Morashá teve a grande oportunidade de conversar com o presidente da United Hatzalá, ocasião em que nos concedeu a entrevista abaixo:
Morashá – O sr. poderia descrever brevemente o que é a United Hatzalá?
Eli Beer – É uma organização composta de paramédicos e médicos voluntários treinados para responder, o mais rápido possível, a todo tipo de emergência médica em Israel.
Recebida a solicitação, a United Hatzalá entra em contato com os socorristas que se encontrem mais próximo da ocorrência, localizados por meio da tecnologia GPS. Após a notificação, esses profissionais, em veículo próprio ou um “ambiciclo1” da entidade, dirigem-se a quem precisa de assistência. Dentro das áreas urbanas nossos voluntários conseguem chegar em 90 segundos. Atendemos cerca de duas mil chamadas por dia.
O sr. poderia nos contar o que o levou a atuar em serviços médicos de emergência?
Eli Beer – Cresci em Jerusalém, perto de Yad Vashem, o Museu do Holocausto. Em 1978, aos seis anos, esperava o ônibus para voltar para casa quando o número 12 parou no ponto e, de repente, explodiu. Um terrorista deixara uma bomba dentro do veículo. Seis pessoas morreram e cerca de 50 ficaram feridas. Lembro-me dos gritos de socorro e de minha frustração por não poder ajudar, afinal era apenas uma criança. Durante anos, essa cena me atormentou; não conseguia tirá-la da cabeça. Perguntava-me o que teria acontecido com os feridos. Decidi, então, que trabalharia para salvar vidas.
Comecei, desde jovem, a atuar como voluntário em ambulâncias. Ficava, porém, frustrado com o tempo médio que levávamos para chegar ao local da emergência. Aqueles 17 minutos, mais ou menos, em muitos casos podiam levar a óbito. O trânsito, sobretudo nas áreas urbanas, era péssimo; as distâncias, grandes; em certas ocasiões, não havia veículos disponíveis e era preciso trazê-los de outras cidades. Não me conformava com o fato de que, às vezes, não chegávamos a tempo de salvar uma vida.
Quando tinha 16 anos, atendi a ligação de uma mãe pedindo para socorrermos o filho de sete, que havia engasgado. Levou 21 minutos o deslocamento até o local. Fizemos de tudo para salvar a criança. Um médico que estava por perto juntou-se à nossa equipe. Durante 45 minutos tentamos reanimar o menino, sem êxito. Foi um dos piores momentos da minha vida. Compreendi que o garoto provavelmente teria sobrevivido se esse médico tivesse sido alertado antes. Decidi que algo precisava mudar. Não podíamos voltar a ver um caso desses. Era absurdo saber que pessoas necessitando de atendimento de emergência eram obrigadas a aguardar a chegada de uma ambulância enquanto, nas proximidades, havia médicos, paramédicos e enfermeiros que só não as socorriam por não saberem da ocorrência. Foi nesse momento que decidi reunir um grupo de amigos e formar a primeira Hatzalá.
Foram essas experiências que me levaram a fundar a United Hatzalá, que, no início, se chamava apenas Hatzalá, palavra hebraica que significa “salvar, resgatar”. O objetivo era a manutenção de inúmeros voluntários espalhados por vários locais para poder atender imediatamente às ocorrências.
As empresas de ambulâncias foram contra a ideia. “Se alguém necessitar de ajuda, deve nos chamar”, diziam. Então, decidi comprar escâneres policiais e ouvir clandestinamente todas as chamadas de emergência. No início, os voluntários utilizavam walkie-talkies para se comunicarem entre si.
Eu tinha 16 anos. Pouco tempo após a fundação da Hatzalá, em Israel, ouvi uma solicitação: um homem havia sido atropelado muito próximo de onde eu estava. Cheguei ao local em menos de um minuto. A vítima, com um ferimento no pescoço, sangrava muito. Sem dispor de curativo, improvisei: tirei a kipá da cabeça e, com ela, estanquei a chaga. Até a chegada da ambulância, 20 minutos depois, fiquei com o ferido, que então foi levado ao hospital.
