Embora no século XIX já se encontrassem, em São Paulo, judeus de várias procedências, a primeira instituição formalmente registrada foi a “Communidade Israelita de São Paulo”, em 21/01/1912. Instalada no Bom Retiro no ano seguinte, seus integrantes eram quase todos oriundos da Europa Oriental. Paralelamente, apresento abaixo aspectos históricos e geográficos do bairro que, certamente, tiveram importância para que nele se fixassem os integrantes desse segmento imigratório.

O Jardim Botânico que encolheu

1798 – O começo da atual José Paulino era o centro de uma reserva florestal, destinada por um Decreto Régio a ser um Jardim Botânico. Objetivava a aclimatação de espécies vegetais não autóctones. Na época, havia a prática generalizada de permutas de mudas entre os impérios coloniais, geralmente de maneira ilegal, por cientistas itinerantes ou mesmo por representantes diplomáticos. Os Jardins Botânicos do Rio de Janeiro e de Recife, existentes até hoje, foram criados pelo mesmo Decreto Régio. Seguiu-se um Decreto Provincial, que pretendia pesquisar, também ali, plantas medicinais para o “Real Hospital Militar”, localizado onde é hoje a Praça do Correio. Não obstante, já estava enraizada a percepção dos benefícios sociais e culturais dos parques urbanos.

Apenas uma pequena parte da reserva foi desenvolvida em condições de receber público. Inaugurada em 1825, com o nome de “Horto Botânico da Luz”, só bem mais tarde ficaria conhecida por Jardim da Luz. Seja por falta de verbas ou descontinuidade administrativa, a finalidade científica do Horto não prosperou. Em 1838, a Assembleia Legislativa Provincial mudou a sua denominação para “Jardim Público”. Assim, o Jardim Botânico previsto inicialmente deixou de ser prioritário. O projeto original em forma de pentágono ainda aparece no mapa militar elaborado a pedido do Barão de Caxias (futuro Duque de Caxias, o Pacificador), no contexto da Revolução Liberal de 1842 (Fig. encontrada à pág 60). O atual Jardim da Luz, com mais alguns cortes posteriores, corresponde a apenas 13% do Jardim Botânico previsto, que poderia ter sido, para São Paulo, o que o Central Park é para Nova Iorque.

Próximo ao local, ladeando a Casa de Correção (Cadeia Pública) construída em 1851, uma trilha permitia aprofundar-se na região. Era a futura Rua Três Rios, homenagem ao marquês homônimo, proprietário de extensa chácara com o nome de Bom Retiro e de um solar que chegou a hospedar a Princesa Isabel e o Conde d’Eu. Por essa rua, podia-se chegar à Chácara Dulley, pertencente a Charles Dulley, engenheiro da São Paulo Railway Company-SPR, de cujo loteamento, em 1904, foram adquiridos os lotes onde foram construídas as sedes da Kehilá e a sinagoga ainda hoje existente.

A vez das ferrovias

1865 –São Paulo tornou-se a província que mais produzia café, e Santos, o terminal portuário melhor aparelhado para sua exportação. As sacas eram transportadas em tropas de muares (mulas e burros). Estima-se que, naquele ano, meio milhão de mulas trotavam, ida e volta, com trocas e pastos ao longo do percurso. Estava-se diante de um grande desafio: uma ferrovia que ligasse Santos a Jundiaí, o portal das novas zonas cafeeiras. A Inglaterra, com um longo retrospecto de obras ferroviárias executadas, era a nação mais indicada para a façanha de vencer a Serra do Mar. E Londres, o centro financeiro capaz de arregimentar investidores. Uma comissão brasileira liderada pelo Barão de Mauá ficou incumbida dos trâmites. Em 1866, a SPR (São Paulo Railway) assinou com o governo imperial um contrato de concessão por 80 anos. A travessia foi vencida com engenhosidade, introduzindo-se continuamente atualizações técnicas.

Do Alto da Serra, atravessando a região do ABC, os trilhos chegaram à capital, na divisa de São Caetano com a Vila Prudente. Era uma linha singela e só seria duplicada em 1889. Em São Paulo erguer-se-ia a Estação Central da SPR, em um ponto próximo ao “Triângulo”, pela lógica, no seu lado sul (Sé? Liberdade?). Na verdade, naquele momento, não era do interesse da SPR construir estações majestosas. A empresa estava muito mais centrada em transportar cargas e ter fluidez na linha. Os ingleses faziam restrições aos materiais de construção brasileiros. Preocupavam-se com a localização dos armazéns, oficinas e pátios de manobras. Optou-se em São Paulo por um trajeto plano, pelo lado direito do vale do Rio Tamanduateí, que acabou indo até o Brás, a primeira estação paulistana.

