Até o início do século 20, a África do Sul era apenas uma expressão geográfica utilizada para identificar o extremo sul do continente. Os alicerces da atual comunidade judaica sul-africana foram plantados no século que antecedeu a criação da União Sul-Africana.
A história do judaísmo sul-africano se entrelaça com a saga dessa região de grande beleza natural e infinitas possibilidades econômicas. É uma história relativamente recente, porque apesar da importância estratégica da área ter atraído colonizadores europeus já em meio ao século 17, por quase 150 anos não foi permitido a judeus praticantes lá se estabelecerem. Quando, já no século 19, começaram a se assentar na região, encontraram uma sociedade multirracial complexa e fracionada.
Pequena minoria dentro da minoria branca, eram uma ínfima fração em meio à população geral. No entanto, contribuíram de forma substancial para o desenvolvimento da atual África do Sul.
A chegada dos europeus
O navegador português Bartolomeu Dias, em sua primeira expedição em busca do limite sul do continente, foi o primeiro europeu a aportar na Ilha Rubens, localizada a poucos quilômetros da atual Cidade do Cabo. Era o ano de 1488. Dias navegou para além do extremo sul da África, “dobrando” o Cabo da Boa Esperança. Astrônomos e cartógrafos judeus muito contribuíram para o sucesso das explorações marítimas portuguesas. Inclusive o próprio Vasco da Gama que, em 1497, descobriu a rota para a Índia passando pelo Cabo, costumava aconselhar-se com Abraão Zacuto, na época, Astrônomo Real da Corte portuguesa.
Portugal, no entanto, não mostrou grande interesse pelo Cabo da Boa Esperança e passou-se mais de um século e meio até que a Companhia Holandesa das Índias Orientais estabelecesse, no local, um posto de abastecimento onde seus navios pudessem parar em viagem às Índias Orientais Neerlandesas (atual Indonésia). Jan van Riebeeck foi incumbido da missão e, em 6 de abril de 1652, ancorou seus navios na baía, no sopé da montanha Table. Rapidamente seus homens construíram o Forte Goed Hoop, que viria a se tornar a Cidade do Cabo.
Para abastecer os navios que paravam no local, cultivavam-se produtos agrícolas e a carne era obtida através de trocas ou pilhagens com os Khoikhoi, tribo que vivia na região. À medida que um número cada vez maior de navios utilizava o local, foi crescendo a demanda por provisões e, conseqüentemente, pela mão- de-obra. A Companhia das Índias passou a levar para o Cabo escravos de diferentes regiões da África, e, também, de países do Oriente, como Malásia, Índia e Indonésia. Era o início de uma numerosa população escrava negra, mestiça e indiana.
A partir de 1657, Van Riebeeck permite que alguns de seus homens se tornem “livres fazendeiros” nas imediações do Cabo. A área colonizada vai-se ampliando ao norte e nordeste da Baía de Table e para além das cordilheiras mais próximas, na medida que colonos calvinistas vindos dos Países Baixos e de outros pontos da Europa aportam durante os séculos 17 e 18 na região.
Os nativos, inutilmente,tentam resistir à presença européia, mas são dizimados pelas guerras e doenças. Diferentemente de outros colonizadores do continente africano, os bôeres, como eram chamados, vieram para essa parte do continente africano para fincar raízes. Seus descendentes, que sentiam-se mais ligados à África do que à Europa, passaram a se auto-denominar de “africânderes” e a falar um novo idioma, o africâner.
Os primeiros judeus
Durante os anos em que a área ficou sob controle da Companhia das Índias Orientais (1652 – 1795), nenhum judeu podia viver na Colônia do Cabo. A Companhia exigia que todos os seus funcionários, assim como os colonos, fossem protestantes, e o único culto permitido e obrigatório era o calvinista. Os poucos judeus que, porventura, tentaram estabelecer-se na colônia holandesa foram forçados a se converter.
A presença judaica se tornou possível apenas a partir de 1804, quando o comissário geral da Colônia, o holandês Jacob de Mist, instituiu a igualdade para toda a população, independentemente de seu credo. Em 1806, quando a Colônia fica sob domínio britânico, a medida é mantida e, quatro anos mais tarde, estabelece-se o primeiro judeu, o médico Sigfried Frankel, em Cape Town, como passou a ser chamada a Cidade do Cabo. Nos anos seguintes, alguns judeus, britânicos, holandeses e alemães se estabelecem na Colônia.
