A criação da República da Holanda, em fins do século 16, é de vital importância para os perseguidos de toda a Europa, principalmente para os conversos que escolheram Amsterdã, o mais importante centro econômico da nova república, para lá se estabelecer.
Abastados e influentes, os judeus portugueses tiveram papel preponderante no desenvolvimento da cidade. Ansiosos para resgatar seu judaísmo à sombra de leis tolerantes que lhes permitissem exercer sua fé, criaram uma vigorosa comunidade sefaradita que serviu de modelo para outras posteriormente surgidas em lugares tão diversos como o Brasil, Londres, Curaçao, o Sudeste da França e certas ilhas do Atlântico.
A "Nação Judaica Portuguesa"
"Nação Judaica Portuguesa" ou simplesmente "homens de Nação" - era assim que judeus portugueses se auto-designavam. Muitos podiam remontar suas origens aos 120 mil judeus que, em 1492, após a determinação dos Reis Católicos de conversão forçada ou expulsão da Espanha, buscaram refúgio em Portugal. Porém, lá não estavam a salvo. Três anos mais tarde, quando o rei português, D. Manuel I, contrata casamento com a filha dos Reis de Espanha, entre as cláusulas nupciais constava a expulsão de Portugal dos seus mouros e judeus.
Desejoso de extirpar o judaísmo sem, no entanto, dispensar a habilidade e recursos de seus integrantes, D. Manuel I lhes "permite" optar pela conversão. Mas, determinados a não abandonar sua fé, preparam-se para deixar o país. As ocorrências daquele terrível 1497 marcariam, para sempre, os judeus de Portugal. Tiveram sua saída vetada pelo rei que, a seguir, ordena sua conversão forçada. Milhares foram arrastados à força às pias batismais. Muitos continuaram a praticar a religião em segredo, enquanto, de público, professavam a fé católica.
Para apaziguar os ânimos dos "novos cristãos", o rei promete que durante 20 anos ficaria proibido qualquer questionamento sobre a vida religiosa dos conversos. Essa "generosidade" real foi prorrogada até 1534. Foram 40 anos que se revelaram fundamentais para a preservação, entre os "Homens da Nação", da religião e identidade judaica.
Em Portugal, diferentemente do que ocorria na Espanha, os conversos - tanto os que, em segredo, se mantinham fiéis ao judaísmo quanto os que, de fato, adotaram a fé católica - formavam um grupo coeso e organizado. Há registros da existência de rotas de fuga e fundos para auxilio aos necessitados. Uniram-se principalmente para impedir a vinda e instalação do Tribunal da Inquisição naquela terra. Conseguiram-no até 1536, quando o Vaticano autoriza a instalação do Santo Ofício em Portugal. Quatro anos mais tarde, quando o Tribunal entra em funcionamento e o primeiro auto-de-fé é realizado em Lisboa, grandes levas abandonam o país. Contudo, a grande saída ocorre após 1580, ano em que Filipe II, de Espanha, sobe ao trono português e a Dinastia Filipina tem, até 1640, o mando sobre o Império da União Ibérica.
Absolutista e poderoso, Filipe II era o mais devotado entre os monarcas católicos da Europa. Desconfiava dos conversos, detestava os judeus e a Reforma Protestante, que via como uma ameaça à fé católica e a seu império. Assim sendo, logo após subir ao trono, em 1556, Filipe II iniciou forte repressão aos protestantes dos Países Baixos. Os excessos espanhóis provocaram a eclosão de uma revolta liberal, em 1568. Iniciava-se a "Guerra dos 80 Anos" (1568-1648), como ficou mais conhecida a Revolta Holandesa. Em 1579 as províncias do norte, protestantes e burguesas, criaram a República Unida da Holanda, proclamando, dois anos depois, sua autonomia perante a monarquia espanhola.
Segundo estatutos da nova República, nenhum de seus habitantes ou visitantes seria importunado por motivos religiosos. A Holanda era a primeira nação onde a liberdade de credo era garantida por lei, onde os perseguidos por religião ou política poderiam encontram abrigo.
O intuito, naquela Europa dilacerada por guerras religiosas entre protestantes e católicos, era assegurar a cristãos de diferentes denominações a liberdade de culto. Mas, felizmente, este estatuto acabou beneficiando também os judeus e a Holanda surge como um porto seguro para os conversos ibéricos, já fartos da perseguição e violência espanhola. Além do que, apesar das várias gerações que já se haviam passado e do grande número de conversos que já tinham perdido o vínculo com suas raízes judaicas, muitos ainda nutriam, no fundo do coração, o desejo de poder voltar a professar abertamente seu judaísmo.
