A questão das compensações para os judeus que tiveram que deixar os países árabes é um dos pontos importantes a serem resolvidos na agenda do conflito árabe-israelense. Comunidades judaicas que existiam no mundo muçulmano, há mais de dois milênios, desapareceram depois que cerca de 900 mil judeus foram forçados a abandonar os países onde viviam, deixando para trás séculos de história e bilhões de dólares em patrimônio.
Durante décadas o mundo, inclusive o judaico, parecia pouco interessado na saga dos judeus dos países muçulmanos. Somente nos últimos anos surge o interesse, entre pesquisadores e historiadores, sobre o drama vivido pelos judeus orientais. Até então, entre outros fatores, o estudo sobre a magnitude da Shoá havia sobrepujado qualquer outra tragédia. Porém, apesar do recente interesse, são raros, até hoje, os livros ou estudos que tratam do fim da vida judaica em terras muçulmanas, as humilhações, perseguições, pogroms, prisões e torturas sofridas principalmente a partir de 1947, quando a ONU votou a Partilha da Terra de Israel pela Assembleia Geral das Nações Unidas, ou sobre as dificuldades que esses judeus tiveram que enfrentar até refazer sua vida, dispersos pelos quatro cantos do mundo.
Em Israel, a primeira cerimônia para lembrar o drama dos judeus orientais foi realizada no dia 30 de novembro de 2014, em Jerusalém, quase 70 anos após o ocorrido. A data escolhida tinha um significado especial, pois foi em 30 de novembro de 1947, um dia após a aprovação da Partilha da Palestina pela ONU, que ocorreram, em vários países árabes, os primeiros de muitos atos de violência contra a população judaica. O dia marca o início do fim da vida judaica no Oriente Médio muçulmano. No início de janeiro último, a saga dos judeus orientais e o patrimônio deixado para trás e confiscado pelos governos dos países envolvidos, voltou à agenda oficial de Israel e da mídia. Isso ocorreu após o comunicado, em início de janeiro deste ano de 2019, da ministra Gila Gamliel, da Pasta de Igualdade Social, em Israel, responsável pelo assunto. “Chegou o momento de corrigir a injustiça histórica dos pogroms nos países árabes e devolver o que é seu por direito a centenas de milhares de judeus que perderam suas propriedades”, afirmou a ministra.
Após décadas de reivindicações foi concluído um estudo elaborado pelo governo de Israel que servirá de base para o pedido de indenização pelos bens e patrimônios judaicos encampados pelos governos dos vários países da região. Para obter uma avaliação exata do patrimônio pessoal e comunitário deixado para trás, o governo contratou uma empresa de consultoria com ampla experiência na área de contabilidade forense patrimonial. Segundo fontes oficiais, Israel pedirá cerca de US$ 250 bilhões a título de compensação aos governos da Tunísia, Líbia, Marrocos, Iraque, Síria, Egito, Iêmen e Irã.
Segundo a organização Justiça para Judeus dos Países Árabes (em inglês, Justice for Jews from Arab Countries – JJAC), entidade que congrega grupos de diferentes comunidades judaicas, cerca de 856 mil judeus, de dez nações muçulmanas fugiram ou foram expulsos. Estudos do Congresso Judaico Mundial revelam o número de refugiados judeus que deixaram cada país. Na década de 1940, deixaram Áden, então capital do Iêmen, 8 mil; da Argélia, 140 mil; do Egito, 75 mil; do Iraque, 135 mil; do Líbano, 5 mil; da Líbia, 38 mil; do Marrocos, 265 mil; da Síria, 30 mil; da Tunísia, 105 mil; do Iêmen, 55 mil. O êxodo da população judaica manteve-se alto nos anos seguinte e, em 1958, outros 475 mil judeus haviam deixado as terras árabes, continuando o êxodo nos anos seguintes. Até 1968, mais 76 mil e, nos dez anos seguintes, outros 32 mil; até 2001, 7.800; até, 2005, 5.110; e até 2012, 4.315. Estudos indicam que a maioria desses refugiados foi para Israel, cerca de 800 mil, e 56 mil para os Estados Unidos, Itália, França, Brasil e outros países.
