum. À meia-noite, o policial recebeu ordens de me libertar - e o fez sem dizer palavra.
Foi então que eu soube que o Rabino-chefe da Terra Santa, Rabi Avraham Yitzchak Kook, informado da minha prisão, contatara imediatamente o secretário do Alto Comissariado sobre a Palestina, pedindo a minha soltura.
Ao ver recusado o seu pedido, afirmou que ele continuaria jejuando e não quebraria o jejum do Dia Santo até que eu fosse libertado. O Alto Comissário resistiu durante várias horas, mas, por respeito ao Grã-rabino, sem outra opção acabou cedendo.
Nos dezoito anos que se seguiram até a conquista árabe da Cidade Velha, em 1948, o shofar soaria no Kotel, a cada Yom Kipur, tocado por homens que sabiam que seriam presos por sua parcela de responsabilidade em reivindicar o nosso direito à mais sagrada de todas as nossas posses.
Os ingleses logo entenderam o significado daquele toque imponente; sabiam que era o que derrubaria, definitivamente, o seu mandato sobre a nossa terra, da mesma forma como as muralhas de Jericó tinham ruído ante o som do shofar de Josué. E fizeram tudo que estava em seu poder para evitá-lo.
Tradução e adaptação: Lilia Wachsmann
Este texto é um trecho das memórias do Rabi Moshe Segal (1904-1985), Chassid do movimento Lubavitch, muito atuante na luta pela libertação da Terra Santa do domínio britânico.
O texto esta publicado no site www.chabad.org