Conversos se estabelecem
Amsterdã foi fundada no século 13. Sabe-se que, durante a Idade Média, havia na região algumas comunidades judaicas, mas, expulsões e perseguições, principalmente por volta de 1349, tinham posto fim à vida judaica local. Somente após a criação da República da Holanda, atraídos pela tolerância religiosa e oportunidades econômicas, os conversos portugueses começam a se estabelecer na florescente cidade.
Há relatos sobre a chegada de várias famílias proeminentes em 1593. Instalaram-se em Vlooienburg, ilha no rio Amstel, que, mais tarde, ficaria conhecida como o "bairro judeu". Ansiosos para voltar ao judaísmo e dispostos a reaprender e a seguir as Leis judaicas, os recém-chegados mandam trazer para Amsterdã o rabino Moshe Uri Halevi, de Emden. O rabino torna-se peça- chave nesta volta dos conversos ao judaísmo. Imediatamente circuncisa os homens, entre os quais, Jacob Tirado, um dos grandes líderes entre os "Homens da Nação". Começam a se organizar serviços religiosos nas residências, usando um Sefer Torá que o rabi Moshe trouxera consigo. Ainda hoje, este Sefer constitui evidência tangível dos primórdios da vida comunitária dos judeus portugueses de Amsterdã.
São escassos os registros sobre os primeiros anos. Acredita-se que, em 1596, dezesseis judeus portugueses se tenham reunido na casa de Don Samuel Palache, embaixador marroquino, com o intuito de celebrar Yom Kipur. No ano seguinte, o converso português Emanuel Rodriguez Vega torna-se cidadão de Amsterdã. E, a partir de 1598, as autoridades permitem aos conversos a compra da cidadania.
Segundo relatos da época, os recém-chegados despertaram a desconfiança das autoridades, temerosas de que se tratasse de "papistas espanhóis", pois seus modos e suas vestimentas faziam-nos parecerem fidalgos. No Yom Kipur de 1597 (1) as autoridades entraram na residência onde estava reunida a congregação. Encontraram todos orando, imersos em profunda concentração. Prenderam o rabino e vários dos presentes, suspeitando que fossem conspiradores "papistas". Coube a Jacob Tirado explicar às autoridades que eram conversos, recém voltando ao judaísmo após escapar das garras da Inquisição espanhola. Assegurou ainda serem "homens de paz", que haviam trazido consigo riquezas e que suas atividades e empreendimentos já estavam, de fato, contribuindo para a prosperidade do país.
Não se sabe exatamente o que responderam a Tirado. Presume-se, no entanto, que lhe tenham dado garantias, pois contratos e registros de tabeliões revelam o aumento da atividade judaica na cidade. Estima-se que em 1599 já houvesse uma centena de judeus portugueses estabelecidos em Amsterdã, havendo documentos oficiais de 1602 mencionando os serviços religiosos judaicos em casa do rabino Moshe Uri Halevi.
Na Holanda, diferentemente do que ocorria em outras nações, lei alguma segregava ou discriminava os judeus; podiam casar-se, comprar e herdar propriedades. Tampouco eram obrigados a viver em guetos, nem a usar qualquer tipo de vestimenta que os diferenciasse do restante da população. É bem verdade que quando os conversos chegaram a Amsterdã, não podiam professar sua religião em público, podendo apenas fazê-lo em suas residências. Mas, longe da temida Inquisição, puderam, aliviados e sem medo, abandonar seu disfarce católico.
Renasce a "Nação Portuguesa"
Em 1606, os "Homens da Nação", liderados por Tirado e pelo rabino Moshe Uri Halevi, fundaram a Congregação Bet Yaacov. Dois anos mais tarde foi fundada outra, a Neve Shalom. As duas congregações prontamente criaram instituições benemerentes que ofereciam auxílio e empréstimos a necessitados, educação judaica, ajuda para dotar moças para o casamento, sustento para órfãos, doentes e enterro dos desfavorecidos. Criaram também um fundo para pagar o resgate de judeus presos. Há registros, do ano de 1610, sobre o primeiro contrato de abate de carne casher.
Documentos comerciais da época mostram que, apesar de haver inúmeros espanhóis, a maioria dos membros das congregações era constituída de portugueses. Até hoje, os costumes da comunidade refletem sua origem. Todos os avisos, assim como a Oração pela Casa Real, são realizados em português.
Após gerações, renascia a "Nação Judaica Portuguesa", forte e vibrante. Forte se tornara, também, a necessidade de expressar abertamente sua religião, algo que as autoridades relutaram em aceitar. Em 1612, negaram à comunidade a permissão de erguer uma sinagoga. As duas congregações passam, então, a alugar casas, transformando-as em casa de oração. O primeiro reconhecimento oficial ocorreu em 1614, quando a comunidade recebeu autorização para comprar uma área para construção de um cemitério, em Ouderkerk, nos arredores da cidade. O campo santo, até então, situava-se em local bem afastado de Amsterdã. E, em 1616, foi estabelecido o Talmud Torá, responsável pela educação judaica dos membros da kehilá.
