Traçar a história dos judeus alemães desde a Idade Moderna até o início do século 20 é traçar seu anseio por pertencer a uma cultura que os fascinava e serem aceitos por um povo que, como tantos outros, os desprezava. A dualidade de ser alemão e ser judeu foi uma questão que atormentou os judeus alemães. Em nenhum outro país da Europa essa ansiedade por pertencer e essa dualidade de sentimentos foi sentida tão profundamente como lá.

No iníciodaIdade Moderna1, ainda não havia uma “Alemanha”. As terras de língua alemã eram um grupo de mais de cem estados e mini-estados independentes, subservientes, em teoria, ao Sacro Império Germânico.

Nos domínios germânicos a vida dos judeus era difícil; o ódio da população contra eles não diminuíra. Eram acusados de causar todos os males, usar sangue cristão em seus rituais, profanar a hóstia e assim por diante. No final da Idade Média haviam sido expulsos da maior parte das cidades e, nos lugares onde lhes era permitido se estabelecer, eram obrigados a pagar impostos exorbitantes, viver em bairros separados e usar o “distintivo judaico”. Era-lhes vedada a posse de terras e propriedades. A maior parte vivia na pobreza e, sendo-lhes proibidas quase todas as ocupações, ganhavam a vida como vendedores ambulantes ou prestamistas. Este é o pano de fundo judaico no início do século 16, quando a Alemanha era palco de profundas mudanças religiosas. 

É na transição entre a Idade Média e a Idade Moderna, durante o Renascimento,que surge na Europa o humanismo, movimento intelectual que coloca o homem como o centro da importância, no mundo. A autoridade da Igreja Católica passa a ser questionada por pensadores, que acusam a Instituição de ser corrupta e criticam inúmeras de suas políticas e práticas. São poucos, porém, os que se pronunciam em relação às políticas adotadas em relação aos judeus. Entre eles, Johannes Reuchlin. Alemão, estudioso do grego e do hebraico, ele é mais conhecido por sua defesa do Talmud.

Entre as práticas da Igreja, a mais criticada era a venda de “indulgências”, documentos cuja compra garantia ao cristão o perdão Divino. Um católico que comprasse uma “indulgência” não precisaria mais se penitenciar por seus pecados para ser absolvido. A oposição a essa prática era forte nos principados germânicos, mas, apesar de estar ciente dessa oposição, querendo arrecadar fundos para a construção da Basílica de São Pedro, a Santa Sé manda para lá um frade dominicano com a missão de vender “indulgências”.

Para o monge católico Martim Lutero (1483-1546), essa foi a gota d’água. Em outubro de 1517, Lutero afixou na porta do castelo de Wittenberg suas 95 Teses, nas quais defendia a extinção das “indulgências” e condenava o luxo e o poder de que desfrutavam o papa e o alto clero, em Roma. Lutero obteve o apoio de praticamente todos os setores da sociedade alemã, e suas ideias deram origem a um movimento de ruptura dentro da Igreja Católica, a Reforma Protestante, e à criação do Luteranismo.

Os judeus e Lutero

A posição de Lutero em relação aos judeus irá exercer uma influência profunda e duradoura sobre o povo germânico e, consequentemente, sobre a História Judaica. Num primeiro momento, ele defendeu nosso povo com ardor porque acreditava que os judeus abraçariam “sua forma purificada de Cristianismo”. Quando os judeus alemães não se convertem, ele muda radicalmente, passando a incentivar o antissemitismo com extraordinária virulência. Afirmava que, como era impossível converter os judeus, deviam ser destruídas suas práticas religiosas, pois eram uma “fabricação do demônio” para impedir a salvação dos cristãos.

Uma amostra de seus “ensinamentos” é o tratado de 1543 - “Sobre os Judeus e Suas Mentiras” (do alemão, Von den Juden und ihren Lügen) - no qual defende a perseguição aos judeus. Nele argumenta que não deviam ser tratados com clemência e que a única forma de lidar com eles era incendiar suas sinagogas, seus livros de oração e suas escolas; arrasar suas casas e suas propriedades, confiscando todos seus bens e dinheiro. Deviam ser obrigados ao trabalho forçado ou definitivamente expulsos. Incentiva, também, o assassinato de judeus, dizendo: “Temos culpa de não os matar”.

