O ano de 2004 marca os 350 anos de imigração judaica para os Estados Unidos, a partir da chegada de 23 judeus a Nova Amsterdã, pouco antes de Rosh Hashaná, em setembro de 1654. Eles não foram os primeiros judeus a se instalar na área, mas foram os primeiros que vieram com o objetivo definido de fincar raízes e formar uma comunidade.

O grupo atracou em Nova Amsterdã vindo de Recife (PE), cidade do Nordeste do Brasil que até então estivera sob o domínio dos holandeses, mas que fora reconquistada pelos portugueses em 1654. Com as forças de Portugal, instalava-se também a Inquisição e reiniciava-se a perseguição aos judeus. O período da dominação holandesa (1630-1654) no Brasil foi o único da história colonial durante o qual, graças à tolerância do culto, os conversos que lá residiam (judeus ibéricos convertidos à força) puderam abertamente assumir o judaísmo. Os judeus de Recife construíram a primeira sinagoga das Américas - a Kahal Zur Israel, na antiga Rua dos Judeus e atual Rua do Bom Jesus, recentemente restaurada pela Fundação Safra e reaberta ao público.

O sonho de uma vida em liberdade no Nordeste brasileiro terminou com a retomada da região pelas forças portuguesas. Cerca de 150 famílias judias deixaram a área em navios holandeses. Nem todas retornaram para Amsterdã, alguns optaram por se instalar nas ilhas do Caribe ou em países da América Central. Um dos navios com os 23 judeus a bordo fora capturado durante a viagem por piratas espanhóis. Foram resgatados pela tripulação do navio Saint Catherine. O grupo de judeus atracou na ilha de Manhattan, no povoado fundado pela Companhia das Índias Ocidentais, totalmente sem recursos, levando consigo apenas a esperança de encontrar um local onde pudessem reiniciar a vida. Iniciava-se a história dos judeus americanos...

A saga da imigração

Apesar de Nova Amsterdã estar sob domínio holandês, nação conhecida por sua tolerância religiosa, os recém-chegados foram recebidos com uma hostilidade ostensiva, pois o governador Peter Stuyvesant tornou difícil sua posição legal e, conseqüentemente, a política e a social também. No entanto, a pressão dos influentes judeus holandeses, e o importante papel que desempenhavam no campo comercial, obrigaram o governador a lhes conceder direitos limitados.

Foi justamente em Nova Amsterdã, que passou a ser chamada de Nova York quando os ingleses capturaram a região, em 1664, que foi fundada a primeira congregação judaica dos EUA, em 1655. Inicialmente chamada de Congregação Shearith Jacob e, posteriormente, Shearith Israel, tinha entre seus fundadores Asser Levy, um dos 23 refugiados do Saint Catherine. Neste mesmo ano, antes mesmo de ter conseguido a permissão para construção da primeira sinagoga, o governo local autorizou a compra de terras para a implantação de um cemitério judaico, o mais antigo do país. Era uma prioridade para a comunidade, pois segundo a Lei judaica, os serviços religiosos podem ser realizados mesmo em residências, desde que haja o quorum mínimo de dez homens, ou seja, um minian, não sendo necessário um local especial. O mesmo não acontece com o lugar para se enterrar os entes queridos, pois o espaço deve ser consagrado e estar localizado fora da área urbana.

Alguns anos após o início da comunidade de Nova Amsterdã, um grupo de judeus chegou à colônia puritana de Massachusetts, na qual foram melhor recebidos. Os puritanos, além de ser grandes admiradores da Nação Judaica, estudavam assiduamente os Cinco Livros de Moisés. A mesma tolerância puritana acolheu em Connecticut um grupo de judeus venezianos. Mas era em Rhode Island que vivia, à época, a maior comunidade judaica. Lá os judeus se sentiam totalmente seguros, pois a idéia de liberdade de culto havia sido um fator essencial na fundação da colônia. Na futura Pensilvânia, os judeus da Filadélfia, além de serem bem recebidos, conseguiram logo e virtualmente todos os direitos civis. Nas colônias do sul também os judeus foram bem-vindos e podiam exercer sua fé e trabalhar livremente. Durante o período colonial, seis sinagogas foram construídas, além da de Nova York - em Montreal, Filadélfia, Savannah, Charleston e Newport. Esta linda sinagoga foi inaugurada em 1763, alguns anos após a de Nova York, e ainda funciona no mesmo lugar.

A saga da imigração judaica para as Américas deve ser analisada considerando-se a trajetória dos judeus na Europa e as perseguições que sofreram ao longo da era moderna. A primeira onda migratória para a América foi basicamente sefaradita. As perseguições na Península Ibérica, as conversões forçadas e a expulsão da Espanha e Portugal, no final do século XV, assim como a instalação da Inquisição na maioria dos países católicos da Europa, levaram milhares de judeus ibéricos a procurar um refúgio seguro. Como as pressões e a discriminação eram cada vez maiores no Velho Continente, muitos procuraram alternativas no Novo Mundo, especialmente nas áreas colonizadas pelos ingleses, franceses e holandeses.

