Michal, filha de Saul, foi a primeira e mais querida dentre as esposas do rei David. Foi ela que lhe salva a vida ajudando-o a fugir do pai, Saul e, conta o Midrash, que para celebrar este feito dela, David escreveu o Salmo 59.
Michal tinha somente 12 anos quando conheceu David. Era de extraordinária beleza. Herdara o porte e a beleza do pai, Saul, que era tido como o mais alto e mais belo homem de Israel.
... Era um daqueles dias apavorantes, sombrio silêncio envolvendo o palácio, que estremecia quando os gritos angustiosos do Rei ecoavam pelos corredores desertos. Inesperadamente, ouviram-se melodiosos arpejos. E o Rei Saul se calou. Voltou o burburinho usual. As duas filhas de Saul, Merab e Michal, intrigadas, vieram por trás das cortinas procurar quem tocava a milagrosa música. Era David, um moço lindo, de cabelos ruivos.
Posteriormente, sucedeu o espetacular encontro de David com o gigante Golias. Todos os homens de Israel temiam o gigante e o rei Saul fizera uma promessa: "Aquele que o matasse, receberia do rei grandes riquezas e este lhe daria sua filha em casamento...".
David foi o único que se apresentou. Só se falava no intrépido pastor que, sem o capacete de bronze e sem a couraça com que Saul o vestira - que ele rejeitara por lhe estorvar os passos e movimentos - e tendo por arma apenas um estilingue, atrevia-se a enfrentar o temível filisteu. O máximo que se esperava de sua petulância era que ele voasse pelos ares, com um simples sopro do feroz gigante. Mas David prevaleceu sobre Golias. Ao voltar vitorioso para Saul, trazia nas mãos, pendurada pelos cabelos, a volumosa cabeça de Golias. O povo exultava com a vitória do pastor arrojado.
Ao ver David vencer Golias dessa maneira extraordinária, Saul começou a temê-lo, porque D'us estava com o jovem; e a inveja tomou conta de seu coração. Mesmo assim, o rei o nomeou comandante das tropas de elite e David passou a guerrear contra os filisteus onde quer que Saul o enviasse. Ao voltar, sempre vencedor, as mulheres de todas as cidades saíam pelas ruas cantando e dançando, para festejar a vitória: "Saul feriu os seus milhares, porém David, as suas dezenas de milhares".
A canção enfureceu Saul, cujo espírito estava perturbado. Via em David um rival. Urgia eliminá-lo. Procurava a oportunidade de lhe atribuir algum ato de rebeldia para poder liquidá-lo. Tornou-se esta a sua constante obsessão. Um dia, "assaltado por espíritos malignos" provocados pela inveja, enquanto David dedilhava a harpa para o acalmar, Saul alvejou-o com a lança tentando matá-lo. David, porém, desviou-se, rápido duas vezes, e a arma cravou-se na parede.
Frustrado, Saul usou de um estratagema - mandaria David guerrear contra os filisteus, contando que estes o matariam. Promete, como prêmio, dar-lhe em casamento Merab, sua filha mais velha. E lá se foi David lutar mais uma vez com milhares de homens ferozes, prontos para a desforra. Mas quando chegou a hora determinada, Merab foi dada por mulher a Adriel, da cidade de Abel-Meholá. Em vez de se rejubilar com as vitórias de David, a crescente popularidade do jovem recrudescia o ódio do rei Saul. Foi quando soube que Michal, sua filha, amava David, e isto o agradou. O fato de sua filha amar o inimigo não era notícia boa, mas ele calculou, erradamente, que poderia usá-la para conseguir a captura de David pelos filisteus.
Planejou preparar-lhe uma cilada, seguro de que não teria como escapar. Disse Saul: "Serás hoje meu genro; dar-te-ei em casamento minha outra filha". Como David não respondeu, mandou secretamente seus servos para dizer ao jovem que o rei lhe estava muito afeiçoado e todos os servos o amavam. David, que se sentira desprezado ao ver Merab dada a outro homem e que tampouco recebera, ao vencer Golias, as riquezas prometidas por Saul, respondeu aos enviados: "Quem sou eu, pobre e humilde, para me tornar genro do Rei? Não disponho dos meios necessários para prover um dote digno de uma princesa". Saul retruca, dizendo que não queria dote. Queria que o jovem guerreiro ferisse cem filisteus, vingando a morte dos filhos de Israel. Sua verdadeira intenção era fazer cair David nas mãos dos inimigos, pois esperava que D'us não o ajudasse, já que estaria agindo em proveito próprio.
A proposta era sedutora; era uma honra se tornar membro da família real. E lá se vai ele, novamente com seus homens, para o campo de batalha. E, dessa vez, feriu duzentos, não apenas cem. Antecipando os arautos que traziam a boa notícia, Michal foi correndo levá-la ao pai. David voltava trazendo não somente cem, mas duzentas provas dos filisteus liquidados. Então Saul teve que dar sua filha a David; afinal, era o Rei e sua palavra precisava ser mantida. O casamento foi festejado sobretudo pelo povo. Saul cedeu a filha, mas permaneceu firme em sua idéia de se livrar do novo genro. As vitórias de David haviam aumentado seu medo; crescia sua desconfiança de que era David a quem o profeta Samuel ungira para tomar seu lugar, como Rei de Israel, Melech Israel. E seu rancor, até então mantido em segredo, se tornou público. Quando se viu novamente atacado pelos "maus espíritos", e David se pôs a tocar harpa para o serenar, o Rei, pela segunda vez, procura assassiná-lo atirando-lhe a lança. David, milagrosamente, escapa do atentado e corre para casa.