Suas palavras tiveram um profundo e longo alcance sobre o povo alemão, certamente até a 2ª Guerra Mundial. Prova disso são os elogios com que Hitler, católico, o cobre em seu Mein Kampf, e no fato dos nazistas utilizaram-se de seus “ensinamentos” sobre o tratamento que devia ser dado aos judeus durante seus comícios em Nuremberg, nas reuniões do alto comando nazista e nas próprias medidas adotadas em relação à população judaica.

Na época em que Lutero viveu, seus ensinamentos incentivaram ainda mais o ódio contra a população judaica. Alguns dos príncipes germânicos que se haviam tornado luteranos ferrenhos, passaram a pôr em prática seus ensinamentos. John Frederick, o Magnânimo, Eleitor da Saxônia, foi o primeiro a bani-los de seus domínios, sendo seguido por outros, até que os judeus encontraram um inesperado aliado em Carlos V, o Imperador do Sacro Império Germânico. Enquanto portava a coroa da Espanha, Carlos V perseguia os judeus, mas seu ódio em relação a Lutero era ainda mais forte. Sua proteção impediu que fossem expulsos de Habsburgo (1530), Speyer (1544) e Regensburgo (1546).

Foi Joseph (Joselman) Gershon de Rosheim(c.1478–1554), grande defensor de todos os judeus do Império, quem conseguiu a proteção do Imperador. Logo após a ascensão de Carlos V ao trono, em 1520, Joseph de Rosheim havia obtido uma carta de proteção para toda a comunidade judaica alemã. Dez anos depois conseguiu renová-la, dando certo alívio à situação dos judeus. Alarmado com o fortalecimento do Protestantismo, Carlos V, católico fervoroso, promove o Concílio de Trento, que daria início à chamada Contrarreforma da Igreja Católica.

Os enfrentamentos entre católicos e protestantes foram marcados pela intolerância, sendo os principados germânicos palco de violentas lutas entre os partidários das duas religiões. Os embates chegaram ao fim em 1555, quando príncipes católicos e protestantes assinaram um tratado. Conhecido como a Paz de Augsburgo, o tratado estipulava que cada príncipe podia escolher a religião a ser adotada em seus domínios, determinando ainda que seria adotada a política de cujus regio, ejus religio, a religião do príncipe devia ser a dos súditos. A maioria dos governantes do Sul da Alemanha escolheram o Catolicismo, enquanto os do Norte se tornaram luteranos.

Os judeus se viram encurralados em meio aos embates. Durante a luta doutrinária da Contrarreforma, a Igreja estava determinada a afastar os “descrentes e hereges” do convívio dos católicos. Os judeus, em situação mais vulnerável do que os protestantes, tornaram-se um alvo fácil. Para o Papa Paulo IV, a “quarentena” era a única forma de evitar o convívio entre católicos e judeus e, em 1555, ele cria o primeiro gueto “oficial”. Outros soberanos seguiram o exemplo, bem como os príncipes alemães. Assim sendo, emergia o gueto, legalizado pelos poderes religiosos e seculares. Na Alemanha, destinava-se a ser abolido somente mais de dois séculos mais tarde.

O pogrom Fettmilch

Os sentimentos anti-judaicos de católicos e protestantes resultam em novas ondas de violência. O ataque mais famoso perpetrado nesse período contra a população judaica ocorreu em Frankfurt, em 1612.

O gueto de Frankfurt, no Judengasse (o bairro judaico), onde, em 1610, viviam apinhados 2.270 judeus, era o centro da vida judaica no Sacro Império Germânico. Em 22 de agosto do ano de 1612, é invadido por uma multidão liderada por Vincent Fettmilch. Calvinista que se autodenominava “o novo Haman” dos judeus, Fettmilch havia decidido atacar o gueto após lhe terem sido negadas as petições para a expulsão dos judeus da cidade. Os judeus os enfrentaram de armas em punho, resistindo bravamente por mais de cinco horas, mas vendo que não poderiam evitar a entrada do populacho no gueto, conseguiram escapar.

Após entrar no Judengasse, os invasores saquearam as propriedades, ateando fogo no que não podia ser levado. As autoridades esperaram 13 horas após o início do pogrom para pôr um fim à selvageria. Muito estrago já havia sido feito, dois judeus e um cristão foram mortos, sendo imensos os prejuízos materiais.

Mas, pela primeira vez, os invasores não ficaram impunes. O imperador ordenou sua prisão. Quatro deles foram presos logo em seguida e decapitados. Fettmilch, graças à sua popularidade entre os baderneiros, conseguiu escapar até que finalmente foi preso e, em 10 de marco de 1616, “o novo Haman” dos judeus foi enforcado e esquartejado.

