A África do Sul protagonizou um dos episódios mais marcantes da história contemporânea, ao se tornar palco da luta contra o racismo e pátria de um dos personagens mais importantes do século 20, Nelson Mandela.
Atualmente, o país constrói o principal polo político e econômico do continente africano, contando com a colaboração de uma comunidade judaica dinâmica e organizada. São cerca de 70 mil judeus, numa presença registrada há cerca de 600 anos.Na busca por uma rota à Índia, navegadores portugueses dobraram o Cabo da Boa Esperança, para chegar ao Oceano Índico. Nos anos de 1488 e 1497, Bartolomeu Dias e Vasco da Gama alcançaram o feito histórico, com a presença, em suas naus, de cartógrafos e astrônomos judeus.
Mas foi em 1652, com os holandeses construindo a primeira colônia europeia em solo sul-africano, que se registrou a chegada de judeus à região. A liberdade religiosa veio, no entanto, apenas na primeira metade do século 19, à medida que crescia a influência britânica. A Cidade do Cabo recebeu sua sinagoga pioneira, a Gardens Shuls, em 1841, com os serviços iniciais realizados ainda na residência de Benjamin Norden, um integrante da comunidade.
O desenvolvimento econômico, aliado à crescente liberdade religiosa, atraiu a imigração judaica. A vida comunitária se organizava, sobretudo, sob os domínios britânicos, onde havia mais liberalismo nos costumes e na economia. Uma minoria de judeus vivia em áreas sobretudo rurais, controladas pelos bôeres, descendentes de holandeses que falam um idioma próprio, o africânder.
Em 1880, as autoridades locais contabilizavam 4 mil judeus na região. A cifra saltou para cerca de 40 mil em 1914, numa expansão impulsionada pelo início da corrida do ouro, após 1886. A emigração judaica se originava da Lituânia, e a cidade de Johanesburgo, destino da maioria deles, chegou a ganhar o apelido de “Jewburg”.
Uma guerra sangrenta, entre 1899 e 1902, definiu a disputa entre ingleses e bôeres pelo controle da região, com a balança pendendo, de forma definitiva, para Londres. Com o final do conflito, os judeus alcançaram então plenos direitos civis, o que, no entanto, não significou uma situação imune ao antissemitismo e à discriminação. Em 1930, uma lei passou a limitar a imigração judaica à África do Sul, e, sete anos depois, novas regras praticamente inviabilizaram a entrada de refugiados judeus.
A ascensão de Adolf Hitler ao poder fez com que mais de 6 mil judeus, entre 1933 e 1939, deixassem a Alemanha e rumassem ao sul do continente africano. Nesse período, houve também na comunidade africânder o surgimento de organizações abertamente pró-nazismo e antissemitas, como os “camisas cinzentas”, liderados por Louis Weichardt.
Nos anos 1930, o Partido Nacional, de oposição, defendia a total proibição da imigração judaica, além de suspensão de processos de naturalização e o impedimento do exercício de certas profissões por habitantes judeus.
A organização política, que representava setores mais conservadores da população africânder, alcançou o poder em 1948 e implementou o apartheid, regime de segregação racial que aprofundou antigas práticas discriminatórias e criou novos mecanismo de divisão política, econômica e social.
Apartheid, em africânder, significa “desenvolvimento em separado”, eufemismo para descrever um sistema que alijava a maioria negra de seus direitos políticos, sociais e econômicos. De olho na necessidade de conseguir apoio entre alguns segmentos da sociedade sul-africana, líderes do Partido Nacional protagonizaram pedidos públicos de desculpas à comunidade judaica local pelos flertes com o nazismo.
A iniciativa, no entanto, não gerou os resultados esperados. A minoria judaica passou a apresentar um peso desproporcional ao seu número na liderança da luta contra o apartheid. O momento mais emblemático surgiu em 1964, no Julgamento de Rivonia, quando um grupo de militantes do Congresso Nacional Africano foi julgado por sua luta contra o regime. Entre os acusados estava Nelson Mandela, que recebeu a pena de prisão perpétua. Naquele tribunal, todos os réus brancos eram judeus.
Anos antes, em 1956, ocorreu o célebre Julgamento da Traição, no qual 14 dos 23 indiciados eram judeus. Nomes como Joe Slovo, Denis Goldberg, Albie Sachs, Rowley Arenstein, Ronnie Kasrils e Ruth First, morta num atentado a bomba atribuído ao serviço secreto sul-africano, destacaram-se na liderança do Partido Comunista (PC) sul-africano e do Umkhonto we Sizwe (Lança da Nação), o braço armado do Congresso Nacional Africano (CNA).
