Sobre a participação dos judeus durante o domínio holandês no Brasil, foram escritos, divulgados e até ensinados conceitos enganosos, baseados em mitos e preconceitos, relatos e abordagens parciais.
O assunto é vasto, e é necessário situar o momento histórico. O período do domínio dos holandeses começa em 1630 e finda em 1654, sem contar com o ano de 1625, de forma efêmera, na Bahia. Em 1630 Portugal ainda pertencia à Espanha, que desdenhava dos portugueses, dando-lhes a alcunha de “judeus”. Em 1640, Portugal volta a ser independente. Os judeus, nesse período, atingiram um número relevante, tornando-os conspícuos, formando o que alguns chamam de nação hebréia, nação judaica, incomodando por sua visibilidade tanto o conquistado como o conquistador.
Um dos erros refere-se à grande participação financeira na WIC (Companhia das Índias Ocidentais). Fundada em 1621, tinha por objetivo quebrar o monopólio comercial das colônias nas mãos das potências ibéricas e a obtenção do lucro. Havia uma administração central de dezenove diretores, os Heeren XIX. Do capital inicial de três milhões de florins, os judeus entraram somente com trinta e seis mil. Em 1630 havia em Amsterdã cerca de mil judeus e apenas 21 eram considerados ricos.
A participação financeira compulsória de cristãos-novos em diversos empreendimentos portugueses é notória. Segundo Varnhagen, dois cristãos-novos que emprestaram ao rei 300 mil cruzados, por influência do padre Antonio Vieira, foram logo depois perseguidos e presos pela Inquisição. A Companhia Geral do Comércio do Brasil foi viabilizada graças ao contato de Vieira com os cristãos-novos de Lisboa e a sefaraditas portugueses de Rouen, na França. Encontrou forte oposição do Santo Ofício, mas D. João IV a criou formalmente em 1649.
Uma das acusações que pesam sobre os judeus, a de terem eles ou os cristãos-novos aberto as portas do Brasil para o invasor, pressupondo deslealdade, impõe algumas reflexões: Quem traiu quem? Só os judeus foram traidores? A perfídia é apanágio dos israelitas ou um dos estereótipos?
Lembremos que até 1580 urcas* flamengas transportavam mercadorias da Europa para Lisboa, daí levando vinho e especiarias orientais em direção à África, onde trocavam diversos artigos por escravos que vinham ao Brasil, cambiados por pau-brasil e açúcar, produtos redistribuídos pela Europa. Essas viagens triangulares não foram afetadas no início do domínio espanhol. Os oficiais e marinheiros holandeses não teriam conhecimento das regiões que iriam atacar, sobretudo os portos da Bahia e Pernambuco, que lhes eram familiares?
Southey comenta: “Aos judeus …nem lhes faleciam motivos para recearem que o mais infernal sistema de perseguição que jamais inventou a maldade dos homens estivesse a ponto de ampliar-se a uma parte dos domínios portugueses… A Inquisição prendera ultimamente no Porto quase todos os mercadores de origem judaica… fora a superstição pretexto, a cobiça motivo”. Frei Manoel Calado escreveu que o inimigo de tudo sabia porque recebiam avisos dos cristãos-novos, mas pondera: “Nesta guerra nunca faltaram traidores”.
A deserção ou traição de mercenários era comum. Passaram-se para o lado dos holandeses até sacerdotes católicos como o padre Manuel de Morais, frei Antonio Caldeira, além dos muitos e ricos senhores de engenho que, mais tarde, entraram para a guerra no lado contrário, por muito endividamento com o governo holandês…”. Uma Companhia inteira, 280 ao todo, traiu os holandeses. A tentativa de subornar, corromper e o estímulo à traição eram freqüentes nos dois lados. A delação era muito usada, inclusive pelos escravos negros, que por diversos motivos ameaçavam contar sobre a existência de armas.
Após a restauração de 1640, o governo portu-guês fazia diplomaticamente, como convinha, o jogo duplo. Havia espionagem recíproca e guerrilha permanente com a seqüência de mortes, incêndios e pilhagens nos engenhos, ensejando atrocidades mútuas.