Liberdade religiosa e igualdade civil

Uma das características marcantes que moldaram a formação da sociedade norte-americana foi o fato de a população que veio inicialmente para povoar as colônias estar fugindo de perseguição religiosa na Inglaterra ou na França. A imigração tinha como base fundamental a procura de um lugar no qual as pessoas pudessem criar uma nova sociedade e professar abertamente a sua fé. Talvez a relativa tolerância na América do Norte fosse também decorrente do fato de estar-se colonizando em uma região onde nenhum grupo poderia reivindicar raízes mais profundas do que os demais. De qualquer forma, como os colonizadores seguiam diferentes religiões, o judaísmo passou a ser visto como um de tantos credos que tentavam sobreviver do outro lado do Atlântico, longe dos conflitos e dos preconceitos da Europa.

Porém, mesmo nas colônias onde os judeus eram bem-vindos, não gozavam inicialmente de total igualdade civil, sendo impedidos de exercer determinadas funções, como ser membros de júris e disputar cargos eletivos. É importante ressaltar que as restrições a certos direitos não se limitavam à minoria judaica.Os católicos também não podiam participar de funções eletivas e, em certos casos, sofriam de maiores limitações civis do que os próprios judeus. Mas, ainda que algumas colônias mantivessem maiores restrições a determinadas crenças religiosas, sequer podem ser comparadas à política discriminatória contra os judeus vigente, durante séculos, na Europa.

Os judeus norte-americanos estavam determinados a se tornar cidadãos no sentido pleno e, utilizando todos os recursos a seu alcance, conquistaram gradativamente maiores direitos civis. Isto não aconteceu como por passe de mágica. Pelo contrário, tiveram de lutar arduamente por cada direito conquistado, tendo que provar que poderiam ser úteis à Colônia. A maioria dos argumentos apresentados ressaltavam sua experiência no comércio, suas redes familiares e contatos espalhados pelo mundo. O patrimônio que, às vezes, alguns possuíam servia como contrapeso às reações negativas das comunidades cristãs em Nova York e em outras colônias, onde queriam fincar suas raízes.

Assim, foi dentro do contexto de uma sociedade emergente, baseada em uma cultura de tolerância religiosa - na qual os privilégios civis e políticos eram concedidos mais de acordo com a condição e a importância econômica que as primeiras comunidades judaicas norte-americanas nasceram e se desenvolveram.

O perfil da comunidade

Até 1700 havia entre 200 e 300 judeus nas colônias. A maioria eram sefaraditas, oriundos de outras comunidades da Europa e do Caribe, além de grupos de conversos que tinham em seu corpo cicatrizes deixadas pelos algozes da Inquisição.

Assim como em todos os lugares onde se estabeleceram, os judeus na América Colonial eram ativos no comércio. Atuavam entre as colônias, com os indígenas e com os países europeus. Sua vivência, cultura e contatos no exterior lhes permitiram ter importante papel na navegação costeira e no comércio ultramarino. Apesar do grande envolvimento nessa atividade, havia também entre eles lojistas e artesãos, vendedores de alimentos, velas, ferramentas, jarros, panelas e outros utensílios da vida cotidiana. Poucos, no entanto, eram agricultores. Não eram ricos, em sua maioria, apesar de algumas famílias possuírem patrimônios significativos. Entre estes: Aaron Lopes, converso de Lisboa que se estabeleceu em Newport, os Franks e Hayman Levy de Nova York, Moses Lindo, de Charleston, e os irmãos Gratz, da Filadélfia.

Os judeus mais pobres durante o período pré-independência eram de origem asquenazita, vindos do norte e do centro da Europa. Em meados de 1720 o perfil da comunidade mudou e a maioria dos judeus norte-americanos provinham da Alemanha e Polônia. Os judeus poloneses vieram para a América em meados do século XVIII, em virtude das dificuldades no Velho Mundo.

A Revolução Americana

Anualmente, quando se aproxima o Memorial Day, a Congregação Shearith Israel, em Nova York, realiza uma cerimônia no histórico cemitério localizado na Praça Chatham, no centro de Nova York. Construído em 1683, é onde estão enterrados muitos dos que deram os passos iniciais para a formação da comunidade judaica. Bandeiras são içadas ao lado dos túmulos dos que lutaram na Revolução Americana. Tremulando ao sabor do vento, são lembranças vivas da participação ativa dos judeus na formação dos EUA. Quando as colônias declararam sua independência da Inglaterra, no dia 4 de julho de 1776, havia aproximadamente 2.500 judeus em meio ao total de 2 milhões 500 mil habitantes nas colônias. A Shearith Israel já era uma congregação sólida, com cerca de 122 anos. Afirmando sempre seu apoio a uma pátria livre, a maioria de seus membros, como dos judeus das outras colônias, lutou ao lado de seus compatriotas cristãos pela independência.