Embora as instituições judaicas se mantivessem, durante décadas, mais voltadas às ações intracomunitárias, os judeus sul-africanos ganhavam o rótulo de parte da base eleitoral dos principais partidos de oposição ao apartheid, numa linha de atuação mais moderada do que o CNA ou o PC. Entre 1961 e 1974, o Parlamento da África do Sul, vedado a representantes da maioria negra, contou com apenas uma deputada que se opunha total e abertamente às práticas racistas. Era Helen Suzman, que deixou a atividade parlamentar em 1989.
Militante do Partido Progressista e representante do distrito de Houghton, em Johanesburgo e conhecido por sua população judaica, Helen Suzman personificou um dos vários símbolos de coragem na luta contra o apartheid. Visitou Mandela na prisão várias vezes. Foi um dos subscritores da Constituição de 1996, a primeira da era pós-regime de segregação racial. A lista das figuras mais proeminentes da resistência política às práticas do Partido Nacional guarda lugar de destaque a Harry Schwarz, que chegou à África do Sul como refugiado da Alemanha nazista em 1934, com dez anos de idade. Durante a 2a Guerra Mundial, serviu na força aérea sul-africana que, ao lado dos britânicos, combateu no norte do continente africano e na Itália.
No retorno a casa, mergulhou na política e na atividade comunitária. No Julgamento de Rivonia, foi advogado de defesa de um amigo e colega de profissão, Jimmy Kantor, o “acusado número 8”. Kantor iniciou o processo como defensor de Nelson Mandela, mas acabou indiciado e, finalmente, absolvido.
Harry Schwarz se destacou como um dos líderes do movimento que defendia usar as próprias estruturas políticas do apartheid para atacar o regime. Fundou partido de oposição e dialogou com diversos grupos negros. Em 23 de novembro de 1989, atendeu o pedido de Nelson Mandela para visitá-lo na prisão.
À saída do encontro, Schwarz declarou que a principal liderança negra, então encarcerada havia cerca de 26 anos, deveria ser libertada “imediata e incondicionalmente”. Acrescentou que “no interesse de todos os sul-africanos – brancos e negros –a soltura deveria ocorrer o mais breve possível”.
Palavras confirmadas pouco tempo depois. No dia 11 de fevereiro de 1990, depois de 27 anos no cárcere, Nelson Mandela recuperou a liberdade, num processo que culminaria no desmonte do apartheid. Ao longo de sua prisão, o líder sul-africano se transformou num ícone internacional da luta por direitos humanos. E emergiu da prisão com a desafiadora missão de construir uma democracia e impedir que a África do Sul mergulhasse no caos e em guerra civil. A longa trajetória política de Nelson Mandela carrega importantes momentos de interação com os judeus sul-africanos. O líder negro descreve como seu primeiro amigo branco Nat Bregman, colega no escritório de advocacia Witkin, Sidelsky e Eidelman. Oriundo da Lituânia, Bregman chegou à África do Sul com quatro anos de idade e falando iídiche.
Começou a trabalhar no escritório onde conheceria Mandela em 1941. Subia, com seu amigo e assistente do escritório, pelo elevador destinado a negros. Recusava-se a subir pelo elevador reservado a brancos. Convidava “Madiba”, o nome carinhoso do colega no trabalho, a festas “mistas”. Oferecia-lhe literatura comunista.
Com o passar do tempo, Bregman tornou-se mais religioso. Depois de deixar a prisão, em 1990, o velho amigo Mandela logo o convidou para jantar. Os encontros voltaram a ser regulares, até a morte de Bregman, em 2011, aos 88 anos de idade.
Em sua autobiografia “Longa Caminhada para a Liberdade”, Mandela escreveu sobre o escritório de advocacia no qual conheceu Bregman: “Era uma firma judaica, e na minha experiência eu descobri que judeus têm mentes mais abertas do que a maioria dos brancos nos temas de raça e de política, talvez devido ao fato de eles próprios terem sido historicamente vítimas de preconceito”.
Lazar Sidelsky, o advogado que contratou Mandela como um jovem assistente desafiando o racismo sul-africano, também teve sua parcela de contribuição na formação de uma das maiores lideranças do mundo contemporâneo. O filho de imigrantes lituanos nascido em Johanesburgo emprestou dinheiro a Mandela para a abertura, em 1952, do primeiro escritório de advocacia fundado por negros. O outro sócio era Oliver Tambo, que se tornou um dos símbolos mais conhecidos da luta contra o apartheid.
Após sua libertação, em 1990, e a eleição como primeiro presidente da democracia sul-africana, em 1994, Nelson Mandela se dedicou a construir pontes de diálogo e a buscar a reconciliação entre os diferentes grupos étnicos e políticos. No âmbito da comunidade judaica, cultivou amizade com o rabino-chefe da África do Sul entre 1987 e 2004, o britânico Cyril Harris.
