Mesmo em sua hora mais negra, no exílio, os judeus encontram a Presença Divina em suas sinagogas e casas de estudos. 'Assim diz o Senhor, D’us de Israel: Ainda que os tenha lançado para longe entre as nações, e ainda que os tenha espalhado pelas terras, todavia Eu lhes servirei de santuário, por um pouco de tempo, nas terras para onde foram'. (Ezequiel 11: 16)

Em 1791, após a Revolução francesa de 1789 ter sacudido a França e a Europa com seu lema “Liberdade, igualdade e fraternidade”, os judeus que viviam em território francês foram emancipados, tornando-se cidadãos franceses e passando a ter total liberdade de culto.

Hoje, mais de duzentos anos se passaram desde que os revolucionários franceses, após uma série de hesitações e prorrogações, decretaram a emancipação de todos os judeus da França e Napoleão criou estruturas administrativas para definir o judaísmo frente à nação francesa.

O judaísmo, na França,vive em sua plenitude, neste século 21, apesar de nuvens sombrias do anti-semitismo estarem toldando o brilho de suas sinagogas. A tradicional sinagoga, o Beit Haknesset dos judeus, torna-se a partir daquele período um monumento, uma instituição que muito nos revela sobre a vida dos judeus franceses e da cultura judaica, sob o contexto da emancipação. Como não se impressionar com a vitalidade de uma minoria – apenas 90 mil pessoas – que consegue edificar 250 sinagogas em um período de meros cem anos após sua emancipação? Hoje, a fisionomia do judaísmo francês se transformou. Não são mais as crianças das regiões da Alsácia-Lorena ou de Bordeaux que são a sustentação da comunidade judaica. São os filhos e netos dos sobreviventes da Shoá, do Holocausto; são os refugiados e repatriados da África do Norte que reavivaram um judaísmo quase destituído de cor e de vida.

Os judeus na história da França

A história dos judeus na França foi marcada por períodos de perseguição, expulsão e restrição de liberdade, sem direito à cidadania. A situação começou a mudar após a Revolução de 1789, culminando com a nova constituição que passa a vigorar dois anos mais tarde e, entre outros atos importantes, emancipa a população judaica do país. Uma situação bastante diversa da vigente durante o Antigo Regime, quando a maioria dos judeus não existia oficialmente. Às vésperas da Revolução Francesa, havia cerca de 40 mil judeus no país: os sefaraditas ou portugueses, mais abastados e integrados, viviam no sul e no oeste da França, na região de Bordeaux; os ashquenazitas – estimados em cerca de 30 mil – com menos recursos, viviam no norte e no leste do país, a região da Alsácia-Lorena, falavam iídiche e mantinham uma estrutura comunal autônoma. A partir de 1791 os judeus passam ser considerados cidadãos franceses israelitas.

Ao tomar o poder, Napoleão Bonaparte tenta impulsionar o processo de emancipação e integrar, ainda mais, as comunidades judaicas na vida francesa. Após concluir a reorganização da Igreja Católica e Protestante, na França, mantendo-as sob o controle do estado, o imperador desejava regularizar os assuntos judaicos de maneira semelhante. Queria definir a posição dos judeus frente ao estado e estabelecer um novo conjunto de instituições judaicas. Como parte desse processo convoca uma “Assembléia dos Judeus Notáveis” e, em 1807, um “Grande Sinédrio”, composto por rabinos e intelectuais leigos.

Em 1808, logo após a reunião do Grande Sinédrio, um edito imperial estabelece, na França, um sistema de consistórios - juntas de rabinos e leigos, para administrar os assuntos judaicos. De acordo com este modelo, o Consistório Central de Paris, nomeado pelo Ministério, supervisiona os outros consistórios distritais. Além de manter e gerir as sinagogas e outras instituições religiosas e zelar por sua ordem, os consistórios fiscalizam a aplicação dos decretos e encarregam-se da distribuição dos impostos. Com a lei de 8 de fevereiro de 1831, o culto israelita passa a ser equiparado ao das outras religiões e recebe um orçamento do Estado.

Durante todo o século 19 os consistórios desempenham um papel primordial na vida religiosa e administrativa dos judeus da França. Atuam como interme-diários obrigatórios entre o Estado e as comunidades, recebem autorização para adquirir terrenos e construir edifícios em nome das comunidades e chegam, mesmo, a ser considerados como “donos” das sinagogas.