Em maio de 1776, atendendo a um apelo do Congresso Continental, os membros de todas as congregações reuniram-se nas sinagogas para um dia de jejum e preces. Durante a Revolução Americana, além de participar ativamente nos combates militares, apoiaram econômica e financeiramente a causa revolucionária. Isaac Frank, nascido em Nova York e um dos mais proeminentes membros da Congregação Shearith Israel, uniu-se às forças americanas em 1776, aos 17 anos, lutando na batalha de Long Island, sob o comando de George Washington. Preso pelos britânicos por breve período, conseguiu escapar, tornando-se auxiliar de campo de Washington e tenente coronel no exército americano. Outro nome importante ligado à Congregação de Nova York é Haym Salomon. Nascido na Polônia, em 1740, veio para a América do Norte em 1772. Durante a luta pela independência, foi capturado pelos britânicos, acusado de espionagem e condenado à forca. Tendo conseguido escapar, buscou refúgio na Filadélfia, onde se envolveu na vida comunitária judaica. Salomon desempenhou um papel fundamental na arrecadação de fundos e doações para o financiamento da Revolução, tendo sido assessor de Robert Morris, diretor do Departamento de Finanças do Congresso Continental. Aaron Lopez, um dos mais influentes comerciantes de Newport, perdeu a maior parte de sua grande fortuna quando os ingleses confiscaram seus navios mercantes que estavam a serviço da causa revolucionária.

No dia 15 de setembro de 1776, as tropas britânicas ocuparam Nova York. Para não viver sob domínio da Coroa inglesa, líderes comunitários e religiosos deixaram a cidade, instalando-se em Connecticut e na Filadélfia até que a região fosse desocupada. Mesmo durante a ocupação, a sinagoga foi preservada e os únicos registros de vandalismo foram a violação de dois Rolos de Torá por dois soldados ingleses e o roubo de dois rimonim. As duas Torot ainda fazem parte do acervo da Shearith Israel. Em 25 de novembro de 1783, as forças inglesas saíram de Nova York, sendo substituídas pelas tropas americanas.

Um novo país estava nascendo e os judeus participaram ativamente de sua formação. Um país baseado nos princípios de liberdade e igualdade para todos os cidadãos. Na Declaração de Independência do dia 4 de julho 1776, pela qual as treze colônias romperam seus laços com a Coroa Britânica, este princípio está solenemente reafirmado. Em 1789, com a promulgação da Constituição Americana vigente até hoje nos EUA, a igualdade de todos os cidadãos é mais uma vez salientada.

Quando o presidente George Washington decretou 26 de novembro de 1789 como o Dia de Ação de Graças, congregações espalhadas pelo novo país realizaram serviços religiosos em agradecimento ao Todo-Poderoso. Os judeus tinham consciência do princípio de igualdade vigente desde então nos EUA. Sabiam que eram iguais aos demais cidadãos, não por favor ou reconhecimento momentâneo de algum governante. Tinham seus direitos reconhecidos oficialmente pela lei do país. Tal fato jamais ocorrera na Europa ou no mundo islâmico. Os judeus norte-americanos foram os primeiros, na história da diáspora, a serem iguais aos seus vizinhos não-judeus.

Quando foi realizado um desfile na Filadélfia em homenagem à nova Constituição dos EUA, em 1789, entre as inúmeras mesas de alimentos havia uma especialmente preparada com alimentos casher. Com esta atitude, os organizadores do evento queriam mostrar que os judeus eram cidadãos com os mesmos direitos e que seus sentimentos deveriam ser sempre levados em consideração, embora não houvesse mais de três mil em todo o país.

Em uma carta enviada à comunidade judaica norte-americana de Nova York, Filadélfia, Charleston e Richmond, George Washington agradeceu o apoio recebido e garantiu aos judeus que eles eram de fato cidadãos norte-americanos, em toda a plenitude do termo, não apenas uma minoria tolerada. Foi uma ratificação do reconhecimento dos direitos adquiridos dos judeus e garantidos pela nova Constituição do país. Embora ainda existissem atitudes anti-judaicas, os judeus tinham tido êxito em sua luta pela inclusão na estrutura sócio-política do país.

Bibliografia:

· The Jews in America - A Treasury of Art and Literature

· Angel, Rabbi Marc D., Remnant of Israel - A portrait of America's First Jewish Congregation - Shearith Israel, Riverside Book Company Inc.

· American Jewish Historical Society, American Jewish Desk Reference, produzido pelo Philiph Group, Inc. N.Y.