Foi a maneira política de fazer com que o café do Vale do Paraíba também pudesse ser escoado por Santos, pois a competitividade do Vale estava em queda, se confrontada com a do interior paulista. No Vale havia a desvantagem da qualidade dos solos, a insistência pela mão de obra escrava, que claramente já estava com os dias contados, e técnicas agrícolas ultrapassadas. Os portos, Ubatuba, Paraty e mesmo Rio de Janeiro, no quesito “exportação de café”, não podiam cotejar com Santos. Os fazendeiros do Vale do Paraíba construíram uma ferrovia emergencial em bitola estreita, entre a Estação do Norte (Rua do Norte, Brás) e a cidade de Cachoeira Paulista. Traria a vantagem adicional de, futuramente, tornar possível o transporte de passageiros entre São Paulo e a Côrte, pois Cachoeira já era conectada à Estrada de Ferro D. Pedro II (futura Central do Brasil).

Os trilhos da SPR estenderam-se até o Brás, onde foi construída a primeira gare paulistana. Mas ficou bem mais difícil encontrar o local para a Estação Central de São Paulo. O Brás estava quase numa mesma linha horizontal que o Centro Velho, todo edificado e em terreno elevado. Já não seria possível locar a Estação Central no lado sul do Triângulo. Teria que ser pelo lado norte. Houve necessidade de contornar o Centro Velho, o Córrego do Anhangabaú e os numerosos meandros do Tamanduateí, transposto no cruzamento das atuais Avenida do Estado e Rua Mauá. Estabeleceu-se, ali ao lado, uma grande área para as manobras operacionais da ferrovia.

Para não se afastar muito do Centro, os trilhos tomaram a direção do Seminário Episcopal (atual Igreja de S. Cristóvão), atingindo a reserva florestal. Seria ali, defronte ao Jardim Público, apenas separado por uma praça, o local escolhido. Para este fim, em 1860, o governo provincial doou uma faixa de 45 metros, às custas do Jardim Público. Um humilde fiscal do Jardim, Antonio Bernardo Quartim, entraria para a História num relatório ao Presidente Provincial, em que dizia “lamentar esta concessão, que prejudicará grande quantidade de arvoredos, que só se pode obter em largos anos”. Significou muito mais. Resultou no abandono, de vez, da ideia do Jardim Botânico.

Mauá acompanhara pari-passu a construção da ferrovia, que considerava a sua “menina dos olhos”. Investiu recursos próprios, pois houve pendências com os ingleses e tampouco não podia contar com ajuda do governo imperial, imerso no sorvedouro de vidas e recursos que foi a Guerra do Paraguai. Foram então edificadas as primitivas estações, da Luz (1867) e, pouco tempo depois, a Sorocabana, a segunda rota de interiorização. A praça em frente ao Jardim recebeu iluminação a gás e bondes com tração animal (burros), que partiam do Largo do Rosário (Praça Antonio Prado). A Estação e o Jardim acabaram formando um par harmonioso. Da Luz, os trens seguiriam para a Água Branca e Lapa, o segundo pátio de operações, até a travessia do Tietê, no Piqueri. Do outro lado do rio, tendo como pano de fundo o Pico do Jaraguá, abria-se o caminho para Jundiaí.

O estabelecimento da Estação Central da SPR na Luz selou também o destino do Bom Retiro. Seu centro-sul foi comprimido, de um lado, pelos leitos das estradas de ferro, separados por paredões e, do outro, pelo Caminho de Campinas, a futura Av. Tiradentes. A parte norte do Bom Retiro era constituída por várzeas, justamente pela confluência dos dois principais rios da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê: o Tietê e o Tamanduateí.

Os loteamentos das chácaras não puderam oferecer mais que terrenos de frentes estreitas, gerando casas geminadas, vilas e construções econômicas, muitas com porões, contrastando com o bairro do “outro lado da ferrovia”, de padrão mais elevado, os Campos Elísios. Os valores dos imóveis para locação ou compra, no Bom Retiro, ficaram baixos. Atraíram a atenção de pequenos comerciantes, oficinas e pequenas indústrias. Como moradores, sucessivamente imigrantes de outros estados e países. Com relação aos últimos, este fenômeno continua até os dias presentes, em escala não observada em nenhum outro bairro paulistano.