As sinagogas após a Emancipação

As sinagogas construídas na época muito revelam sobre a vida dos judeus emancipados, com seus dias de glória e de derrota. Pode-se ver a arquitetura posta a serviço da redefinição ideológica pela qual passava o judaísmo francês. A vida judaica abre-se à modernidade, sob o efeito da mudança de seu status e de sua mentalidade. Com a emancipação, as comunidades fazem das sinagogas um símbolo da sua suposta “regeneração” e de seu desejo de se inserir no contexto da França revolucionária e no ambiente das cidades em que viviam. Ao passar da condição de exilado para a de cidadão, os judeus deixam de lado a prática de construir sinagogas simples, às vezes escondidas em ruas pequenas e secundárias. Em seu lugar, surgem obras monumentais que retratam o seu sentimento de liberdade e atestam a sensação de finalmente estarem integrados e instalados no país.

Os rabinos do século 19 aprovam a construção de sinagogas com tamanha arte e pompa, pois no judaísmo é apropriado adornar e embelezar a casa de orações como mais uma forma de se honrar a D’us. O uso da arte nas sinagogas é um mandamento justificado, Hidu mitzvá, segundo o qual deve ser adicionada uma dimensão estética a todos os objetos religiosos.

Na realidade, não existe um estilo arquitetônico que possa ser chamado de “tradicionalmente judaico”, na França nem em outros países, talvez em virtude dos séculos de opressão e de expulsão que não permitiram aos judeus desenvolver um estilo próprio na construção de seus locais de oração. Por isso, é interessante ver como, na ausência de modelos e regras precisas, os arquitetos criaram uma nova concepção ao construir as sinagogas, adotando novos estilos, usando fachadas expressivas, novos motivos decorativos. Procuram inspiração na Antigüidade bíblica e na única referência disponível em seus livros sagrados, em suas canções nostálgicas, em sua memória coletiva: o Templo de Salomão, em Jerusalém, duas vezes destruído e sempre presente nos sonhos e anseios do povo judeu.

As sinagogas construídas a partir de 1791 passam a ser produto de uma curiosa mistura de fundamentos judaicos com a arquitetura ocidental, fortemente impregnada de elementos vindos do cristianismo. Na França, atingem o seu esplendor no final do século 18. Os resultados foram extraordinários: um conjunto de monumentos esplêndidos considerando-se a modéstia de uma comunidade que contava aproximadamente 90 mil pessoas no fim do século 19.

A maioria das sinagogas construídas entre 1791 e 1830 seguem o estilo do “schil”- apesar de suntuosas, no interior, as fachadas eram simples, discretas e quase imperceptíveis. A única sinagoga que foge a este padrão é a de Bordeaux.

O schil, como os judeus ashquenazim chamavam o seu local de orações e de estudos, geralmente era uma construção simples, seguindo a situação que lhes fora imposta antes da emancipação. Essa designação se aplicava, sobretudo, a um local interno, situado muitas vezes no andar superior de uma casa construída no meio de um contexto hostil, numa rua de judeus, num vilarejo da Alsácia-Lorena ou dentro de um gueto. Às vezes, sob o mesmo teto, podiam-se encontrar uma sala de orações, uma de estudos, a mikvê e um forno comunitário para assar as matzot para Pessach.

Foi determinante na evolução deste estilo, encontrado em grande parte da França pré Revolução, a proibição que pesava sobre os judeus de construir sinagogas e a grande intolerância das comunidades no seio das quais viviam. Um exemplo dessa animosidade foi a ordem do Conselho Real de Colmar, em 1726, de destruir sinagogas que haviam sido construídas sem a devida autorização.

Nas regiões da Alsácia, Lorena, Nancy, Metz e outras, as sinagogas seguiam tal padrão de simplicidade. Exceção constituíram as de Nice e do Condado de Venaissin, perto de Avignon, hoje, Vaucluse. Apesar de as mesmas imposições se aplicarem aos judeus dessas áreas, suas casas de oração eram interiormente muito suntuosas. O Condado de Venaissin era um estado papal: um enclave, dentro da França, cedido ao Papa. Este confinou os judeus da região em pequenos guetos, em Carpetras e Cavaillon. Este último era conhecido como o gueto de “la Carrière” (termo provençal que significa “rua”).

Mesmo depois da emancipação, uma certa intolerância subsistia nessas regiões. Isto é comprovado pelo fato de as sinagogas raramente serem de frente para a rua. Em Venaissin, as sinagogas sofrem restrições apesar de construídas dentro das “Carrières”. Mas, mesmo assim, o schil de Carpentras e o de Cavaillon tornaram-se famosos por sua linda decoração, com seu echal (o altar central) elevado e a ricamente ornada cadeira de Eliahu ha-Navi, suspensa.

A magnífica sinagoga de Cavaillon foi reconstruída em 1772, com o nome de Contadine. A sinagoga era dividida em três níveis: o mais baixo era usado para o ritual de lavagem das mãos, netilat iadaim, além de abrigar um forno para assar matzot, os pães ázimos de Pessach. Contrastando com essa simplicidade funcional, os níveis superiores tinham luxuosa decoração em estilo rococó. É muito interessante ver esse tipo de construção, em vários andares, para as funções comunitárias; especialmente em Carpentras, onde, por trás de uma estreita fachada, muito simples, encontra-se verdadeiro complexo, com vários edifícios.