No entanto, a comunidade judaica sul-africana remonta suas origens ao grande afluxo de britânicos que chegou a essa cidade na década de 1820, entre os quais havia algumas famílias judias e um punhado de indivíduos em busca de fortuna e aventura. Verdadeiros pioneiros, esses judeus impulsionaram o desenvolvimento econômico da região. Entre os recém-chegados estavam os Nordens e os Slomans, que, 20 anos depois, teriam papel fundamental no estabelecimento da congregação judaica de Cape Town.
No Yom Kipur de 1841, 17 judeus de Cape Town se reuniram para as orações na casa de Benjamin Norden, um dos homens mais influentes da cidade. Era a primeira vez que se conseguia reunir um minyan em terras sul-africanas. Oito dias depois, em Sucot, foi fundada a Congregação Tikvat Israel, a primeira de toda a África Subsaariana. A comunidade foi-se estruturando rapidamente; no ano seguinte, fundou-se um cemitério judaico e, em 1849, comprou-se a casa que viria a ser a primeira sinagoga no Subcontinente africano.
Os judeus que fundaram a Tikvat Israeleram empresários bem-sucedidos. Benjamin Norden, por exemplo, explorara o interior do país, negociando com os nativos. Chegou até Natal para entregar ao rei dos Zulus uma missiva do governador D’Urban, que falava sobre uma nova colônia que seria chamada Durban, hoje uma das principais cidades do país. Outros exemplos são os irmãos Aaaron e Daniel de Pass, os maiores armadores da Cidade do Cabo, líderes da indústria da pesca, e Adolph e James Mosenthal, responsáveis por iniciar a produção do “mohair” a partir do pelo das cabras angorás.
Com o desenvolvimento da economia local, crescia o número de judeus que vivia na Cidade do Cabo. Em 1855 já havia 170 e, em 1863, foi construída a primeira sinagoga nos jardins públicos da cidade. No final da década eram cerca de cem famílias, em sua maioria de origem anglo-germânica. Na medida que o centro da economia colonial se transfere da região ocidental para a oriental, novas comunidades judaicas são estabelecidas em Grahamstow e Port Elizabeth.
No Império Britânico os judeus gozavam dos mesmos direitos civis que na Inglaterra e, na Colônia do Cabo, sentiam-se perfeitamente confortáveis no seio da sociedade local, sendo grande a tendência assimilacionista entre seus membros.
Judeus nos Estados bôeres
As tensas relações entre os britânicos e osafricânderes haviam-se acirrado na década de 1820. Os africânderes, que se consideravam um povo, viam o grande afluxo de ingleses à Colônia como uma ameaça a seu modo de vida, principalmente frente às medidas anti-escravagistas adotadas pela Coroa britânica. Para os africânderes, as características raciais da população branca determinavam seu domínio sobre os demais grupos sociais.
As relações chegaram a um ponto de ruptura em 1833, quando o Parlamento britânico aboliu a escravatura. Decididos a libertar-se do domínio da Grã-Bretanha, inicia-se, no ano seguinte, um êxodo em massa dos africânderes, que ficou conhecido como o “Groot Trek”. Estima-se que 15 mil famílias deixaram a Colônia em direção aos territórios a nordeste do rio Orange. Nessa área criaram estados independentes – a República de Transvaal e o Estado Livre de Orange – onde mantiveram o caráter calvinista do Estado e uma ordem social baseada na separação racial e na supremacia branca.
Houve judeus que se instalaram nas terras além do rio Orange e se tornaram os responsáveis pela criação da infra-estrutura comercial dos africânderes. Na República de Traansval, judeus, assim como católicos, eram objeto de restrições legais, entre outros não podendo votar, ocupar postos governamentais ou freqüentar escolas públicas.