Uma cerimônia imperial marcou a volta dos judeus à cidade. Para lembrar os eventos, a comunidade judaica de Frankfurt determinou festejar o dia 20 de Adar como “Purim Wintz”, com canções especiais e um relato poético da história no dialeto judeu-alemão, ao que deram o nome de “Meguilá de Mintz”.

A Guerra dos Trinta Anos

Após a assinatura da Paz de Augsburgo, os principados germânicos usufruíram de tranquilidade até a eclosão, em 1618, da Guerra dos Trinta Anos. Esta teve início na Boêmia quando o Imperador tentou impor o catolicismo à população. Os protestantes se rebelaram, fazendo irromper a guerra. As lutas entre católicos e protestantes se transformaram numa guerra europeia, à medida que os príncipes germânicos foram pedindo ajuda a outros monarcas. Os protestantes recorreram à Dinamarca, Suíça e Holanda, também protestantes, enquanto os católicos buscaram o apoio da Espanha. O conflito passou a ter uma maior conotação política quando a França, católica, entrou na guerra ao lado dos protestantes. O intuito francês era diminuir a força dos Habsburgos, imperadores do Sacro Império Germânico. A Guerra terminou em outubro de 1648 quando as partes envolvidas assinaram a Paz de Vestefália. O acordo colocou um fim nos conflitos religiosos, reconhecendo oficialmente o Calvinismo.

A Guerra travada, principalmente, em solo alemão, destruiu cidades e vilarejos, e estima-se que tenha custado a vida de um terço a um quarto da população. Economicamente arruinado e religiosamente dividido, o Sacro Império perdeu grande parte de seu poder, despedaçando-se em 240 estados semiautônomos. Deles, os mais poderosos eram a Áustria, seguidos pela Saxônia, Bavária e Brandenburgo. Este último, governado pela dinastia Hohenzollern, localizava-se no norte da Alemanha e consistia da região central e sua capital, Berlim.

Com a união dos territórios dos Hohenzollern e o Ducado da Prússia,surge o estado chamado de Brandenburgo-Prússia, que, após 1701, passa a ser a Prússia. Frederico II, o Grande (r. 1740-86), vai transformá-la em uma das maiores potências da Europa. Para os judeus alemães a Guerra abriu novas perspectivas. Durante o conflito, os contatos que possuíam com o Leste da Europa possibilitaram que atuassem como empreiteiros de aprovisionamento para exércitos inteiros. Mas, acima de tudo, foram capazes de levantar vultosas somas para financiar a Guerra.

No final da Guerra dos Trinta Anos, a principal preocupação era reconstruir as cidades e aldeias destruídas. O comércio e as transações financeiras deixam de ser vistos como atividades “desonrosas”, passando a ser considerados necessários. Cidades imperiais e principados que haviam expulsado os judeus apressam-se em readmiti-los.

Os “Judeus da Corte”

Nesse período aparece a figura dos “Judeus da Corte” (em alemão, Hofjude ou Hoffaktor) que iriam desempenhar importante papel nas cortes germânicas até o início do século 19. Endividados e desejosos de fortalecer o seu poder, os governantes percebem a utilidade dos Judeus da Corte e passam a utilizar seus serviços como financistas e administradores.

Os Judeus da Corte constituíram uma classe distinta do resto da população judaica, pois desfrutavam de privilégios especiais: acesso direto ao soberano, direito de viver em qualquer lugar, vestir-se como queriam, adquirir imóveis, portar armas, entre outros. Em alguns casos recebiam títulos de nobreza. Até o final do século 18 poucos deles haviam rompido com suas raízes judaicas. Muito pelo contrário, era comum exercerem as funções de shtadlanim, isto é, interlocutores da comunidade judaica junto às autoridades. Eles construíram sinagogas, fundaram ieshivot e foram instrumentais em reerguer comunidades como as de Dresden, Leipzig, Kassel, Brunswick e Halle. Em muitos casos, sua intervenção conseguiu evitar expulsões e medidas anti-judaicas. Porém, por mais poderoso que fosse, o Judeu da Corte nunca estava seguro. Seu bem-estar dependia do capricho do governante que o empregava e, na maioria das vezes, era odiado tanto pelos nobres como pelo povo. Muitos deles tiveram um fim trágico. O mais conhecido foi o caso do poderoso Joseph Suss Oppenheimer, conselheiro financeiro do duque Alexandre de Wurttemberg. Assim que o duque morreu, Oppenheimer foi preso e sentenciado à morte. Ele se recusou a ser batizado para se salvar e morreu declarando o Shemá.