O que ainda faltava era uma definição clara de seu status legal perante as autoridades holandesas. Apesar de não haver grande entusiasmo da Igreja Reformada pela presença dos judeus, a municipalidade de Amsterdã estava mais do que satisfeita. Os judeus se haviam tornado indispensáveis para a economia local.
Em 1616, a República holandesa encarregara a Hugo Grotius, o maior jurista da Europa, conhecido como o "pai da legislação internacional", a produção de um instrumento jurídico que definisse o status legal dos judeus em seu território. Entre suas conclusões, Grotius reafirmara que a presença dos judeus era desejável e deviam ter liberdade para praticar sua religião, não sendo obrigados a usar roupas especiais. A República, então, delega as decisões relativas à presença judaica aos respectivos governantes de cada cidade. Impunha, no entanto, algumas condições. Por exemplo, não era facultado aos judeus ocupar cargos no governo, como tampouco o era a quem não fosse da Igreja Reformada. Não podiam tentar converter os cristãos, nem com eles casar ou ter filhos.
Em 1618, uma disputa na comunidade Bet Yaacov leva à criação de uma terceira congregação portuguesa, a Bet Israel. Somente 20 anos mais tarde, em 1639, as três congregações sefaraditas se consolidariam, criando a Talmud Torá. A espaçosa sinagoga Bet Israel, na rua Houtgracht, foi escolhida como sendo o lugar de culto da congregação unificada. Ampliada, recebeu uma elegante fachada, com imponentes colunas. Gravuras da época retratam seu rico interior e exterior. Foi usada como principal centro de culto até 1675, quando foi inaugurada a Esnoga. A partir de então foi destinada a outras atividades comunitárias, até ser demolida, em1931.
O número de judeus e sua importância cresciam, em Amsterdã. A cidade se tornara abrigo para grandes massas asquenazitas vindas da Alemanha e de países da Europa Oriental. Em 1635, os judeus asquenazim fundam sua própria congregação e inauguram, em 1671, a Grande Sinagoga, também chamada de Shul. O edifício faz parte, atualmente, do Museu Histórico Judaico de Amsterdã. Em 1675 foi inaugurada, na frente do Shul dos asquenazim, a magnífica Sinagoga Portuguesa de Amsterdã, a Esnoga, até hoje usada como local de orações. Estas duas imponentes sinagogas formavam o coração do maior complexo de sinagogas do mundo. Nunca antes, na Diáspora, os judeus tiveram a permissão de construir templos tão monumentais e tão visivelmente identificáveis. Algo ainda mais surpreendente é o fato de que, até meados do século 18, os católicos da cidade eram obrigados a realizar seus serviços religiosos em residências.
A "Idade de Ouro"
Seria uma inverdade dizer que os "Homens da Nação" foram os responsáveis pela Idade de Ouro holandesa, mas é incontestável sua importante contribuição à expansão comercial desse país. Ademais de terem trazido capital financeiro, trouxeram sua habilidade comercial e sua vasta rede de contatos, que se estendia pelos quatro cantos da terra.
Em decorrência de seu empenho e dedicação, aliados a um contexto econômico favorável, conseguiram construir fortunas que os ajudaram a erguer uma florescente comunidade. De uma participação relativamente modesta, no início do século 17, logo adquiriram importância no comércio internacional. Destacaram-se na importação de tabaco, seda e pedras preciosas, principalmente na lapidação e comercialização de diamantes, ramo relativamente novo, livre das restrições impostas a outros setores por guildas monopolizadoras. Os judeus portugueses de Amsterdã desenvolveram o complicado processo de aquisição da matéria-prima da Índia e do Brasil. Dispunham, também, de suficiente estrutura comercial para abrir mercado para um produto praticamente novo, o açúcar.
Após a invasão de Pernambuco pela Companhia das Índias Ocidentais, em 1630, uma leva de judeus deixou Amsterdã rumo ao Recife. Lá, em 1636, fundaram a primeira sinagoga das Américas. Vinte anos mais tarde, quando os portugueses expulsaram os holandeses do Brasil, junto se foram os judeus. Com a experiência adquirida em Pernambuco, ao retornar a Amsterdã contribuíram ativamente para a transformação da cidade em principal centro mundial do refino e comércio açucareiro.
