Ferrara, Modena e Reggio Emilia eram conhecidas como Estados Estenses enquanto governadas, a partir de 1288, pela família D Este. Este sobrenome deriva da localização de uma importante civilização pré-românica (séc. 10 a.E.C.), abandonada durante as invasões bárbaras, e que no séc. 10 E.C. tornou-se feudo de uma família que assumiu o nome deste lugar.

Reconhecidos senhores de Ferrara em 1264, os marqueses D'Este tornaram-se duques em 1471 devido, entre outros favores concedidos, à ajuda ao irmão do Papa Sisto IV, Gerolamo Riario, permitindo-lhe constituir um grande domínio pessoal na região da Emília-Romanha.

A península italiana, no século 16 , era dividida em Estados regionais que tinham entre si relações de desconfiança e muitas vezes de guerra. Estes Estados eram governados de maneiras diferentes: como repúblicas (Veneza), ducados de origem feudal (ducado de Sabóia), principados e grão-ducados (Florença). Apesar das formas políticas diferentes, os Estados italianos tinham uma característica comum: a tendência a concentrar o poder político em uma única família. No sul da Itália, os soberanos espanhóis de Aragão, que já detinham o poder sobre a Sicília e a Sardenha, tinham adquirido este poder também sobre o Reino de Nápoles. O complexo destas possessões passou a se chamar Reino das Duas Sicílias.

Devido a laços de parentesco ou de amizade com outros Estados regionais, como Milão e o Estado dos Presídios (entidade política constituída em 1557 por Filipe II da Espanha, formada por algumas possessões no litoral tirrênico), praticamente até o século 17 a Espanha dominava a política italiana.

O Estado da Igreja estendia sua jurisdição em matéria de fé e de moral sobre todos os países católicos europeus e os estados regionais italianos. Na Itália, o Estado da Igreja hospedava sozinho mais de um terço dos judeus italianos; por exemplo, em Ferrara existiam de 1.500 a 1.600 judeus que constituíam mais de 6% da população.

Em 1600, o judaísmo italiano tinha-se reduzido a pouco menos de 21.000 pessoas. Para acompanhar a política anti-judaica da península ibérica, os governantes das cinco maiores cidades italianas: Nápoles, Milão, Palermo, Genova e Bolonha escolheram a estratégia da expulsão dos judeus; enquanto os governantes de Veneza, Roma e Florença, preferiram a segregação nos guetos.

Os judeus remanescentes confluíam para as terras de refúgio, lugares especiais inseridos entre os maiores componentes do sistema geopolítico italiano. Estes territórios ofereciam uma solução para a instalação da população judaica italiana, garantindo sua continuidade no país, e pelos judeus expulsos de seus países de origem, como os espanhóis em 1492, os portugueses em 1498, e os alemães em 1530, que se refugiaram neles. Foi criada então, nos Estados Estenses, uma comunidade judaica forte e organizada.

A saída da Espanha e de Portugal sem dúvida constituiu, para os judeus ibéricos, uma penosa etapa, que nem todos cumpriram da mesma forma. Os caminhos trilhados pelos "Senhores do Desterro de Portugal", das margens do rio Tejo às margens do rio Pó, foram muitos e variados, mas nem sempre fáceis de acompanhar. De qualquer forma, estes judeus seguiam uma direção constante: o Império Otomano, com os portos seguros de Salônica, Constantinopla, Adrianópolis, Sarajevo, Valona e Belgrado e, em um segundo momento, Esmirna e Alexandria. A Itália serviu então, em muitos casos, como uma ponte entre a Península Ibérica e o Oriente.

O duque Ercole I D'Este, em 1492, havia convidado para Ferrara os judeus exilados da Espanha, prometendo que poderiam ter seus líderes espirituais e juízes, praticar o comércio e a medicina e lhes concedendo redução dos impostos. O grupo de judeus que aderiu à sua chamada formou uma pequena comunidade que fez reviver as antigas tradições culturais e religiosas do judaísmo sefaradi e que se atribuiu o nome de Nação Portuguesa. Estes judeus mantiveram um bom relacionamento com os outros núcleos da Nação Portuguesa instalados nos grandes centros comerciais da Europa Ocidental, no Norte da África e no Império Turco ou que tinham permanecido na Península Ibérica. Mais difícil foi seu relacionamento com os judeus italianos residentes no lugar, devido aos privilégios que lhes eram oferecidos, como a isenção de impostos e a possibilidade de residir fora dos guetos. Estas hostilidades derivavam também do fato de que entre os refugiados serfarditas existia um discreto número de cristão novos - provavelmente mercadores - que utilizavam a própria identidade judaica instrumentalmente, apresentando-se como judeus quando a ocasião era propícia, mas assumindo uma identidade cristã na maioria das vezes. Desculpavam este fato declarando que a dissimulação era de vital importância para sua sobrevivência.