Mercantilismo, absolutismo e iluminismo

Com a centralização das monarquias nacionais surge, na Europa, o absolutismo, um sistema político no qual todo o poder está concentrado no monarca. Em termos econômicos, o absolutismo veio atrelado à teoria mercantilista. De acordo com essa teoria, a riqueza e o poder de um estado dependiam do nível de suas reservas em ouro e prata.

Nesse contexto, os judeus passam a ser vistos sob outra ótica, que levava em conta sua “utilidade” em relação ao Estado. Séculos de restrições os haviam tornado um povo comercialmente experiente, com conexões internacionais. Muitos eram pioneiros em negócios e finanças, e, como eram proibidos de possuir propriedades, haviam acumulado uma riqueza líquida. Os governantes passam a vê-los como uma fonte adicional de riqueza e o “problema judaico”cdeixa a esfera religiosa passando para a econômica e política. Os judeus passam a ser convidados a se estabelecer em locais até então proibidos e lhes são concedidos vários privilégios.

Obviamente, essa nova “tolerância” não incluía todos os judeus, apenas os mais “úteis” e abastados. Frederick William, “o Grande Eleitor” de Brandenburgo, por exemplo, permitiu que 50 famílias judias se instalassem em Berlim, visando tornar a cidade o centro comercial da região. Em Hamburgo, em 1612, um grupo de judeus portugueses também foi convidado a se estabelecer na cidade, tendo lá fundado o Banco de Hamburgo, promovendo, assim, o comércio com Espanha e Portugal.

A “tolerância” dos monarcas absolutistas era limitada. Mesmo os chamados Déspotas Esclarecidos2, influenciados pelas ideias do racionalismo iluminista, quando já permitiam o estabelecimento dos judeus em suas cidades, essa permissão vinha atrelada a um sistema de supervisão que regulava cada detalhe da vida judaica. Havia leis para determinar quem podia se estabelecer na cidade, a duração da estada, os impostos a serem pagos, a conduta dos negócios, bem como as questões de herança. Havia uma série de restrições arbitrárias até mesmo sobre sua vida familiar, como o número de casamentos permitidos anualmente e de filhos que herdariam o direito de ficar na cidade.

O Rei da Prússia Frederico II, o Grande, é um típico exemplo da dicotomia de atitude que os Déspotas Esclarecidos mantinham em relação aos judeus. Em termos pessoais, Frederico II, assim como seus antecessores, desprezava os judeus, a quem, em 1752, descreveu como “perigosos, avarentos, supersticiosos e atrasados”. Mas, conseguia “passar por cima” de seus preconceitos para beneficiar seu reino, utilizando-se do apoio de judeus ricos para o financiamento de sua política mercantilista e expansionista. Contudo, a determinação oficial era considerar os judeus (e todos os servos) como criaturas sub-humanas.

Em termos relativos, a Prússia era mais tolerante do que a maioria dos estados germânicos. Em Berlim, por exemplo, não houve guetos. Os judeus recebiam direito de residência de acordo com sua utilidade econômica, mas estavam sujeitos a regras degradantes. Em 1750, Frederico II os dividiu em seis classes. Apenas, os “privilegiados”, um pequeno grupo de industriais, obtiveram plenos direitos de residência e ocupação, bem como a garantia de que todos os seus filhos poderiam se estabelecer na cidade. Os judeus pertencentes à 2ª classe podiam radicar-se apenas no local predeterminado e esse direito era herdado apenas por um de seus filhos. Nenhum filho ou a viúva de um membro da 3ª classe – composta por profissionais liberais – podia permanecer na cidade. Os judeus das outras três classes não tinham direito algum. E, para o grande número de judeus pobres, a ordem era expulsá-los da Prússia.

Iluminismo Alemão e Moses Mendelssohn

O pensamento Iluminista que havia se difundido na Europa, no século 18, acreditava na primazia da razão, da liberdade – considerada um direito natural e fundamental do indivíduo – e da igualdade perante a lei. Os pensadores iluministas acreditavam que o comportamento de cada indivíduo era consequência do meio em que vivia, e que o homem era mais importante do que suas diferenças históricas ou religiosas.