No final do século XIX, houve sensível aumento de imigrações pelo porto de Santos, justamente a mão de obra para os novos cafezais e para a indústria nascente. A Estação da Luz foi reconstruída. O edifício atual, com estrutura metálica, de 1901, importado da Inglaterra, tornou-se um cartão postal de São Paulo. O leito da via férrea foi rebaixado e assentou-se um viaduto pré-fabricado, na parte final da Brigadeiro Tobias, antiga Rua Alegre, e um outro, menor, na Florêncio de Abreu. A intenção era evitar passagens em nível e facilitar o tráfego de bondes elétricos, recém-implantados pela “Light” (fundada em Toronto, em 1899). A ausência de porteiras foi fundamental, décadas depois, para a ligação rodoviária Norte-Sul.

Mais um viaduto, na parte final da Couto de Magalhães (antiga rua do Bom Retiro), gêmeo do da Brigadeiro Tobias, facilitou o acesso ao bairro. Também foram executados os pontilhões sobre a Nothmann/ Silva Pinto, abrindo outra passagem. A Prates, que já existia entre Três Rios e Bandeirantes, prolongou-se como continuação natural da Couto de Magalhães, bifurcando com a José Paulino (R. dos Immigrantes - como era conhecida à época). O quarteirão Prates, Ribeiro de Lima e José Paulino ficou fisicamente apartado da área ajardinada, e então, loteado a particulares.

O Jardim da Luz contava com espécimes vegetais, estatuária e chafarizes admiráveis. Bem frequentado, bandas tocavam no coreto; havia um minizoológico e uma torre, com 20 metros, servindo de mirante e observatório meteorológico (demolida em 1901, por risco de desabamento). Retrato de uma época, não satisfez, porém, a carência mais moderna por um parque onde desse para estirar-se ao sol, propiciar algum esporte ou piqueniques. No entanto, coube-lhe papel muito importante no desenvolvimento do bairro.

Por que os judeus escolheram o Bom Retiro?

1904

O bairro existia há uns 25 anos. Portugueses, italianos, espanhóis e judeus alsacianos já haviam passado por lá. Meyer Goldstein e sua família, da Polônia, foram os primeiros judeus do Leste europeu a se mudar para o bairro. Goldstein abriu uma loja de móveis, na Ribeiro de Lima. Aos poucos foram aparecendo mais famílias e jovens solteiros. Antes deles, Note Tabacow, da Bessarábia (hoje, Moldova) e Maurício Klabin (da Lituânia) vieram sós e aos poucos trouxeram parentes, mas não se radicaram no Bom Retiro.

Os primeiros judeus imigrantes do Leste europeu eram resultado de uma triste tríade: pobreza, desespero e antissemitismo. Tratava-se de pessoas de pouca ou média escolaridade. Mas com bons conhecimentos gerais e políticos. Principalmente, consciência nacional judaica pronunciada. Vieram com muita vontade de superar dificuldades materiais, assegurando condições melhores aos descendentes.

As perspectivas econômicas do Brasil, antes da 1ª Guerra Mundial, não eram animadoras: queda nas exportações de café e a perda do mercado mundial da borracha. Circulavam notícias realçando a insalubridade do país, especialmente com relação à febre amarela, mesmo após os surtos estarem debelados. Assim as primeiras escolhas recaíram nos Estados Unidos, Argentina, Europa Ocidental ou na Alemanha, vista então, como exemplo de cultura e tolerância.

Houve, entre os imigrantes, quem pensasse em retornar, após uma curta permanência, ou reencontrar os familiares. Sobreveio a conflagração e o consequente colapso das travessias atlânticas. A Europa estava em chamas. Não havia mais volta. Entretanto, São Paulo passava por uma transformação histórica, que ficou patente quando uma rica gama de produtos “made in Brazil” foi exibida na Exposição Municipal de 1917, no inconcluso Palácio das Indústrias. Um ano com acontecimentos decisivos (Declaração Balfour, Revolução Bolchevista e entrada dos EUA e Brasil na 1ª Guerra Mundial contra a Alemanha), acontecimentos esses que, em breve, polarizariam o mundo judaico nas diversas tendências sionistas e socialistas. Entre os imigrantes, o inesperado e genuíno encanto pelo Brasil e seu povo...