Integração e conflitos
Os judeus se misturaram à comunidade holandesa. Viviam lado a lado com personalidades famosas, como Rembrandt; seus rabinos eram respeitados pelas autoridades e membros mais ilustres da sociedade. Sob o ângulo da economia, eram fundamentais para o funcionamento da Bolsa de Valores de Amsterdã. Diz-se, até, que no Shabat a Bolsa não operava. Além de grandes comerciantes, foram os principais financiadores das Companhias das Índias Ocidentais e Orientais. Apesar de sua total integração à vida econômica e social local, os "Homens da Nação" estabeleceram uma comunidade ortodoxa, extremamente comprometida com as Leis e ensinamentos judaicos. Tinham, garantida por legislação, relativa autonomia na administração interna dos assuntos comunitários. Determinavam portanto, suas próprias regras na solução das disputas comerciais ou privadas; e possuíam suas próprias instituições e entidades beneficientes.
Prósperos e influentes, eram, quase sempre, comerciantes, médicos ou intelectuais. Nas primeiras décadas do século 17, surgiram no seio da comunidade os primeiros estudiosos e rabinos - entre eles, os renomados rabinos Isaac Aboab da Fonseca e Menasseh Ben Israel - erudito, escritor, diplomata e fundador da primeira tipografia hebraica nos Países Baixos. Médicos famosos, como Joseph e Ephraim Bueno, cuidavam das maiores autoridades da República. Alguns dos mais ricos comerciantes de Amsterdã eram judeus portugueses, entre eles Abraham Pereira e seus filhos. Comprometido por inteiro com o judaísmo, Pereira era um dos grandes sustentáculos da vida comunitária. Outro deles, Isaac de Pinto, conselheiro do William de Orange IV e acionista da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, fundou a sinagoga da Congregação Bet Israel, a qual sozinho financiou, até sua morte.
A vida e o trabalho destes homens foram característicos de muitos outros que tinham orgulho de se declararem, abertamente, "portugueses da Nação Hebraica". Homens tão importantes no seio da sociedade holandesa, que, durante muito tempo, foram sinônimos os termos "português" e "judeu".
A criação de uma nova comunidade não se faz sem conflitos, principalmente com uma trajetória tão sofrida como a vivenciada pelos judeus ibéricos. Amsterdã se tornara local onde os conversos tinham a oportunidade de assumir livremente o judaísmo; o governo não os impedia e as instituições judaicas lhes davam todo o apoio, se necessário. Mas a retomada da prática religiosa era um processo difícil, que muitos não suportaram. Enquanto os primeiros a chegar a Amsterdã tinham raízes judaicas mais profundas, as levas subseqüentes eram bem menos comprometidas, tendo apenas conhecimentos rudimentares - e se defrontaram com uma sociedade extremamente tradicional e praticante. Nem todos tiveram a força e a perseverança necessárias. Alguns não conseguiam "despir-se" da prática de conversos e assumir sua identidade judaica; havia também os oportunistas que viam a volta ao judaísmo como passaporte para bons negócios. Alguns desistiam e voltavam, desiludidos, aos países de origem.
Houve casos famosos de judeus que, ao expor idéias contrárias às principais crenças do judaísmo, foram colocados em "chérem", isto é, foram banidos da comunidade. Entre estes, Uriel da Costa e Baruch Spinoza. Um dos maiores racionalistas da filosofia moderna, Spinoza, filho de um abastado converso português, é banido, no verão de 1656, por defender idéias totalmente contrárias aos ensinamentos judaicos, que apregoavam que "D's era o mecanismo imanente da natureza e do universo" e a "Torá, uma obra metafórico-alegórica"!
O fim da Idade de ouro
Em 1675, quando a magnífica Esnoga foi inaugurada, havia cerca de 2.500 sefaraditas vivendo na cidade; aproximadamente 2.000 asquenazitas e 500 lituanos, somando cinco mil judeus, em meio a uma população de 200 mil habitantes.
As duas últimas décadas do século 17 são consideradas o auge da abastada comunidade judaica sefaradita de Amsterdã, cuja influência podia ser facilmente vista em Hamburgo, Londres, Curaçao, Suriname e Nova York.
Mas, pairavam mudanças no ar. Chegava ao fim a "idade de ouro" da Holanda, levando consigo a época áurea da comunidade judaica portuguesa local. Com a perda de sua posição de principal nação marítima e comercial do mundo, a Holanda entra, no século 18, em período de séria estagnação.
A comunidade sefaradi perde sua pujança, mas não abandona seus costumes e tradições. Até hoje, rezam constritos na esplendorosa Esnoga, em Yom Kipur, à luz de mil velas...
Bibliografia
Kaplan, Yosef - Les Nouveuaux-Juifs D´Amsterdam, The Esnoga, a Monument to Portuguese-Jewish Culture,1991, Ed. D'Arts Amsterdam Gottheil, Richard e Seeligmann, Sigmund , Amsterdam, Jewish Enciclopaedia.com
(1) Há discrepâncias sobre a data exata da ocorrência. Alguns cronistas afirmam que o fato ocorreu em 1602.