A chamada “questão judaica”, que passou a ser discutida pelos iluministas na segunda metade do século 18, era tratada com cautela dentro e fora da Alemanha. A maioria dos iluministas acreditava que era possível “regenerar os judeus, resgatando-os de sua ignorância, superstição e obscurantismo”, mas mantinham uma posição ambígua em relação à concessão de direitos iguais. Mesmo os mais ardentes filo-semitas do iluminismo alemão (Aufklärung) preferiam tratar a “questão judaica” de forma “seletiva”, aproximando-se de uns poucos judeus ricos e cultos, considerados “a exceção”.

Mas, para a época, mesmo o relutante reconhecimento de que havia judeus que mereciam ter direitos iguais era um importante raio de esperança. A maioria dos judeus alemães viviam segregados nos guetos, como em Frankfurt. Em apenas algumas cidades, como Berlim e Hamburgo, era-lhes permitido morar onde quisessem. Sua presença, na melhor das hipóteses, era “tolerada” pelos não-judeus e era raro o relacionamento social. Entre outras razões, porque a maioria dos judeus não falava ou lia o alemão, apenas usavam o hebraico e o Judendeutsch, dialeto alemão misturado com hebraico. Poucos tinham acesso à cultura secular e apenas alguns judeus da elite enviavam seus filhos às universidades na Holanda ou Itália, pois era proibida a entrada de judeus nas universidades alemãs.

Coube a um judeu alemão, Moses Mendelssohn, abrir para seus correligionários as portas da cultura secular. Ele era um homem modesto e tinha uma curvatura na espinha, o que o fazia viver recolhido. Pode-se dizer que sua vida tem os elementos de um romance. Nasceu em uma família de judeus ortodoxos, sem recursos, no gueto de Dessau, em 1729. Começou seus estudos no cheder do Rabino David H. Frankel. Quando o rabino foi chamado pela comunidade de Berlim para se tornar Rabino Chefe, Mendelssohn decidiu segui-lo, indo a pé até a capital prussiana. Em Berlim, descortina-se diante dele um mundo totalmente novo. Na cidade viviam judeus abastados, que falavam alemão e possuíam livros seculares e estes viram seu potencial e decidiram ajudá-lo a expandir seus horizontes. Tendo uma impressionante capacidade de leitura, Mendelssohn aprendeu alemão e latim e adquiriu uma ampla gama de conhecimentos seculares.

Em um jogo de xadrez, ele conheceu Gotthold Lessing, famoso dramaturgo, e os dois se tornaram amigos. Um dos grandes expoentes do Iluminismo alemão, Lessing foi o primeiro cristão a representar, em sua peça de 1749, Die Juden (Os judeus), o judeu como um indivíduo culto, refinado e sensível. O dramaturgo introduziu Mendelssohn na sociedade literária e o incentivou a escrever, promovendo a publicação de sua primeira obra, Diálogos Filosóficos. De pronto a lucidez de seu pensamento e a elegância de seu estilo surpreendem e conquistam o público alemão.

Mendelssohn se tornou uma figura importante nos salões intelectuais de Berlim. Ele era visto como uma “exceção” no meio de um povo “retrógrado” e, com frequência, seus admiradores cristãos lhe perguntavam como ele, tão “esclarecido”, conseguia continuar sendo judeu praticante e membro de um grupo religioso “obscurantista”. E ele sempre respondia que o judaísmo era uma teologia racional e que os judeus eram portadores de uma nobre tradição. Aos que sugeriam que ele se convertesse, respondia: “Declaro-me judeu. E judeu continuarei para sempre”.

Mas ele também acreditava na necessidade da aculturação dos judeus alemães. Entendia ser necessário mudar a imagem que os não judeus faziam deles, abrindo-se para o mundo secular, sem deixarem de ser judeus. Para Mendelssohn, a forma de fazê-lo era dar a todos os judeus acesso à língua e cultura alemãs, algo a que ele se dedicou nos últimos 17 anos de sua vida.

Qual o lugar que Mendelssohn ocupa na História Judaica? Não foi o precursor do movimento reformista, no Judaísmo, como muitos acreditam. Tampouco lutou pelos direitos civis judaicos. Seu papel foi ter sido quem despertou os interesses seculares entre os judeus da Europa Central.

Século 19 e a emancipação judaica

Em 1789 a Europa é sacudida pela Revolução Francesa e seus ideais de liberdade. Estima-se que, na época, viviam 60 mil judeus nos estados germânicos. O número crescera consideravelmente com a expansão do território da Prússia após três guerras sucessivas. Mas as liberdades limitadas que certos judeus desfrutavam no núcleo da Prússia - Brandemburgo, Pomerânia e Prússia Oriental - não foram estendidas aos judeus anexados da Silésia, Prússia Ocidental e Posen.