Além do proverbial gregarismo, tem-se que considerar o seguinte: a proximidade da Estação da Luz (principalmente, depois da versão definitiva) trazia benesses, sem a severa deterioração social das vizinhanças, verificadas décadas após. Era a principal estação ferroviária de uma cidade em vigoroso processo de industrialização, situada a cerca de dois quilômetros do seu marco zero. Atraiu transporte urbano e melhoramentos públicos, tornando fáceis as extensões destes às ruas próximas. Uma situação naturalmente propícia ao afluxo de grande número de transeuntes onde pôde vicejar um centro comercial, em volta do qual assentar-se-iam oficinas de costura, residências e instituições comunitárias.

A presença, fora do comum, de um Jardim Público junto à Estação interessaria às famílias em formação ou aos que tivessem idosos em casa. Os preços dos imóveis eram acessíveis, como se viu, pela forma como foram feitos os loteamentos. A José Paulino, além de centro comercial, tornou-se um polo fornecedor de mercadorias para os vendedores a prestação, principal opção para os imigrantes, na sua maioria jovens sem capital, formação profissional e conhecimento da língua. O local dispunha de transporte fácil a todos os bairros e subúrbios (Luz e Sorocabana) operados pelos prestamistas. A rua era atravessada por bondes que atingiam partes menos habitadas do bairro, e ensejou o adensamento do número de residências. Morar no Bom Retiro, para um clientéltchik, como eram conhecidos os prestamistas em iídiche, facilitava a estocagem e a entrega das encomendas. Em contrapartida, vários estabelecimentos da José Paulino direcionaram seus produtos aos itens que mais tinham saída nas vendas dos prestamistas. Para muitos estabelecidos eles eram o sustentáculo, uma renda segura. Os atuais crediários foram os beneficiários do know-how arduamente adquirido por nossos antepassados. Atividade difícil, mas lícita (licenças anuais eram concedidas pelo Departamento da Fazenda da PMSP), permitia acesso ao sonho generalizado: estabelecer-se com lojas ou pequenas confecções. Os que atingissem a meta, por sua vez, dariam emprego a caixeiros, costureiras, bordadeiras, rendeiras, passadores e transportadores que puxavam carroças de mão. Muitos destes empregados e prestadores de serviços eram correligionários que moravam no bairro.

Havia sido a profissão de vendedores a prestação herdada do Velho Mundo? Fenômeno semelhante deu-se nos EUA e na Argentina. Werner Sombart, renomado sociólogo alemão, afirmava (em 1911) que era uma tradição judaica europeia, registrando a presença de judeus entre hausierers na Alemanha, colporteurs na França e peddlers na Inglaterra. Estes qualificativos referem-se ao genérico mascate, ou vendedor ambulante de quinquilharias. Porém, a venda parcelada dava-se a partir de um valor mais elevado, tipo detransação característica da maior parte dos clientéltchiks brasileiros, que ofereciam para um segmento dos consumidores – a florescente classe média –, artigos que, de outra forma, não estariam ao seu alcance.

Uma Kehilá de fôlego curto

1912 - Implantou-se, em São Paulo, uma Kehilá (centro comunitário global). É uma forma organizacional muito antiga e havia modelo similar e próximo, o argentino: a “Congregación Israelita de Buenos Aires”, fundada em 1862. Processos paralelos e simultâneos ocorreram no Rio de Janeiro e em Porto Alegre (mais próxima a Buenos Aires e às colônias agrícolas da JCA - Jewish Colonization Association). Numa tarde de domingo, em 1913, inaugurava-se festivamente a nova “Communidade Israelita de São Paulo”. O título é pomposo quando se estima que a coletividade talvez não passasse de 100 famílias.

A sede, uma casa de esquina (comprada por 24 contos de réis, sendo nove de entrada e o restante, a prazo), na Corrêa dos Santos, 26, com mais uma porta pela rua da Graça, abrigou a sinagoga Kehilat Israel. A região fazia parte da antiga Chácara Dulley, loteada em 1904, com arruamentos inseridos no tecido urbano com sensatez e oportunidade, como o prolongamento da Três Rios até a Silva Pinto (rota de interligação Tiradentes/ Campos Elísios) e a abertura das novas vias, com os nomes provisórios de X e Y (Corrêa de Mello e Corrêa dos Santos), que ensejaram a instalação de instituições emblemáticas do bairro, a Faculdade de “Pharmácia” (1905) e o Colégio de Santa Inês (1907) .

