Notáveis coincidências sobre o calor humano e devoção.


Pedágios humanos", como um dos cínicos jornalistas os descreveu, furioso com o constante aumento no número de pedintes e indignado de se ver repetidamente, invadido, violado em sua privacidade.

Eu, no entanto, sentia a coisa de outra forma. Depois que um conhecido nosso - altivo, respeitado, profissional e abastado - teve um súbito ataque de nervos, desapareceu de casa e foi encontrado por detetives, uma semana mais tarde, vivendo sob os trilhos do Terminal da Grand Central, minha perspectiva de vida mudou para sempre.

"Se aconteceu com ele, pode acontecer com qualquer um de nós", sussurrava uma voz dentro de minha alma. "Será que você é arrogante ao ponto de pensar que poderá passar incólume pelas vicissitudes da vida?"

Guiada pelos ensinamentos espirituais eu repetia "sigo pelas veredas do Senhor", comecei a ver essas pessoas sofridas com um olhar diferente, mais brando, mais meigo.

Assim, nunca dei menos do que um dólar para esses pobres coitados. Por trabalhar em Greenwich Village, que parece densamente povoado por essa gente (talvez em virtude de os residentes do bairro serem conhecidos por sua liberalidade e tolerância), tinha encontros freqüentes com essas almas penadas.

Não era raro migrarem de minha bolsa várias notas de um dólar para parar em suas mãos suplicantes. Quando começava a me parecer demais, eu me repreendia: "Você hesitaria em comprar para si própria uma batida de frutas ($3,50), uma fatia de pizza e um refrigerante ($2,25), umas revistas para ler no fim de semana ($10)? Então não é mais importante deixar que este pobre coitado coma feito gente?"

E aí, para me sentir ainda mais cheia de compaixão, dizia em voz baixa o meu mantra predileto: "Sigo pelas veredas do Senhor".

Certa noite, estava na porta do edifício do meu escritório, na Rua 12 com a Broadway, esperando pelo meu marido que viria me buscar de carro. Para variar, como era seu antigo hábito, ele estava atrasado. Sombras do anoitecer se aproximavam e criaturas bizarras - vestidas de couro preto, com enfeites de metal, cabelos vermelho púrpura, três argolas no nariz e uma infinidade de tatuagens, a quem eu jamais vira durante o dia, começavam a encher as ruas. Propositadamente comecei a enumerar mentalmente os atributos positivos e os inúmeros méritos de meus marido para me distrair da idéia de que seu atraso costumeiro já me aprontara poucas e boas.

"Por favor, dona, me arranja um troco?" A voz, suave e suplicante, interrompeu o meu devaneio.

Diante de mim se postara um mendigo esfarrapado, de modos mansos, apologético. Seus olhos eram meigos, bondosos, doces. Apesar da vida dura, sua face era luminosa e radiante. Emanava uma certa aura que me fez sentir segura. Entendi, na hora, o que meu mestre espiritual queria dizer quando os chamava de "anjinhos". Este homem obviamente pertencia a essa classe.
Enfiei a mão na bolsa e comecei a tirar uma nota de um dólar. Estava acomodada ao lado de uma de cinco. Senti as têmporas latejarem diante do conflito que se instalava dentro de mim.

"Ei, um dólar está prá lá de bom!" urgia uma voz em meu interior. "Quantas pessoas nem chegam a dar isso? Não seja boba; puxa logo esse dólar; é mais do que suficiente!"
"Ei", repreendia outra voz, "vai jantar com o maridinho num bom restaurante? Vai custar pelo menos uns cinqüenta dólares. Será que este pobre coitado não merece comer alguma coisa, também?"
Dei-lhe a nota de cinco.

Sua boca se retorceu num largo sorriso, seus olhos se acendendo.
"Obrigado, dona!", disse, efusivamente. "Você não imagina o que isso é prá mim. Há dias não boto nada que preste na boca".
Concordei com a cabeça e ele começou a se afastar. Um minuto depois, deu meia-volta e colocou-se a meu lado.