Saul envia mensageiros à casa de David para impedir sua fuga e trazê-lo à sua presença, na manhã seguinte, quando o mataria. Não queria fazê-lo diante da filha.
Mas Michal, que amava David, não se prestou a armar a cilada ao esposo. Ao perceber que os emissários do rei estavam em atalaia, em volta da casa, soube num instante que lá estavam para prender David e que ele corria risco de vida se não fugisse para bem longe. David, que enfrentava com destemor os combates com os filisteus, não ousava desafiar Saul.
E Michal, sua esposa, fiel ao marido, salva-lhe a vida, ajudando-o a saltar pela janela, em fuga. Em seguida, para lhe dar tempo de chegar a um lugar seguro, colocou sobre o leito um objeto volumoso que parecia um boneco e o cobriu com as colchas para dar a impressão de que David dormia. Desta forma, enganaria os emissários reais, fazendo-os pensar que descansava. No dia seguinte, vieram outros mensageiros de Saul incumbidos de levar David à sua presença. "Está doente", disse-lhes Michal, apontando para o leito que escondia um vulto sob as cobertas.
Saul, sabedor do insucesso, esbravejou: "Voltem e o tragam, enfermo que seja, para que eu o mate com minhas mãos". Voltaram os homens dispostos a cumprir as ordens do Rei. E descobriram que o suposto enfermo nada mais era do que um boneco em couro com que Michal, ardilosamente, os enganara. Ao saber do ocorrido, o rei Saul confrontou a filha, perguntando-lhe por que o havia traído, por que o enganara de forma tão humilhante? Por que deixara partir seu inimigo?
E Michal voltou a morar no palácio. Por muitos anos não viu David. Quando Saul soube que David se casara com outras duas mulheres, interpretou o fato como se ele "tivesse repudiado a filha do rei". Anulou, pois, seu casamento, e a deu a outro homem. E "Saul deu sua filha Michal, mulher de David, a Palti, filho de Layish". Foi, no entanto, um casamento "no papel", não realizado, de fato. Viviam sob o mesmo teto, mas não como marido e mulher.
Assim se passaram vários anos até Michal voltar a se reunir com David. Este já era Rei de Judá, tinha várias esposas e filhos. Saul morrera em batalha. De seus filhos, somente restava vivo Ishboshet, que, apoiado por Abner, comandante do exército de Saul, era rei sobre Guiland. Após desavenças com Ishboshet, Abner propõe uma aliança com David. Foi então que este respondeu a Abner: "Eu farei uma aliança contigo, porém sob uma condição: não verás a minha face se primeiro não me trouxeres Michal, filha de Saul".
David envia, então, mensagem a Ishboshet, pedindo para si, oficialmente, sua primeira esposa: "Dá-me a minha mulher, Michal, a quem desposei em troca de 100 filisteus". Ishboshet concordou, mandando Abner desincumbir-se da missão. Levou-lhe Michal, que tinha a seu lado, o marido, Paltiel, que a acompanhava, chorando.Este mudara seu antigo nome, Palti, para Paltiel, porque D'us o ajudara a não pecar. Tempos depois, o Rei David sai vitorioso de uma intensa batalha com os filisteus. Restava-lhe trazer de volta ao coração do povo judeu a Arca Sagrada, contendo as Tábuas da Lei do Sinai.
Um dia, Michal ouviu música e vozerio do lado de fora. Assomou à janela. Era a Arca Sagrada que David transportava para Jerusalém, exultante, ao som do shofar. E, com surpresa, ela o viu entre a gente que dançava e saltava, em júbilo, diante da Arca.
E o Rei vestia um simples efod de linho, uma veste especial em honra do evento sagrado. Ante aquela cena, Michal recua, escandalizada. Considerava impróprio para um rei portar-se como homem do povo, ainda que diante da Arca Sagrada.
Acabados os festejos, já tendo o Rei colocado a Arca do Eterno em seu lugar, feito as tradicionais oferendas de paz e abençoado todo o seu povo, David volta ao palácio. Michal o enfrenta, então, indignada: "Quão honrado foi o rei de Israel, hoje? Como assim te comportas? Um Rei a se exibir, com partes do corpo descobertas, diante de seus servos e servas, como um homem do povo qualquer...?"
Mas David lhe revidou, com emoção: "Dancei e saltei perante o Senhor, D'us, que me escolheu - antes a mim do que a teu pai ou a teus irmãos - para ser David, Melech Israel, rei de Israel. E, diante do Rei dos Reis e em Seu Louvor, a muito mais do que isto me teria humilhado"...
Sultana Levy Rosenblatt é escritora. Vive em McLean, Virgínia, EUA.