A diretoria da nova sociedade contava com integrantes de famílias pioneiras, como Tabacow, Nebel, Lichtenstein, Lafer, entre outros. Nos registros de cartório de 1912, o presidente era Bernardo Nebel (1854-1923) e o vice, Isaac Tabacow (1870-1930). Na inauguração, os cargos eram ocupados, respectivamente, por Idal Tabacow (Yehuda ou José Tabacow Hidal, 1871-1939) e Abraham (Adolpho) Kauffmann (1874-1914). Este último, considerado o “intelectual” do grupo, faleceu prematuramente, tendo sido sua enfermidade registrada, com pesar, por Peretz Hirshbein, dentro do relato da viagem do famoso dramaturgo à América do Sul, em 1914.

Quase todos eram conterrâneos (Securon, Bessarábia) e ligados por laços familiares. Um filho de Kauffmann, Moysés, futuro líder comunitário, casou-se, anos mais tarde, com Elisa, filha de Isaac Tabacow, completando o ciclo de parentescos. Sem dúvida, uma equipe dinâmica. Logo foram tomadas as primeiríssimas providências:

Móveis para a sinagoga, para que se pudesse oficiar, ainda em 1913, as “Grandes Festas”;

A vinda de um shochet da Europa para o abate casher. Muitas famílias moravam em casas com quintais, o que possibilitava a criação de galinhas. O shochet cumpria a sua missão, visitando os clientes. Também ia, uma vez por semana, para Presidente Altino (subúrbio da Sorocabana hoje pertencente a Osasco), onde a Companhia Continental (Continental Products Company), uma multinacional de carnes incorporada mais tarde pela Wilson, procedia a um abate bovino sob sua supervisão. A carne era encaminhada para um açougue casher, também criado pela “Communidade”. O shochet,do qual só ficou preservado o prenome, Samuel, exercia também as funções de mohel, o oficiante da cerimônia judaica de circuncisão dos recém-nascidos do sexo masculino, brit milá.

O cemitério. O doador foi Maurício Klabin. Competiria à Kehilá o papel da Chevrá Kadishá (a Sociedade Cemitério), e continuaria assim, pelo menos até à inauguração do Cemitério de Vila Mariana, em 1923.

Ensino. Criação de uma classe de alunos, na sinagoga, com aulas ministradas pelo professor Ihiel Itkis, proveniente da Argentina, com passagem pela Colônia “Quatro Irmãos”, no Rio Grande do Sul. Esse “prenúncio” de escola foi patrocinado pela Sra. Berta Klabin, com o nome de “Talmud Torá” (a escola homônima, maior, e de cunho religioso, foi fundada várias décadas mais tarde). Os alunos da “escolinha” recebiam fundamentos do ensino religioso, do hebraico e do iídiche. Evidentemente, tinha função complementar ao curso oficial primário em português que, para a maioria, era realizado nos grupos escolares das redondezas (Prudente de Morais, Marechal Deodoro e João Kopke, conhecido como Grupo Escolar da Alameda do Triunfo [Cleveland]). Os mais abonados preferiram as escolas alemãs, Benjamin Constant e Porto Seguro. A entrada do Brasil na guerra, em 1917, contra a Alemanha, certamente interferiu nessa prática.

Entretenimento. A Kehilá formou um grupo de teatro amador (“Círculo Philo-Dramático” ) para a encenação de peças em iídiche de autores como Goldfaden e Gordin. Adquiriram-se livros em iídiche, em Buenos Aires, para os ávidos leitores. Com relação às crianças, não havia muitas preocupações. Elas brincavam nas ruas, nas casas de amigos e no Jardim da Luz. Registre-se ainda, em 1913, a inauguração do “Cine Marconi”, à rua Corrêa de Mello nº 6, um marco do Bom Retiro, que perdurou por mais de 40 anos.