Apesar de haver comunidades judaicas numerosas em cidades como Hamburgo e Frankfurt, à medida que a Prússia amplia seu poder, sua capital, Berlim, torna-se o centro do judaísmo alemão.

As notícias da emancipação dos judeus franceses percorrem a Europa como um raio de esperança. Encorajados, os judeus da Alemanha tentam pleitear sua igualdade civil. A partir de 1792, líderes de várias comunidades judaicas procuram os governantes dos reinos germânicos pedindo a concessão, aos judeus, de igualdade de direitos. Mas seus esforços são inúteis. Sempre que os judeus faziam petições por mais direitos, eram feitas contra-petições pelos cidadãos alemães para “mantê-los em seu lugar”. O prospecto da emancipação judaica assustava a maioria dos alemães, que continuavam a ver os judeus como “estrangeiros obscurantistas, que não compartilhavam das tradições germânicas e cristãs”. De acordo com Johann Fichte, o filósofo alemão que foi um dos criadores do movimento conhecido como idealismo alemão, “A única maneira de conceder direitos civis aos judeus é decapitá-los, à noite, e colocar-lhes uma cabeça nova na manhã seguinte, sem nem uma única ideia judaica sequer”.

Enquanto os judeus alemães tentavam obter sua igualdade civil, Napoleão Bonaparte, na França, após ter consolidado seu poder, preparava-se para conquistar seus vizinhos europeus. Não havia combinação de exércitos que pudesse se interpor no caminho do Imperador. Suas tropas iam sistematicamente deixando em pedaços a coalização de exércitos prussianos, austríacos e russos.

Napoleão esperava ter o apoio das populações judaicas, mas apesar de ter sofrido com a intolerância cristã, a maioria os judeus dos estados germânicos recusaram-se a agir contra seus governantes durante as Guerras Napoleônicas. A lealdade, no caso dos judeus da Prússia, e particularmente de Berlim, era ditada por seu patriotismo, já que se consideravam prussianos. Os que viviam nos guetos, agiam assim por medo de represália. Como disse um comandante francês, “Pássaros enjaulados assoviam as músicas que lhes são ensinadas”...

Mas, em cada cidade ocupada as tropas francesas, literalmente puseram abaixo os muros dos guetos, e eram seus oficiais que faziam os judeus saírem pelos buracos nos muros. Ademais, em todos os territórios ocupados pelos franceses, foi constitucionalmente instaurada a igualdade judaica perante a lei, bem como a igualdade legislativa para todos os habitantes.

Já na Prússia, a situação dos judeus era a mais complicada. Os prussianos podiam ter sido derrotados, mas o país não fora ocupado por soldados franceses e uma nova série de regulamentos tinham sido impostos à comunidade judaica, dando poderes à polícia para punir qualquer comportamento judaico “suspeito”. O Rei Frederick William III admitiu uma “certa aspereza” na nova legislação, mas a considerava justificada, pois os judeus “constituíam um estado dentro de um estado”. Não importava o fato de sempre terem demonstrado lealdade e patriotismo. William III mostrava-se resistente às tentativas que visavam a emancipação judaica, insistindo que os judeus deviam provar que eram “dignos de receber a cidadania”. Finalmente, em 11 de março de 1812, os judeus da Prússia são emancipados. Mas ainda era uma concessão parcial, já que não podiam ocupar posições governamentais. Ainda recaía sobre eles a suspeita de deslealdade, não importando o fato de terem participado da campanha militar contra os franceses, e de muitos terem morrido.

De certa forma, em Berlim, os muros da segregação social haviam sido derrubados antes da emancipação judaica. Um número cada vez maior de integrantes da elite judaica passa a viver em dois mundos – o judaico e o alemão. Seus filhos já dominavam o idioma alemão e acreditavam que seu grau de Kultur os tornaria 100% alemães. Essa nova tolerância em relação às elites judaicas permitiu, no final da década de 1780, o desabrochar, em Berlim, do gosto pelos salões literários. Muitos desses salões pertenciam a judeus e deram espaço a uma grande interação entre prussianos cristãos e judeus.

Não temos dados confiáveis acerca da primeira leva de conversões de judeus ao Cristianismo. Não querendo encarar a desaprovação das famílias e da comunidade, muitos mantinham em segredo essa decisão. Mas os números eram os mais altos da Europa. De acordo com o historiador Heinrich Graetz, a metade da comunidade judaica de Berlim se havia convertido, inclusive quatro dos seis filhos de Mendelssohn.