Dois dias depois, recebi um telefonema: “Você é Eli Beer?”. Respondi que sim, e meu interlocutor continuou: “Meu pai foi atropelado por um carro há dois dias, e você foi o primeiro a socorrê-lo. Ele acordou hoje de manhã no Hospital Hadassah e disse que, se não fosse você, não estaria vivo”. Fui visitar o acidentado e, ao vê-lo, chorei. Era um senhor já idoso com um número tatuado no braço: um sobrevivente do Holocausto. Entrei, e o homem, assim que me viu, levantou-se, deu-me um forte abraço e disse: “Obrigado por salvar minha vida.”.
Esse acontecimento me transformaria para sempre. Conforme constatei, o socorrista tem grandes possibilidades de êxito caso consiga alcançar o local da emergência em 120 segundos. Por outro lado, em certas situações, é mínima a probabilidade de sobrevivência da vítima se o profissional, mesmo que seja o melhor médico do mundo, não chegar a tempo.
As equipes da Hatzalá precisavam deslocar-se o mais rápido possível até o local da ocorrência e, ciente disso, encontrei nas motos a solução. Observava como os carros ficavam presos no trânsito enquanto os entregadores de pizza, por exemplo, driblavam os engarrafamentos. Então, resolvi criar motocicletas-ambulâncias, que apelidamos de “ambiciclos” e distribuímos por todos os bairros. Segundo pensei, com uma quantidade suficiente desses veículos, conseguiremos deslocar-nos com rapidez.
Sem dúvida, a United Hatzalá já chega aos locais de emergências antes das ambulâncias. Mesmo assim, o sr. estabeleceu a meta de alcançar em 90 segundos as pessoas em perigo. Como isso é possível?
Eli Beer – No início, erámos 15 voluntários e morávamos em um bairro chamado Beit Vagan. Constatamos que, com esse grupo, já conseguiríamos atender todas as emergências em 90 segundos, pois cada um estava em um ponto diferente e, quando recebíamos uma solicitação, o que estivesse mais próximo corria até lá. Hoje contamos com sete mil voluntários e temos a meta de chegar a 16 mil. Nosso objetivo é a presença em todos os bairros e em todas as ruas de Israel.
São vários os fatores que contribuem para nossa agilidade. Em primeiro lugar, mantemos uma rede de voluntários e, muito semelhante ao Uber, acionamos os que estejam mais perto do local do chamado. Além disso, nossos socorristas são muito motivados pela satisfação de ajudar o próximo, de cumprir uma mitsvá. Nossa rapidez deve-se ainda ao uso de motocicletas, bicicletas e carros, bem como a nossa grande capilaridade. Por fim, utilizamos tecnologia de ponta para localizar os voluntários que se encontrem mais próximo de cada emergência. Direcionamos parte das doações ao aprimoramento constante desses recursos, que também nos permitem detectar a origem do chamado caso o próprio solicitante desconheça sua localização. É por isso que conseguimos chegar à maioria dos lugares em 90 segundos.
Esse é o propósito da United Hatzalá. Somos a resposta médica mais rápida do mundo.
De que forma a organização utilizou a tecnologia para inovar e melhorar os esforços de salvar vidas?
Eli Beer – Como já relatei, começamos com walkie-talkies e, com a evolução dos recursos, passamos para os pagers e beepers. No início, todos os voluntários recebiam todas as solicitações para avaliarem se estavam perto ou não da ocorrência. Em 2006, descobri o GPS nos telefones, a tecnologia mais avançada na época. Podendo encontrar o voluntário mais próximo de cada local de emergência, reduziríamos ainda mais o tempo de resposta. Assim, nem todos teriam que ouvir todas as chamadas. Fizemos algo inovador. Adotamos tanto essa tecnologia quanto esse conceito antes do Waze e do Uber. Com isso, ajudamos milhões de pessoas e contribuímos para salvar centenas de milhares.
À luz dos trágicos casos em que voluntários foram feridos ou sequestrados enquanto salvavam vidas, o sr. pode relatar o papel da United Hatzalá durante os eventos críticos de 7 de outubro?