Comitê Brasileiro de Socorro às Vítimas da Guerra: A seção de São Paulo, sob a presidência de Bernardo Nebel, foi criada no início de 1916. Era a equivalente ao que o “Joint” americano implantara para ajuda aos moradores de cidadezinhas europeias, próximas ao front oriental, deslocados de suas casas pelo Império Russo para evitar colaboracionismo às tropas alemãs e austríacas. Estes deslocamentos produziram fome, doenças e mortes em populações civis pacíficas (amargo paradoxo: judeus morriam por ajudar alemães, 25 anos antes do Holocausto).

Benemerência e auxílio médico: A Kehilá fez o que pôde pelos menos aquinhoados, começando por não lhes cobrar mensalidades. Não eram poucos os que moravam em porões ou em subúrbios distantes. Previdência Social, nem pensar.

A Santa Casa, sempre sobrecarregada, era o único recurso médico-hospitalar gratuito. Assim, não foi possível à Kehilá de 1912/1913 atender a todas as demandas, apesar do seu ambicioso programa. Em breve, outras instituições surgiram. Em 1915, a “Sociedade Beneficente das Damas Israelitas”, precursora da “Ofidas”, que atuou na área da saúde e creches. No ano seguinte, a “Sociedade Amigos dos Pobres - Ezra”, provinda de uma entidade criada em 1912, no Rio de Janeiro, chamada “Achi Hezer” (Ajuda ao meu irmão, em hebraico). Dava assistência aos imigrantes desde a sua descida dos navios, até que obtivessem teto e trabalho. Preocupou-se especialmente com a tuberculose, que assombrava a todos. Após décadas, todas essas organizações beneficentes, e mais algumas outras, seriam fundidas na atual Unibes.

A sinagoga “Kehilat” era pequena, e houve disputa pelos assentos. No âmago da questão havia o ressentimento dos mais pobres, que reclamaram que os mais ricos eram favorecidos. Assim, construiu-se uma nova sinagoga, em 1916,a Groisse Shil ou Knesset Israel, na rua Capitão Matarazzo, hoje Newton Prado.

A “Communidade”, então presidida por Isaac Tabacow, mudou seus estatutos, permitindo aos associados das outras entidades permanecerem como remidos. Com realismo, o próprio Isaac Tabacow participou da Ezra. As esposas de Bernardo Nebel e Isaac Tabacow (as duas Olgas, ambas Goldes e primas), figuram entre as fundadoras da Sociedade das Damas que antecedeu a Ofidas. Conseguiram o apoio humanitário do Dr. Walter Seng, um dos fundadores do Hospital Santa Catarina, que atendeu a muitos pacientes do Bom Retiro que pagavam apenas aquilo que podiam.

A imigração maciça ao Brasil começou após o fim da Grande Guerra. As mudanças nas leis de imigração nos EUA, com restrições a judeus e oscilações na capacidade de absorção da Argentina, favoreceram o Brasil. Foi assentada, então, uma base razoavelmente sólida. E os novos imigrantes, não obstante o trabalho cotidiano, reuniam-se até altas horas para organizar escolas, sociedades beneficentes, bibliotecas, grupos teatrais, centros culturais, jornais, em geral tingidos de cores políticas.

Que tal um passeio pelo bairro, hoje? A sinagoga Kehilat Israel, reconstruída entre 1954 e 1960, abriga o interessante Memorial da Imigração Judaica e do Holocausto. Ainda há judeus no bairro, mas menos, bem menos. Em compensação, a Corrêa dos Santos chama-se “Lubavitch” e a Tocantins, “Talmud Torá”. A vila Dom Bosco é Samuel Brenner. Junto à foz do Tamanduateí há uma sucessão de praças: Sérgio Terpins, Sam Rabinovitch, Maimônides, Luiz Parnes, Jerusalém.

No Pletzel silencioso, ainda parecem ecoar discussões acaloradas, dos grupinhos que tentavam “resolver todos os problemas do mundo”. Ao longe, surge um vulto: um velhinho de avental curto, uma cesta num braço: beigaleiro, beigaleiro...1.

1     Neologismo, em português, proveniente do iídiche: vendedor de rosquinhas típicas da culinária judaica, os “beiguels” ou o diminutivo “beigales”. Nos EUA, as roscas tomaram o nome de “bagels”.

Fotos: cortesia do Acervo do Museu Judaico de São Paulo

Abrahão Gitelman é engenheiro civil. Durante muitos anos, pertenceu aos quadros diretivos do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro. Atualmente é voluntário do Centro de Memória do Museu Judaico de são paulo.

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