O fenômeno era praticamente restrito à classe alta e média alta, o restante da população judaica mantinha-se fiel à sua fé. A maioria deles eram motivados por considerações pragmáticas: melhorar seu status social, conseguir avanços acadêmicos ou profissionais, um posto no governo ou se casar. Entre os ricos, havia quem resistisse. Em 1816, ao chegar a Berlim, Carl von Rothschild escreveu a seus irmãos: “Poderia me casar com a moça mais bonita e mais rica de Berlim. Mas, nem por todos os tesouros do mundo eu o faria. Aqui em Berlim, se uma moça não é convertida, com certeza um de seus irmãos ou cunhados o é....”.

Fritz Mauthner, renomado filólogo convertido, alegava que, ainda que fosse possível que um judeu pudesse se converter por pura convicção, ele próprio nunca tinha encontrado nenhum. O poeta Heinrich Heine chamava o batismo de “bilhete de entrada à cultura europeia”. Um bilhete que prometia igualdade – se não imediatamente, em algum momento futuro. Demorou algum tempo até os judeus perceberem de que o batismo não solucionaria os problemas gerados por séculos de segregação, preconceitos e restrições legais.

O retorno dos conservadores

Após terem conseguido derrotar Napoleão, representantes das potências vitoriosas se reúnem em Viena, entre outubro de 1814 e junho de 1815, para redesenhar o mapa da Europa. Durante as sessões do Congresso, presidido pelo ministro austríaco Príncipe de Metternich, apresentam-se várias delegações judaicas, visando confirmação dos direitos adquiridos durante a era napoleônica. Judeus de toda a Europa estavam determinados a salvar o que fosse possível de sua emancipação. Mas os políticos alemães reagem com uma feroz oposição. Metternich, instigado pelo Barão Salomon Rothschild, interferiu em favor dos judeus, mas no último minuto, as esperanças judaicas desmoronaram.

O Congresso encerrou suas atividades em 1815 e entre as resoluções estava a criação da Confederação Germânica, sob hegemonia austríaca. A Confederação era composta de 39 estados, sendo os mais poderosos o Império Austríaco e o Reino da Prússia. A situação civil dos judeus variava de estado a estado. Alguns revogaram os editais da emancipação judaica, ao passo que outros, apesar de os manterem oficialmente, os ignoravam na prática. A maioria, no entanto, voltou a proibir os judeus de ocuparem cargos públicos e acadêmicos, bem como de serem oficiais do exército. Em alguns casos, como em Frankfurt, houve tentativas de os fazerem retroceder ao seu status medieval.

De 1815 até 1848, os judeus alemães assistem o surgimento de um movimento conservador, nacionalista, romântico e cristão. A pregação igualitária da Revolução Francesa foi suplantada pela idealização da superioridade da nação alemã e do destino germânico. O resultado foi a intensificação do antissemitismo, endossado por um romantismo teórico e um racionalismo intelectual. Com isto, tornam-se cada vez mais comuns as agressões contra os judeus.

Em 1819, eles são alvo dos pogroms hoje conhecidos como “Hep, Hep3”. Em 2 de agosto desse ano são atacados os judeus de Würzburg, no Reino da Baviera. A violência antissemita espalhou-se rapidamente, atingindo outros estados da Confederação Alemã. Muitos judeus foram mortos e muitas propriedades judaicas foram destruídas. Os massacres eram uma clara demonstração para a burguesia judaica de que, apesar de todo o seu empenho em adotar um estilo de vida alemão, os judeus não eram aceitos pela população cristã. Para alguns, a conversão voltou a parecer o único bilhete de entrada para a civilização europeia.

A chamada Revolução de 1848, um levante liberal que irrompeu primeiramente na França, repercutiu no restante da Europa abalando as monarquias europeias. Os ventos das revoluções liberais atingem também a Confederação Germânica. Os liberais exigiam uma Constituição. Os intelectuais judeus estavam na vanguarda dos movimentos, acreditando que os mesmos resolveriam sua dupla condição de judeus e cidadãos. O rei Frederico Guilherme IV acabou convocando uma assembleia nacional e, em 1849, é redigida uma Constituição para a Alemanha.

Os conservadores queriam uma Alemanha unida, sob o domínio da Prússia, mas não liberal. Triunfando primeiro na Áustria e depois na Prússia, a restauração conservadora acabou por dominar toda a Alemanha.