Sujeito também a acusações, o item referente à ocupação exercida pelos judeus no Brasil pode ser submetido a várias abordagens e ângulos. Judeus e cristãos-novos exerceram o comércio em Portugal durante a era medieval, emergindo nos tempos modernos como artesãos, mercadores, sempre estigmatizados e proibidos de exercerem outras funções, profissões e cargos. Fornecedores do capital necessário para a aventura oceânica dos descobrimentos, participaram, passo a passo, dos grandes eventos. Devido ao papel de intérpretes, ao sucesso e ao enriquecimento de alguns, os judeus eram olhados com animosidade pela concorrência cristã, tanto católicos ou papistas, como por pregadores fanáticos.
Poucos judeus puderam comprar engenhos de açúcar, porém de todo modo estavam envolvidos com o comércio açucareiro. Também ocuparam ramos do comércio negligenciados pelos cristãos, tais como as vendas a varejo, a corretagem e as cobranças de impostos. Os holandeses preferiam os corretores judeus, que conheciam sua língua e eram mais confiáveis.
Os judeus foram acoimados pelo exercício do comércio ilícito, o que é refutado por Wätjen. Frei Manoel Calado afirma sobre os judeus: “…não trazendo mais que um vestidinho roto… em breves dias se fizeram ricos com tratos e mofatras… (trapaças)“. Boxer contesta, afirmando que se alguns chegaram pobres e conseguiram enriquecer, muitos somente tinham uma modesta habilidade, enquanto outros permaneceram em pobreza abjeta. Apenas oito eram mercadores ricos e proprietários de sobrados.
Quando o Conselho dos Dezenove resolveu que os escravos só poderiam ser vendidos por dinheiro, alguns judeus e cristãos-novos uniram-se comprando-os por preço baixo e revendendo-os mais caro, embora aceitassem pagamentos em prestações e em açúcar. Foram acusados de especuladores quando as dívidas cresceram por causa da crise açucareira (1641-44). Todavia, o débito não era privilégio dos flamengos ou dos cristãos-velhos. Alguns judeus foram presos e Moisés Abendana, porque devia 12.000 florins, suicidou-se em 1642. Daniel Gabilho, fora condenado à forca por dívidas e fuga; amigos conseguiram comutar a sentença mediante o pagamento de 15.000 florins: foi banido para a ilha São Tomé por dez anos.
Os judeus não podiam participar do poder político. Eram chamados apenas em ocasiões especiais, para opinar e colaborar em decisões de auxílio financeiro. Existem algumas evidências sobre sua participação na ação bélica:
1º) Os voluntários, servindo como mercenários na expedição: 2º) na milícia – serviço obrigatório para os homens livres, criado por Nassau; e 3º) os 40 judeus que, em 1645, saíram numa expedição pelo mar ao encontro dos inimigos. Além desses dados, num dos mapas holandeses consta uma fortaleza, Excubiae Judeorum, construída em pedra. Os judeus foram dispensados da vigília aos sábados em troca de pequena multa, privilégio esse que foi suspenso em 1645, com a rebelião geral.
Não se sabe ao certo quantos participaram da invasão, dos ataques diversos, quantos participaram da milícia para proteger e defender os moradores. Wiznitzer chega ao número de 350, num total de 700, de acordo com o censo realizado em 1646. Entretanto, sabemos que havia oficiais e soldados. Moisés Navarro veio como aspirante na Companhia do Capitão Bonnet, tornando-se um senhor de engenho. Foi ele o intérprete entre o comando holandês e o General Francisco Barreto.
Com o Papa Paulo III, em 1536, passou a vigorar a Inquisição, já tendo ocorrido duas Visitações do Tribunal do Santo Ofício (1591 e 1618), na Bahia e em Pernambuco. Os judeus aderiram aos holandeses porque a causa também era sua; contudo, além do lucro visavam viver numa região em que pudessem professar sua religião, sem temor ao confisco de bens, e/ou condenação à fogueira por bruxaria, traição, heresia, apostasia e impureza de sangue. Assim, “preferiam morrer com a espada na mão do que nas chamas”, comentou Nieuhoff. O Alto Conselho escreveu a André Vidal de Negreiros: ”Não compreendemos porque os judeus aprisionados na guerra são martirizados e mortos de maneira tão brutal”. Wätjen concluiu: “Triste era a morte que aguardava os israelitas que na luta caíam nas mãos do inimigo”.