"Queria lhe agradecer e apertar sua mão", anunciou magnanimamente, estendendo-me a mão com certo cavalheirismo. Olhei desconfiada para sua mão imunda, encardida. Estava na cara que não via a cor da água há muitos dias, que andara vasculhando latas e monturos de lixo. Pensei nas bactérias, nos germes, nos venenos que poderiam escorrer da mão dele para a minha.

Pensei também na humilhação que sentiria se eu recusasse sua tentativa de me agradecer, recobrando a humanidade há tempos abandonada. Minha cabeça ordenava "Recuse!", meu coração se recusando a atender. Vacilante, estendi a mão, que ele agarrou com um aperto de mãos firme, caloroso. Ele sorriu outra vez e se afastou.

E aí voltou, de novo.
"Qual o seu nome?", perguntou mansamente.
Me pegou de surpresa. Durante todos aqueles anos em que andava distribuindo esmolas entre os mendigos de Nova York, a maioria deles tinha agradecido, alguns haviam tocado a aba do chapéu em frangalhos, um ou outro até tinham dito "Você é uma boa pessoa", mas nenhum, jamais, perguntara meu nome.

Confiava naquele homem, mas, por uma razão qualquer que até hoje não consigo explicar, menti-lhe dizendo que me chamava Alexandra. Não costumo mentir, e ainda me pergunto por que o fiz, mas menti, sim, ao dizer "Alexandra, me chamo Alexandra".

"Alexandra", ele ponderou. "Não vou me esquecer de você, Alexandra. E sabe duma coisa, tenho certeza que um dia a gente ainda vai se encontrar". Sorri, diante da tentativa empenhada mas ingênua daquele homem em querer fabricar uma conexão entre nós. "Eu também tenho certeza", respondi, fingida.

"Bom, então, até...", ele disse, sem entusiasmo, parecendo relutar em ir embora. O carro do meu marido se aproximou.
"Qual é o seu nome?", perguntei, como que refletindo atrasada, ao ver o carro.
"James", ele respondeu.
"Bom, então, adeus, James, e boa sorte".
"A gente se vê", ele disse, sorrindo.
"É, claro, no dia de são nunca", pensei.

Durante toda a noite fiquei pensativa. Pensei na troca que ocorrera entre James e eu, e com que empenho ele havia tentado dar-me algo em troca. Havia pessoas em minha vida que não eram pedintes e que podiam aprender com esse homem umas quantas coisas sobre como retribuir aos outros. Enquanto imaginava isso, exatamente como o mestre espiritual às vezes deixava implícito, eu sentia que havia algo quase sagrado acerca de um mendigo como o James.

Dois anos mais tarde, profundamente soterrada em meus pensamentos, desci da calçada em um cruzamento perigoso da Broadway com a Rua 42. Ouvi uma buzina e um grito de mulher. Eu me colocara bem na mira de um carro que vinha, como um bólido, em minha direção.
"Alexandra, cuidado!", gritou uma voz me alertando, mas a minha mente não conseguiu registrar o significado daquele nome.

De repente, senti uma mão forte me puxar e me tirar da rua. O carro passou, chispando, a milímetros de onde eu tinha estado um segundo antes. Voltei-me para olhar para meu benfeitor.
Era o James.
Encarei-o, incrédula e estarrecida. Ele, no entanto, não parecia nada surpreso.
"Eu falei que a gente ia se encontrar de novo", disse, sorrindo meigamente.
Estendeu a mão, novamente - a mão na qual eu, vacilante, colocara a nota de cinco dólares; aquela mão que eu apertara com tanto desconforto.
Aquela mão, firme, forte, que salvara minha vida.
Apertamos as mãos, uma vez mais, e James desapareceu na multidão.
"Anjinhos", a mão Divina os chamara.
Como pudera ele saber?

Tradução: L. Wachsmann

Bibliografia:
Baseado no texto de Kelly McAdam
do livro "Pequenos Milagres de
Amor e Amizade".