Eli Beer – Foi o dia mais penoso da minha vida e da de todos os judeus do mundo. Por volta das 6h30, ouviram-se alertas sobre mísseis no sul de Israel, onde tínhamos 600 voluntários. Assim que chegaram os primeiros pedidos de socorro, respondemos com prontidão. Voluntários de todos os kibutzim, de todas as comunidades – de Sderot, de Ashkelon, de Ofakim, de Netivot, de Nir Oz, de Be’eri, Kfar Aza e Kerem Shalom – foram notificados de alguma ocorrência. Apesar de estarmos acostumados a esses ataques, a magnitude deste foi inesperada.
Perdemos na hora alguns voluntários. Um dos primeiros foi o paramédico árabe Awad, que, de plantão no festival Supernova, correu para socorrer uma jovem judia e foi assassinado juntamente com ela. Outro, Bar Koperstein, que também estava no evento e, em vez de fugir, permaneceu no local para tratar dos feridos, foi levado à força para Gaza. Dolev Yehud foi sequestrado no Kibutz Nir Oz. Sua esposa, grávida à época, deu à luz o quarto filho do casal em novembro. Maor Shalom, policial das forças especiais do Shabak, foi morto em confronto com terroristas. Um rabino, Chaim Sassi, de Sderot, foi baleado três vezes enquanto tentava socorrer um policial, mas, graças a D’us, usava um colete à prova de balas e sobreviveu.
Apesar dos perigos, deslocamos 1.200 voluntários para o atendimento às vítimas. Muitos foram em seu próprio carro. Acionamos ainda 50 ambulâncias e dois helicópteros. Conseguimos salvar mais de 500 pessoas. Infelizmente, alguns de nossos voluntários lutaram sozinhos contra terroristas. Estavam protegendo vidas – uma prova mais de sua coragem e comprometimento inabalável.
Aos seis anos de idade, o sr. já havia testemunhado o impacto de um ataque terrorista e, quando adulto, foi o primeiro a responder a vários outros. Poderia descrever como os acontecimentos de 7 de outubro se destacaram dos demais e quais desafios ou experiências vivenciou naquele dia?
Eli Beer – Como voluntário, presenciei horrores: acidentes, afogamentos e ataques terroristas. No entanto, em 35 anos de atuação em serviços médicos, ajudando a salvar vidas na United Hatzalá, nunca vi nada comparável ao 7 de outubro. Nunca imaginei que algum dia vivenciaria algo tão monstruoso. Foi além de tudo o que já tinha visto, um ataque brutal visando a humilhar cada um dos judeus e assassinar qualquer pessoa sem distinção de sexo, idade ou nacionalidade. Ao tomar conhecimento das atrocidades, tive que fazer escolhas difíceis, como permitir a entrada de voluntários e de minha própria família em áreas de risco.
Minha esposa Kitty dirigiu-se para Sderot, Be’eri e Kfar Aza. Minha filha Abigail, meus genros Aaron e Meir, todos paramédicos, também foram. Acredito que tenha sido a decisão correta. Apesar da recomendação da polícia contra nossa ida a essas áreas devido ao perigo, decidimos adentrá-las de qualquer maneira, pois muitas vidas dependiam da prontidão do socorro. Se não tivéssemos ido, teria morrido muito mais gente.
O 7 de outubro levou a United Hatzalá a rever sua abordagem para responder a emergências futuras?
Eli Beer – A maior lição desse dia foi nunca subestimar os adversários e estar sempre preparado. Com a participação no socorro em desastres ao redor do mundo, aprimoramos nossa habilidade no atendimento a emergências. Como nos voluntariamos para prestar assistência durante catástrofes em países como Haiti, Nepal, Marrocos, Ucrânia ou mesmo Turquia, após um terremoto, nós da United Hatzalá adquirimos muita experiência e aprendemos a responder adequadamente a tragédias de grande magnitude. Entretanto, o 7 de outubro foi além de qualquer situação que conseguíamos imaginar. Foi além do concebível, mas nossa experiência ajudou muito. Cientes de que tais situações podem se repetir, estamos focados na preparação para ocorrências com tantas vítimas. Ampliaremos nossos estoques de equipamentos e suprimentos médicos, que acabaram naquele fatídico dia; construiremos um centro logístico, de treinamento e duplicaremos o tamanho da United Hatzalá. Esperamos que nunca volte a acontecer nada parecido com o 7 de outubro, mas temos que estar sempre preparados para qualquer eventualidade.