Contudo, é importante mencionar que, apesar de todos os esforços, a emancipação se deu lentamente. Até 1822, os judeus de Paris não possuíam sinagogas nem outros edifícios comunitários de porte. Espalhavam-se entre várias casas de orações e de estudo, pequenas e dispersas, localizadas principalmente no bairro do Marais. O schil da rua Saint Avoye, construído em 1796, recebeu o pomposo título de “sinagoga consistorial”. No entanto, e apesar de ser maior que as outras, contém apenas 107 lugares para homens e 85 para mulheres.

Somente em 1819 os judeus de Paris receberam a autorização real para a construção da primeira sinagoga da cidade, na rua Notre Dame de Nazareth. Era chegada a hora desta justificada e esperada permissão. Em 1822, a comunidade celebra oficialmente, com grande pompa, a inauguração de uma magnífica sinagoga, como que a testemunhar que o período de discrição nos edifícios comunitários judaicos havia terminado.

O sistema de consistórios, criado em 1808 por Napoleão, perdura até nossos dias, com modalidades um pouco diferentes. Para os rabinos e os consistórios, o sentido representado pelas três denominações talmúdicas – Beit Haknesset, Beit Hatefilá e Beit Hamidrash, respectivamente, casa da assembléia, casa das rezas e casa dos estudos – permanece o ponto primordial das sinagogas. Mas estes importantes conceitos, de oração e estudo em congregação, eram transformados por um caráter oficial e pomposo. E estas transformações são evidenciadas pela evolução na arquitetura das casas de oração francesas.

Já quase no fim do século 19 surgem as sinagogas financiadas pelos mecenas judeus, como a família Rothschild. Surgem belos trabalhos dos arquitetos judeus, entre os quais Aldrophe, Ulmann, Poutremoli, Bechmann e Hess. Deve-se aos Rothschild o financiamento da construção das sinagogas de Paris e da província: Boulogne, Neuilly e Chasseloup. Outras famílias abastadas oferecem preciosos objetos de culto, candelabros, adornos e mantos de Torá, bem como fino mobiliário. A Sra. Furtado Heine, dedicou-se à construção da sinagoga de Versalhes. O banqueiro de origem bordolense Daniel Iffla financia a construção do templo de rito sefaradi em Paris, na rua Buffault (1877) e de várias outras sinagogas, em Arcachon (1879), Bruyerès (1903), Tours e Tunis. Grandes famílias sefaraditas como Allegri, Astruc, Sciama e Paz, também participam na construção de sinagogas. Com a chegada dos judeus da África do Norte, várias sinagogas mais, de rito sefaradi, são construídas: Neuilly, Saint Lazare e outras.

Na grande sinagoga da rua da Victoire segue-se o rito ashquenazi. Em 1857, os judeus poloneses fundam nova sinagoga, na rua des Rosiers, em Paris.

Nas últimas décadas, graças à chegada dos judeus do leste, sobreviventes do Holocausto, e dos da África do Norte, chegou a 800 mil o número de judeus na França. Talvez, os fundadores dessas casas de oração achassem “exótica” a forma como é, hoje, praticado o culto nessas sinagogas, segundo os costumes das comunidades que as freqüentam. Mas, não se pode negar que são uma imagem maravilhosa da sobrevivência do judaísmo francês.

As sinagogas da emancipação são monumentos que têm sua presença concreta, inscrita na vida das cidades. Elas atestam a liberdade de consciência e a igualdade cívica enfim reconhecidas aos judeus. “Como são eloqüentes, essas rezas mudas que o talento do artista soube animar!”, proclamava o grande rabino Zadoc Kahn diante da sinagoga da rua da Victoire.

Ou como afirmou, certa vez, o Grão-Rabino Joseph Sitruk: ...”Não é significativo lermos, até hoje, nas sinagogas que se transformaram em bibliotecas ou centros culturais, trechos como os Salmos ou a Gênese, que atestam a vida que há em nossas orações, que vão além das paredes de uma comunidade? O interior da sinagoga – construção e reunião de fiéis, verdadeira escada de Jacob – como o interior de nós mesmos – não seria esta a imagem do santuário que cada um deve erguer ao Eterno, em seu coração? E o culto exterior, não seria a expressão do culto interior? ...Em nossas sinagogas em todos os vilarejos, de Bayonne a Bergheim ou Schalbach, as palavras de Isaías proclamam aos olhos do mundo: “Minha casa será chamada de Casa de Orações para todas as nações” (Isaías 56:7).