O número de judeus que habitaram o Brasil holandês – fossem oriundos da Europa ou os cristãos-novos que como tal se declararam ou foram considerados pelo Santo Ofício – também é assunto polêmico. Va-riam de um total de cinco mil almas (D. Luis de Menezes (1632-90) a 300 (Wolff).
Ao tempo do domínio holandês, os judeus puderam seguir sua religião com relativa liberdade. Contudo, em 1638, o Sínodo proibiu a celebração do serviço religioso judaico nas ruas ou em edifícios públicos, o que foi, na verdade, ignorado, atraindo a ira e protestos de religiosos cristãos. Com freqüência, judeus eram punidos sob a acusação de blasfêmia, de difícil defesa. Preocupados, os judeus da Holanda culpam o governo de ter favorecido as perseguições e haver introduzido uma verdadeira Inquisição. Acusavam os Escabinos que, em vez de entregarem ao Conselho de Justiça o julgamento dos casos, avocavam ilegalmente ao seu foro os delitos de blasfêmia. “Um judeu foi lapidado pela multidão…” registra Wätjen.
Todos os judeus foram considerados cidadãos da comunidade, sem discriminação entre os ashquenazitas e os sefarditas – uma inovação – tendo direitos iguais e não eram divididos em classes (alta e baixa), como nas sinagogas de Londres. Em 1640 foram redigidos 42 regulamentos – haskamot – que norteavam a conduta dos judeus, entre os quais, alguns previam ajuda e donativos para pobres, órfãs e redenção de cativos, doados à Santa Companhia de Dotar Órfãs e Donzelas Pobres. Reuniam-se em duas sinagogas – Rochedo de Israel, no Recife (já construída em 1641), e Escudo de Abraham, em Maurícia – além de pequenas congregações na Paraíba e em Itamaracá. O culto, proibido em 1638, foi restabelecido em 1642. As figuras que sobressaem são a do rabino Isaac Aboab da Fonseca, primeiro escritor judeu das Américas, e do chacham (sábio) Moisés Raphael de Aguilar. Aboab escreveu um poema sobre as agruras sofridas pelos judeus em 1646: “Erigi um memorial para os milagres do Senhor”.
Com a saída do Conde de Nassau, a situação ficou diferente – foram fechadas as sinagogas e os judeus só podiam realizar suas cerimônias religiosas no interior de suas casas, informa Netscher. Barleus nos fornece a lista das restrições impostas.
Reportando a Gonsalves de Mello, servimo-nos daquele universo humano, levantando uma lista de ofícios e ocupações exercidas pela gente da nação: carregadores de navios (127), compradores de negros escravos (115), comerciantes de roupa, tecidos, vinho, açúcar, alimentos, madeira, etc. (46) donos de engenho (4), médicos (6), professores de garotos e da Lei de Moisés (4) chacham (termo que engloba sábio, mestre, rabino, conselheiro) (5). Ceramistas, ourives, intérpretes oficiais, havia dois em cada atividade; aparecem também dois atores, além de um nas categorias de advogado, calígrafo, estudante de filosofia, tradutor e músico. De resto, 7 militares, em diversos escalões. Em 1642 proibiu-se aos judeus realizarem comédias, sinal que, de alguma forma, encenações teatrais eram realizadas.
Percebemos que, no século XVII, a chamada Nação Judaica estava inserida, pelas atividades dos seus componentes, no tecido da sociedade, na economia e na cultura do nordeste flamengo, desempenhando importante papel na história do sucesso e do fracasso do Brasil holandês. Para a WIC, os judeus foram acionistas, aliados fiéis e necessários pelo conhecimento das duas línguas e atuação no campo econômico. Muitos pereceram no cerco, de fome ou nas guerrilhas, armas nas mãos. Diante dos reveses militares, abandonaram a região. Regressaram empobrecidos para a Holanda ou migraram para o Caribe, Suriname, Jamaica, Barbados e Nova Amsterdã. Os cristãos-novos que não se haviam declarado abertamente, voltaram-se para as forças portuguesas, na esperança de serem esquecidos e incorporados à sociedade católica. Viviam em sobressaltos. Contudo, com o fim da distinção entre cristãos-velhos e novos, decretado por Pombal em 1773, no reinado de D. José II, esqueceram suas origens – pois haviam-se tornado bons católicos.
Esther R. Largman
Escritora e pesquisadora
Bibliografia
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