A United Hatzalá, com seus voluntários de várias religiões, demonstra a diversidade da sociedade israelense. Refletindo sobre o incidente em que seu pai teve um ataque cardíaco e foi assistido por um voluntário de origem árabe, como você responderia às críticas que acusam Israel de apartheid?
Eli Beer – A United Hatzalá representa a verdadeira essência de Israel, a única democracia do Oriente Médio. Entre os 22 países árabes que nos rodeiam, nenhum outro dá oportunidades iguais a todos os habitantes. Todos os israelenses, os dois milhões de origem árabe inclusive, têm as mesmas possibilidades. A United Hatzalá é um perfeito exemplo disso, pois, de seus sete mil voluntários, 750 são árabes. Judeus, árabes, cristãos e beduínos de ambos os sexos trabalham lado a lado para salvar vidas.
No 7 de outubro, o primeiro voluntário da United Hatzalá a ser assassinado pelos terroristas era árabe. Outros da mesma origem foram feridos. Tarek, um médico beduíno, foi raptado e libertado no mesmo dia pelo exército israelense. Os que criticam nosso país não sabem o que dizem. As críticas que nos rotulam como um “estado de apartheid” são infundadas e refletem o antissemitismo dos que as fazem.
Apesar dessas acusações, continuamos a promover a ajuda mútua na United Hatzalá, onde voluntários de todas as sociedades demonstram o verdadeiro espírito de Israel. Estou orgulhoso dessa diversidade e acho que quem quiser entender nosso país deveria olhar para a nossa organização.
Tendo ultrapassado sua meta inicial de ajudar seis milhões de pessoas, quais são as novas aspirações ou metas da United Hatzalá?
Eli Beer – Após superarmos esse objetivo inicial, estabeleci novas metas para a organização. Primeiramente, quero um voluntário em cada rua de Israel. Isso significa expandir o número de socorristas para 16 mil, o que requer investimentos em capacitação e equipamentos custosos. Agora temos sete mil e gostaríamos de preparar pelo menos mais dois mil por ano até atingir essa nova meta. Cada novo voluntário nos custa US$ 10.000, incluindo treinamento, equipamento, desfibrilador e colete à prova de bala.
A segunda meta é profissionalizar ainda mais nossa equipe. Para isso, planejamos a construção de centros de simulação inspirados por um modelo que observei ao auxiliar a Hatzalá do Brasil. Nessa ocasião, visitei uma universidade que mantém uma instalação desse tipo utilizada também para treinamento. Meu sonho é construir uma semelhante em Israel. Por fim, nosso terceiro objetivo é globalizar o modelo da United Hatzalá para incentivar sua adoção por outras comunidades, além das judaicas. Essas ambições refletem nosso compromisso com a melhoria contínua e a propagação da nossa missão humanitária em nível mundial.
Por falar nisso, a Hatzalá do Brasil faz um trabalho incrível como organização independente, não vinculada à United Hatzalá.
São essas minhas inspirações do tikkun olam2 que quero deixar como legado.
Como as pessoas podem ajudar a United Hatzalá?
Eli Beer – Agradeço sua pergunta. Nosso objetivo é salvar mais vidas e, para isso, precisamos de mais recursos. A organização em Israel depende de doações, e a arrecadação é direcionada ao treinamento de socorristas, bem como à compra de tanques de oxigênio, desfibriladores, ambiciclos e ambulâncias. Também buscamos recursos para a construção de um centro de treinamento.
Quem quiser apoiar a United Hatzalá pode acessar nosso portal, www.israelrescue.org. Se alguém quiser tirar dúvidas, pode entrar em contato comigo pelo endereço eli@israelrescue.org. Nossa página também tem muitos vídeos interessantes. Compartilhem esse material, assim como nossa história, nas redes sociais.
1 Motocicletas com equipamentos necessários para salvar vidas.
2 Tikkun olam – a missão de melhorar o mundo, de aperfeiçoar a obra de D’us.