Os cristãos novos portugueses tinham em toda a Europa uma inconfundível e inequívoca identificação no âmbito profissional, a dos grandes mercadores internacionais, e se não faltaram os médicos, os homens da lei, os agricultores, os que constituíram diferentes corporações - com os da lã, seda e diamantes - e até os empregados mais humildes, todos eles faziam parte do quadro comercial dominante.

Este fato explica como os exilados tiveram, como um dos seus primeiros pontos de chegada, a Antuérpia, uma grande cidade portuária à sombra da Coroa Espanhola, com livre acesso ao comércio em todo o mundo. Mas nos anos 30 do século 16, apesar da proteção política dada pelo governo aos mercadores que nela operavam, o governo espanhol não transigiu no plano da ortodoxia católica e a Inquisição tornou-se tão cuidadosa e rigorosa como em Portugal.

A origem dos estabelecimentos judaicos nos Estados Estenses está estreitamente ligada aos bancos de empréstimos sob penhor com juros baixos, ou, como se dizia naquele tempo, com "módica usura". Era difícil que a condução de um banco fosse entregue a uma única pessoa, mesmo nas cidades menores; mais freqüentemente, a gestão era assumida por dois ou mais sócios, chamados "prestadores principais". O banqueiro principal tinha o direito de escolher até seis sócios, podendo revogar suas nomeações e substituí-los por outros. Os mais importantes clientes dos bancos judaicos eram constituídos por três entidades: o senhor, o município e a Igreja.

Os prestadores eram acompanhados por suas famílias, funcionários e domésticos. Muitas vezes estava presente também um professor particular com cultura rabínica que, além de exercer as funções religiosas da comunidade, era também tutor dos filhos, sobrinhos e netos dos banqueiros. Às vezes fazia parte do grupo um maestro de música e dança.

Apesar da profissão dos chefes da nação portuguesa ser declaradamente mercantil, muitos dos mercadores eram eruditos. Tratava-se de intelectuais, médicos, juízes e escritores que, além das relações de negócios e dos capitais de suas empresas, levaram consigo a Ferrara um vasto e diferenciado patrimônio de conhecimentos. No clima de fervor cultural e de fidelidade à religião de seus ancestrais, se insere a edição de Ferrara daBíblia en Lengua Española.

Em 30 de maio de 1538, Ercole II, por meio de intermediários, entrou em contato com a comunidade sefaradita de Antuérpia, negociando com os espanhóis e portugueses os direitos e as franquias que lhes seriam concedidos se concordassem em se transferir para os Estados Estenses. Para conseguir a transferência desses sefaraditas, de Antuérpia para Ferrara, era necessário obter no mínimo duas licenças de trânsito: uma através da França e as províncias sabaudas (da dinastia dos Sabóias), controladas pelo exército francês, a outra para percorrer o Estado de Milão (Lombardia), que então fazia parte dos domínios espanhóis. As licenças para a transferência dos serfarditas a Ferrara faziam menção aos expoentes das grandes casas mercantis, ficando subentendido que junto com eles teriam viajado grupos não especificados de parentes, colaboradores e domésticos.

Os maiores perigos aos quais os viajantes estariam expostos durante a viagem encontravam-se no trecho espanhol-lombardo do trajeto onde, de fato, aconteceram vários incidentes. Os comissários facilitavam estes incidentes enquanto estavam mais interessados em seqüestrar as mercadorias do que as pessoas, tendo direito a um terço do lucro da venda destas.

Devido aos vários incidentes, os salvo-condutos tiveram que ser direcionados não mais às grandes casas mercantis, mas a cada comitiva ou família. O grupo de cristãos novos portugueses encontrou, em Ferrara, os membros da significativa comunidade judaica italiana que, há séculos, vivia no país e o contingente de judeus provenientes, sobretudo, de Castela e Aragão, que entrou na Itália após a ordem de expulsão da Espanha, em 1492.

No fim do verão de 1549, a peste explodiu no Grão-ducado Estense com graves conseqüências para os judeus portugueses, que foram expulsos. O escritor Samuel Usque, em um de seus textos (Consolação às Tribulações de Israel), que parece ser o único testemunho impresso relatando a expulsão dos portugueses do ducado, conta que: "Viajantes provindos da Alemanha introduziram a peste em Ferrara, pela qual foram atingidos também alguns portugueses judeus... e logo o povo atribuiu toda a culpa à atormentada nação portuguesa. Ainda que o "senhor da terra" fosse o mais favorável a esta, foi obrigado a "desterrar a todos os portugueses que nesta sua cidade habitavam".

Os portugueses foram levados, de noite, até o porto, provavelmente no rio Pó, e daí até o mar Adriático, onde antes de serem embarcados foram roubados de seus pertences. Outros portos italianos não os deixaram desembarcar, apesar de ninguém mostrar sintomas da peste. Alguns deles, depois de atacados e pilhados pelos corsários, dirigiram-se para a Turquia.