Vida judaica no séc. 19

Na Alemanha, as décadas de 1850 e 1860 foram de expansão econômica e industrial e os judeus alemães tiveram papel preponderante nos negócios bancários, no comércio e na indústria. E, uma vez eliminadas as barreiras, logo se destacaram nas profissões liberais, no jornalismo, nas artes, na vida acadêmica e nas ciências. Haviam-se tornado uma comunidade forte, poderosa, e culta, o centro do judaísmo europeu. E começam a erguer majestosas sinagogas, símbolos imponentes de seu sucesso e bem-estar.

No final do século 19, a aculturação e assimilação de grande parte da comunidade judaica atingiu proporções sem igual. A história da assimilação alemã é, há muito, um assunto sensível. Fritz Stern, historiador americano, nascido na Alemanha e falecido em 2016, dedicou-se ao estudo da História da Alemanha como nenhum outro. Ele defendia que “a história dos judeus assimilados da Alemanha é mais do que a história de uma tragédia. Durante muito tempo foi, também, a história de um sucesso extraordinário. É preciso entender os triunfos para que se possa entender a tragédia”.

Desde o Iluminismo e, mais ainda, após a emancipação, os judeus alemães haviam mudado sua aparência, seu modo de se vestir, adotando língua, filosofia e costumes alemães, na tentativa suprema de deixarem de ser vistos como “forasteiros” e serem, finalmente, considerados parte integrante do povo alemão. Eles queriam ser vistos como alemães de fé mosaica.

Buscando tornar o judaísmo “mais aceitável” aos olhos cristãos, a aculturada burguesia judaica procurou, também, “ocidentalizar” os serviços religiosos, adequando-os a conceitos estéticos ocidentais e protestantes. Assim, abandonaram os rituais ou tradições milenares por considerá-los por demais antiquados ou orientais. Nascia, na Alemanha o movimento Reformista judaico e, em seguida, o Judaísmo Conservador. Dentro desse contexto surge a chamada Moderna Ortodoxia, encabeçada pelo Rabino Samson Raphael Hirsch. Nascido em Hamburgo, ele era um intelectual, com total domínio da língua e cultura alemã. Porta-voz brilhante da ortodoxia judaica do século 19, sua apresentação da fé judaica, intitulada Dezenove Cartas sobre o Judaísmo, conseguiu estancar a migração de jovens judeus para o Movimento Reformista. “O homem ideal de Israel”, ensinava o Rabino Hirsch, “é um judeu esclarecido que observa os preceitos judaicos”.

Na virada do século 20, contrariando as expectativas, muitos alemães se ressentem da “invasão” judaica, despertando intensa animosidade. Se, entre as classes mais baixas, o ódio aos judeus ainda tinha cunho religioso, com ranço medieval, à medida que se subisse na escala social, percebia-se o surgimento de um novo antissemitismo ainda mais perigoso, de cunho secular, racial e cultural. O próprio termo ‘antissemitismo’, com suas conotações biológicas e raciais, foi usado pela primeira vez em 1879, por um alemão, Wilmer Marr, fundador da famosa Liga Antissemita. Marr, que embasava o termo “antissemitismo” em uma identidade racial, afirmava que o caráter “inato” dos judeus era absolutamente oposto ao caráter “nobre e puro” dos arianos. Infelizmente, afirmava, os judeus não podiam deixar de ser o que eram; isto é, homens “inferiores moral e fisicamente”.

Os antissemitas opunham-se violentamente à conversão dos judeus ao Cristianismo. O problema judaico não era mais da alçada da religião cristã, não adiantando mais buscar refúgio no batismo, uma vez que a “natureza inata” de um judeu não podia ser mudada. O que os arianos não podiam permitir era que a “mácula” do “sangue judaico” contaminasse a “pureza do sangue” germânico.

No despertar do século 20 muitos judeus alemães estavam diante de um impasse. Tinham deixado voluntariamente suas raízes e seu passado para trás e viam que o presente parecia estar fechado a eles. Mas, ainda assim, acreditavam que a razão iria prevalecer e que haveria um futuro para eles em terras germânicas. Este erro custaria a vida de milhões de nossos irmãos.

BIBLIOGRAFIA

Elon, Amos, Pity of It All: A Portrait of Jews in Germany, 1743-1933. Kindle Edition

www.educabras.com

Sachar, Howard M, The Course of Modern Jewish History. Kindle Edition

Gidal, Nachum Tim, Jews in Germany: From Roman Times to the Weimar Republic. Kindle Edition