A Revolução Mineral
Na segunda metade do século 19, com a descoberta de jazidas de diamantes e ouro em Traansval, a economia da região, até então predominantemente agro-pastoril, se industrializa. O primeiro diamante é encontrado em fevereiro de 1867, às margens do rio Orange. A corrida à região, no entanto, somente se inicia quando são encontradas, na fazenda dos irmãos De Beers, inúmeras pedras. Milhares de pessoas se dirigiram para o local, que revelou ser o maior depósito de diamantes do mundo. Em 1871, a área, que fazia fronteira com as duas repúblicas bôeres –Transvaal e Estado Livre de Orange – e a Colônia do Cabo, é anexada pelos ingleses.
Em 1873, Kimberley, cidade criada nas imediações das minas, já era a segunda de toda a região que compreende a atual África do Sul. Entre as milhares de pessoas que se dirigiram à cidade, seduzidas pelo sonho de riqueza, havia judeus vindos de toda a África, assim como da Alemanha e Inglaterra. E, no ano de 1875, o governador da Colônia do Cabo coloca a pedra fundamental da primeira sinagoga de Kimberley. Apesar de poucos em número, os judeus desempenharam um papel significativo na rápida evolução da indústria de diamantes. Entre os nomes que se destacaram no setor estão Barney Barnato e seu primo, David Harris; Sammy Marks, e seu primo, Isaac Lewis. A renomada De Beers vai nascer da fusão da empresa de Barnato, a “Kimberley Central Mine”, e a “ De Beers Consolidated”, fundada por Cecil Rhodes.
Uma década e meia mais tarde foi encontrado ouro em Barberton, a leste da atual Johanesburgo. Pouco depois, descobriu-se uma reserva ainda mais rica em Witwatersrand. O “Rand”, como também é conhecida a região, seria a fonte de 40% do ouro explorado no mundo.Com a disseminação da notícia sobre o ouro, milhares de pessoas de todas as partes do mundo se dirigem à região. Praticamente todos os que chegavam se estabelecem no assentamento de mineradores chamado de Johanesburgo, que surgira em 1886 próximo a Witwatersrand.
Os primeiros judeus lá chegaram um ano após sua fundação e, naquele mesmo ano, seu número já era suficiente para que fossem realizados os serviços religiosos de Rosh Hashaná. Em 1895 já viviam em Johanesburgo 6 mil judeus – 10% do total da população. Mais da metade era oriunda da Europa Oriental, especialmente da Lituânia. Eram os precursores do grande fluxo de imigração judaica que começara a chegar da Europa Oriental e que, nos 30 anos seguintes, elevaria a população judaica de 4 mil para 40 mil pessoas.
Após as descobertas minerais, as tensões entre a Grã-Bretanha e os africânderes foram aumentando, enquanto que um número cada vez maior de imigrantes ingleses, atraídos pelas oportunidades econômicas, estabelecia-se nas repúblicas bôeres. Enquanto os ingleses consideravam o nacionalismo africânder como um perigo à dominação do Reino Unido no sul da África, os bôeres viam a chegada dos ingleses como uma ameaça. Em 1899, as repúblicas de Transvaal e Orange enfrentam a Coroa britânica, mas acabam sendo derrotadas em 1902 e são incorporadas ao Império Britânico.
O grande fluxo de lituanos
As descobertas minerais na África do Sul coincidiram com o recrudescimento, na Rússia czarista, das perseguições contra judeus. Após os pogroms de 1881-1882, centenas de milhares judeus deixaram o império russo. Os Estados Unidos eram o principal destino; no entanto, lendas sobre fabulosas oportunidades atraíram parte desse fluxo migratório para a atual África do Sul. E, nas três décadas que antecederam a 1ª Guerra Mundial, mais de 40 mil judeus lá se estabeleceram. Deste total, mais de 70% provinham da Lituânia.
Sendo longa e difícil a viagem até a Cidade do Cabo, homens jovens costumavam ir na frente, para se estabelecer, antes de mandarem buscar suas famílias. A maioria desembarcava praticamente sem recursos ou qualificação e falando apenas o iídiche. Familiares ou compatriotas os recebiam, ajudando a superar as primeiras dificuldades, enquanto as entidades judaicas davam pequenos empréstimos até iniciarem alguma atividade profissional.