Nada menos que 320 judeus foram expulsos. Os que permaneceram em Ferrara foram mercadores e industriais amparados por seus privilégios. Apesar disso a comunidade portuguesa reconstituiu-se depois de alguns meses. Dois códigos de particular importância regulavam a vida dos judeus serfarditas nos Estados Estenses: o Livro de Corame Vermelho (promulgado por Francisco I, que reunia todos os privilégios concedidos até aquele momento pelos vários príncipes italianos e pelo próprio Duque de Modena) e o Livro das Deliberações da Nação Judaica de Reggio Emilia, que constituiu, na prática, o diário oficial daquela Comunidade no período entre 1652 e 1672.

A saga da comunidade de Ferrara, que tinha chegado ao ápice na metade do século XVI, iniciou sua fase descendente durante o governo do duque Alfonso II (1553-1597). Alguns católicos escandalizados ou traidores renegados, voltando para Portugal depois de uma estadia nas terras de refúgio italianas, exprimiam sua desaprovação por tudo que haviam testemunhado. Em 1574, um cristão novo penitente denunciou ao Tribunal da Inquisição em Lisboa trinta chefes de famílias marranas que viviam como judeus em Ferrara.

Quatro anos mais tarde, o Inquisidor apresentou ao papa Gregório XIII (1572-1585) um elenco de refugiados originários da província de Coimbra e informou que poderiam ser encontrados judaizantes em várias partes da Itália, em particular nos domínios estenses. Frente a esse grande número de pessoas, Alfonso II sentiu-se obrigado a tomar medidas drásticas e, em 1581, muitos membros da comunidade portuguesa foram presos e, três deles, considerados os mais perigosos, enviados a Roma onde foram queimado na Praça Campo dei Fiori, em 1583.

Quando Ferrara ficou sob o domínio do papa, em 1598, a condição dos judeus piorou: foi imposto o uso do sinal amarelo e a venda de seus imóveis; o número de sinagogas foi limitado a três, uma para cada rito; os bancos de empréstimo fechados por certo período; os judeus foram obrigados a freqüentar os sermões dos frades que queriam convertê-los e os médicos judeus foram proibidos de assistir doentes cristãos. Os duques, contrários à política da Igreja, transferiram-se para Modena e muitos judeus os seguiram, enquanto outros se transferiram para o Oriente.

A lista dos refugiados judeus em Ferrara é muito longa e inclui alguns entre os nomes mais conhecidos da diáspora judaica sefaradita, como o de Dona Gracia Nasi. Merece particular relevo a família de Don Isaac Abrabanel (1437-1508), que, saindo da Espanha após a expulsão, estabeleceu-se no reino de Nápoles, acolhida pelo rei Ferrante. Quando os judeus foram expulsos do Reino, Isaac, depois de vários acontecimentos e migrações, refugiou-se em Veneza, onde viveu até sua morte. Seus três filhos, Judah, filósofo conhecido como Leão Hebreu; José, médico, e Samuel, importante banqueiro, representante da comunidade judaica de Nápoles, que havia casado com sua prima Benvenida, transferiram-se para Ferrara. Abraham Usque, estudioso e editor, imprimiu em Ferrara, além de trinta livros em hebraico, a Biblia en Lengua Española.

No campo dos estudos judaicos, podemos mencionar os poetas Jacob Fano e Abraham Dei Galicchi Jagel; os médicos Amatus Lusitanos, Moses e Azriel Alatino; o cronista Samuel Usque. Destes conversos que voltaram ao judaísmo nas terras de refúgio italianas, hoje são conservados muitos e variados testemunhos, em geral restaurados: antigos guetos, sinagogas, cemitérios e museus (como em Bologna, Ferrara e Sorana). Além disso, há também uma grande quantidade de objetos rituais e manuscritos.

Existem ainda escritos e documentos que testemunham as falas com as quais os judeus serfarditas se comunicavam entre si, misturando termos hebraicos, o espanhol e o português, com os dialetos italianos da região. Estas falas, que hoje estão sendo recuperadas, tinham até nomes particulares como o dialetto ghettaiolo (dialeto do gueto) de Ferrara.

Anna Rosa Campagnano - Professora de matemática na Itália, Nigéria e Brasil. Mestre em língua hebraica com a dissertação "Os Dialetos Judeu-Italianos. Um Estudo sobre o Baggito". Membro da Sociedade Genealógica Judaica do Brasil, co-editora do jornal Gerações/Brasil. Autora do livro de poemas, A árvore de Abraham (1993/94), e de vários artigos sobre a vinda dos judeus italianos para o Brasil.

Bibliografia

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Nissim, Elnecave, (sefa'tah) - Los Hijos De Hibero Franconia - Buenos Aires, Editorial "La Luz" -1981.

Segre, Bruno - Gli Ebrei D'Italia - Firenze, Giuntina, 2000.

Segre, Renata. - La Formazione Di Una Comunitá Marrana: I Portoghesi A Ferrara - In STORIA D'ITALIA - Gli Ebrei In Italia. p. 782. A cura di Corrado, Vivanti - Annali 11, vol. 1- Torino, Giulio Einaudi - 1996.

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