Ao desembarcar em Johanesburgo, ainda na era do apartheid, o rabino Harris já assumia o papel de um contestador. Criticava o sistema de segregação racial e acreditava no diálogo, aceitando tomar chá com P.W. Botha e F.W. De Klerk, líderes do regime dominado pelo Partido Nacional. Desenvolveu relevante trabalho social, também no âmbito extracomunitário. Organizou, por exemplo, um kibutz para negros na periferia da maior cidade sul-africana.
Em 1998, o então presidente Nelson Mandela organizava seu casamento com a moçambicana Graça Machel. Ligou para o rabino Harris, ainda sob o manto do segredo e da distância em relação aos holofotes da mídia, para convidá-lo a estar na pequena cerimônia e abençoar o novo casal, ao lado de outros líderes religiosos. A data escolhida era 18 de julho, dia do octogésimo aniversário de Mandela.
O rabino Harris olhou na agenda e percebeu que a data caía num Shabat. Telefonou ao presidente e explicou o motivo que impedia sua presença na cerimônia. Mandela tomou então a iniciativa de trazer o rabino Harris e sua mulher Ann na manhã de sexta-feira, antes do início do descanso semanal, para receber a bênção judaica.
Mas a relação de Mandela com a comunidade judaica e com Israel também experimentou diversos momentos de crise e de tensões. Durante o período de cárcere e na moldura ideológica da Guerra Fria, o Congresso Nacional Africano, de Nelson Mandela, encontrou na Organização para a Libertação da Palestina, de Yasser Arafat, um sólido aliado. Moscou oferecia suporte financeiro e político para os chamados “movimentos anti-imperialistas e de libertação nacional”.
A África do Sul pós-apartheid encontrava na Líbia de Muamar Ghadafi um aliado importante no plano político e como fornecedor de petróleo. Mandela também flertou com o regime teocrático iraniano. E, com frequência, disparava críticas ácidas a políticas israelenses.
O líder sul-africano decidiu visitar Israel apenas em 1999, depois de deixar a presidência. No entanto, foi recebido com honras de chefe de Estado. Acompanhado do rabino Harris, reuniu-se com o então presidente Ezer Weizman, com ministros e juízes da Suprema Corte. Também conheceu o Yad Vashem, Museu do Holocausto, escrevendo no livro de convidados, ao final da visita: “Uma experiência dolorosa, mas enriquecedora”.
Ao visitar o escritório do premiê Ehud Barak, Mandela se deparou com uma surpresa. Encontrou Dov Sidelsky, filho de Lazar, dono da banca de advogados que empregou o jovem negro nos anos 1950. Morando em Jerusalém, Sidelsky disse ao visitante: “A última vez que eu tinha visto o senhor foi no dia de seu casamento com Winnie, eu tinha então seis anos”. Era o segundo matrimônio de Mandela, em 1958.
Mandela também se pronunciou naquele momento de nostalgia. “Tenho uma dívida de honra com os judeus”, afirmou, acrescentando que suas críticas a políticas de governos israelenses não anulavam sua percepção histórica.
Principal ponto de contato entre Mandela e a comunidade judaica na África do Sul pós-apartheid, o rabino Harris faleceu em 2005, e seu sucessor, Warren Goldstein, manteve uma linha de envolvimento intenso com os direitos humanos. Publicou, em 2003, o livro “A Alma Africana fala”, sobre a sociedade contemporânea no seu país, em parceria com Dumani Mandela, neto do líder sul-africano.
A comunidade judaica sul-africana contribui de forma decisiva com a construção de um país moderno, por meio de diversas iniciativas, como o Africa Tikkun, criado pelo rabino Harris e pelo empresário Bertie Lubner. O projeto leva educação, serviços sociais e saúde a crianças das favelas de cidades como Johanesburgo. Em 2000, Nelson Mandela tornou-se patrono da iniciativa.
A intensa vida social, cultural e religiosa da comunidade judaica sul-africana, no entanto, não esconde uma perda significativa com a emigração das últimas décadas. Nos anos 1970, o país chegou a contabilizar 120 mil judeus, dos quais cerca de 50 mil partiram sobretudo para Israel, EUA, Austrália e Canadá. Entre os principais motivos para a mudança estavam os temores de turbulências dominarem o país caso Mandela falhasse em seu projeto de reconciliação nacional. Altos índices de criminalidade e violência urbana também geraram medo.
O rabino-chefe Warren Goldstein, responsável por diversas iniciativas sociais, incluiu mais uma em seu vasto currículo. Mobilizou parte da comunidade judaica sul-africana a se envolver em projetos destinados a reduzir a criminalidade. E, num deles, o grande parceiro é a comunidade muçulmana local. São cenários do chamado “país do arco-íris”, como se intitula a África do Sul livre do regime racista.
O Jornalista Jaime Spitzcovsky foi editor internacional e correspondente da Folha de S. Paulo em Moscou e em Pequim.