Para Ashley Perry, consultor político independente e assessor do governo de Israel – ele foi assessor do ministro das Relações Exteriores Avigdor Liberman entre 2009 e 2015 – esses números podem ter sido maiores. Na época, Perry fez parte da equipe que elaborou a legislação para implantação do dia 30 de novembro, acima mencionado, como data para a homenagem anual aos judeus refugiados dos países árabes.
Simultaneamente, o Ministro Liberman liderou uma campanha para que a ONU também incluísse em seu calendário oficial um dia de recordação aos judeus refugiados dos países árabes, comemoração que acontece anualmente em data próxima à da realizada em Israel. Em 2014, o Canadá reconheceu formalmente o status de refugiados para os judeus que emigraram ou foram expulsos dos países árabes, após a independência de Israel.
O assunto das “compensações” não é um consenso no seio da sociedade israelense. Há aqueles que dizem ser esta uma iniciativa para conter as reivindicações dos refugiados palestinos em relação a Israel. Sobre este ponto Perry afirma: “Isto não se trata de uma negociação política ou diplomática. Trata-se de finalmente fazer justiça para os quase um milhão de judeus expulsos de seus lares milenares ao longo do século 20. Este tema tem sido estudado há décadas e agora há dados e fatos substanciais que fundamentam suas reivindicações”.
Sobre o assunto já se manifestou também, em várias ocasiões, o primeiro-ministro israelense Binyamin Netanyahu: “Ninguém pode falar sobre o Oriente Médio sem levar em consideração os direitos dos judeus que foram forçados a deixar seus países de origem e suas comunidades, em meio à violência. Todos os crimes cometidos contra essas comunidades judaicas devem ser reconhecidos”.
Não foi por acaso que a notícia se tornou pública antes da divulgação do tão esperado plano de paz norte-americano para a região. A reivindicação de uma compensação para os judeus expulsos dos países muçulmanos, como condição para um acordo de paz regional, baseia-se na legislação israelense de 2010 segundo a qual qualquer tratado de paz com países árabes ou com o Irã está vinculado a um desfecho justo para esta questão.
Estudos realizados nos últimos 18 meses revelam que, do total dos US$ 250 bilhões pedidos, entre outros, Israel irá pedir como compensação US$ 35 bilhões à Tunísia e 15 bilhões a Líbia. As compensações obtidas não serão destinadas a famílias individualmente, mas distribuídas pelo governo através de um fundo especial. Todo o processo está sendo coordenado pela ministra para Igualdade Social, Gila Gamliel, juntamente com o Conselho Nacional de Segurança de Israel.
Por outro lado, a Autoridade Palestina exige cerca de US$ 100 bilhões a título de compensação pelo patrimônio deixado pelos árabes que viviam no que constitui hoje o Estado de Israel. Os palestinos exigem também o “direito de retorno” a Israel para milhares de refugiados e para seus milhões de descendentes, o que tem sido negado pelos sucessivos governos israelenses. Israel argumenta que, uma vez concluído um acordo de paz, os refugiados palestinos se tornarão cidadãos do Estado palestino segundo termos de um eventual acordo de paz, assim como os refugiados judeus se tornaram cidadãos israelenses, automaticamente.
Vale ressaltar que, embora centenas de milhares de judeus tenham chegado a Israel totalmente destituídos, eles jamais reivindicaram o status formal de refugiados junto à comunidade internacional. Durante os primeiros anos do recém-criado Estado, o então primeiro-ministro David Ben-Gurion costumava dizer que não gostaria de ver os judeus que voltavam ao seu lar histórico classificados como “refugiados”. Ele acreditava que, enquanto lutava pelo seu direito de ser um estado legítimo e soberano, Israel deveria também ser capaz de cuidar de seu próprio povo.
Israel anunciou sua política externa em relação ao êxodo dos judeus dos países árabes uma semana após a dramática decisão iraquiana de expropriar os bens dos judeus que deixavam o país. Em março de 1950, a Lei de Desnaturalização iraquiana permitia aos judeus emigrarem em um ano sob a condição de abrir mão de sua cidadania. O então primeiro-ministro Tawfic al-Suweidi esperava que apenas cerca de 7 mil deixassem o país, mas, surpreendentemente, aproximadamente 100 mil optaram por sair. Em março de 1951, o Iraque aprovou a lei que congelou os bens de todos os judeus desnaturalizados.