Parte dos griners, os “verdes”, como eram chamados os inexperientes recém-chegados, permaneciam em Cape Town, outros iam para cidades em expansão, como Kimberley, Johanesburgo e Oudtshoorn. Esta última se tornara o coração mundial da criação de avestruzes, atraindo muitos judeus. Chegou mesmo a ser chamada de “Jerusalém da África do Sul”, por causa de sua comunidade. Outros se espalhavam no interior, fixando-se nos dorps(vilarejos) ou praticando o comércio ambulante.
Os smouses, como eram chamados pelos africânderes, iam de fazenda em fazenda levando mercadorias e produtos. Não foram poucos os que se tornaram donos de lojas nos vilarejos e pequenas cidades. Era quase impossível encontrar um dorp onde não houvesse pelo menos um armazém pertencente a um judeu. Foi surgindo no interior do país uma vibrante vida comunitária judaica. A segunda geração, no entanto, costumava trocar a zona rural pelos centros urbanos, onde seus filhos podiam crescer em ambiente judaico organizado.
Na época, a economia sul-africana já apresentava as características do “capitalismo racial”, em que, cada vez mais, coincidiam a raça e a classe do indivíduo. Os imigrantes judeus, parte da privilegiada minoria branca, não tardaram a se acostumar com a ordem racial da economia e a existência de uma abundante mão-de-obra negra, a preços irrisórios.
Surge uma nova comunidade
A chegada dos litvaks (como eram chamados, em iídiche, os judeus da Lituânia) mudou de forma irreversível a então homogênea comunidade judaica, que seguia costumes e tradições anglo-judaicas. Os grinerstrouxeram consigo suas tradições religiosas, seu amor pelo estudo talmúdico, pela Terra de Israel e sua profunda ligação com o sionismo. Trouxeram, também, sua cultura e o iídiche. Em cidades como Cape Town e Johanesburgo, havia bairros, como District Six e Malay Cape, onde era comum ouvir-se falar o iídiche nas ruas.
Com o crescimento da população judaica são criadas novas instituições comunitárias. Em 1897, um ano após o 1º Congresso Sionista Mundial, na Suíça, é fundada a Federação Sionista Sul-Africana (South African Zionist Federation - SAZF), que se tornaria a organização judaica mais importante nos 80 anos seguintes. Em 1903, é criada o Jewish Board of Deputies de Transvaal e, no ano seguinte, uma instituição semelhante na Colônia do Cabo. A função dessas instituições, cuja estrutura espelhava-se no Jewish Board britânico, era representar a comunidade frente às autoridades imperiais. A necessidade de um órgão de representação oficial tornara-se premente devido à crescente hostilidade em relação à imigração judaica, que culminara no Immigration Restriction Act of 1902. A lei permitia a imigração apenas de pessoas que falassem alguma língua européia. Apesar da legislação ter como principal alvo os imigrantes asiáticos, coibia, também, a entrada de judeus da Europa Oriental cujo idioma, o iídiche, era escrito com caracteres hebraicos.
Em 1904, 38.000 judeus viviam espalhados nas quatro colônias, divididos em duas comunidades – a anglo-germânica e a lituana. Até a chegada dos novos imigrantes, o serviço religioso era realizado conforme o rito dos judeus britânicos. Nas sinagogas da comunidade anglo-germânica, o decoro e silêncio eram considerados elementos imprescindíveis. As sinagogas costumavam ser edifícios imponentes e magníficos, como as sinagogas em estilo bizantino de Kimberley (1902) e a Grande Sinagoga de Johanesburgo (1905), ou a de Cape Town (1905), em estilo mourisco. Para os litvaks,acostumados a rezar com fervor e alegria nos despretensiosos shuls do Leste europeu, as sinagogas dos judeus britânicos eram por demais imponentes e os serviços religiosos muito “mornos”. Passam então a estabelecer seus próprios locais de reza, os Griner shuls, isto é, as sinagogas dos “verdes”, os recém-chegados.
A chegada dos judeus lituanos solidificara as bases da comunidade judaica. O respeito pelo judaísmo e tradições judaicas, e sua forte ligação com a Terra de Israel vão-se tornar parte da nova identidade judaica sul-africana que já estava delineada quando, com a criação da União Sul-Africana, iniciava-se uma nova era na história da região.