Uma semana depois, o então ministro das Relações Exteriores de Israel, Moshe Sharett, fez um discurso na Knesset, informando que o governo iraquiano começara a “contabilizar” os seus refugiados vis-à-vis o governo de Israel, forçando o país a vincular esta contabilização com uma já existente – o número de refugiados árabes da Guerra de Independência. Ele afirmou na ocasião: “Nós devemos considerar o valor das propriedades judaicas que foram congeladas no Iraque, quando calcularmos a compensação que deveremos pagar aos árabes que abandonaram suas propriedades em Israel”. Este princípio tem sido um elemento chave na política israelense, desde então. Em julho de 1948 Sharett informou aos diplomatas que o tema do confisco dos bens judaicos deveria ser incluído em qualquer acordo de paz referente à questão dos refugiados árabes, em qualquer época.
Tempos difíceis
A vida das comunidades judaicas nos países árabes, muitas datando mais de dois mil anos, não foi fácil, apesar de muitos acreditarem que era um “mar de rosas”. Viviam bem se comparado à vida dos judeus em países cristãos. A verdade é que sempre passavam por crises maiores ou menores, de acordo com os interesses e caprichos dos governantes. A situação dos judeus nesses países agravou-se com o aumento da presença judaica em Eretz Israel e a luta, cada vez maior, dos judeus pela criação de um lar nacional judaico na terra de seus antepassados, a partir do final do século 19 e início do 20. Antes mesmo da Partilha da Palestina pelas Nações Unidas, em 29 de novembro de 1947, que determinou a criação de um estado judeu e um árabe na região, o Comitê Político da Liga Árabe elaborou leis para “administrar o status dos judeus“ que viviam em seus territórios. Determinou que suas contas bancárias fossem congeladas e usadas para financiar a resistência ao que definiu como “ambições sionistas na Palestina”. Judeus suspeitos de ativismo sionista seriam detidos como prisioneiros políticos e teriam seus bens confiscados.
Essas e outras leis sancionadas pelos vários governos, bem como a repressão e a onda de violência, levaram à partida em massa de membros das milenares comunidades judaicas em um processo que pode ser definido tanto de expulsão quanto de êxodo, que se manteve a partir da década de 1940 até o final dos anos 1970.
Logo após a declaração de independência de Israel, em 1948, o recém-criado estado recebeu milhares de judeus – sobreviventes do Holocausto da Europa e, praticamente, as comunidades inteiras da Líbia, do Iêmen e do Iraque. O novo país enfrentava, além da guerra com os países vizinhos que haviam jurado sua destruição, o desafio de oferecer moradia e trabalho aos novos imigrantes. Campos de refugiados com centenas e centenas de barracas (ma’abarot) serviram de moradia temporária. Empregos foram criados e ministrados cursos de hebraico, enquanto o sistema educacional adequava-se à demanda crescente dos recém-chegados. O fluxo migratório oriundo dos países independentes do Norte da África, Marrocos e Tunísia estendeu-se ao longo dos anos 1950 e 1960.
Segundo a lei internacional “refugiado é um indivíduo que sente o medo justificado de ser perseguido por razões de raça e religião”. O Alto Comissariado para Refugiados das Nações Unidas confirmou em inúmeras ocasiões que a organização considera os judeus fugidos das perseguições em países árabes como refugiados e estão sob a sua proteção.
Em todos os acordos internacionais multilaterais e bilaterais (Resolução 242 da ONU, Conferência de Madri, Acordos de Paz Israel-Egito, Mapa do Caminho para a Paz) há uma referência geral aos “refugiados” e incluem o reconhecimento de todos os refugiados do Oriente Médio da mesma forma – sejam judeus ou árabes. Para Israel e para a Diáspora, o reconhecimento dos direitos dos judeus dos países árabes é um chamado à justiça e à divulgação da verdade histórica, na busca da paz para o Oriente Médio, uma paz na qual todos os refugiados tenham os mesmos direitos e o mesmo tratamento sob a lei internacional.
Infelizmente, a violação dos direitos humanos das massas judaicas nos países árabes, a destruição de antigas comunidades, a expropriação de seus bens e propriedades, além do deslocamento e expulsão de seus lares, ao longo de milênios, nunca foram abordados da forma adequada pelas Nações Unidas e pela comunidade internacional.