Chanucá e Purim – as duas festas rabínicas – celebram milagres que o Povo Judeu vem comemorando, geração após geração, há mais de dois mil anos. As festas bíblicas, particularmente Pessach – que marca a gênese do Povo Judeu como nação plena – também celebram, de uma forma ou de outra, milagres realizados por D’us com nossos ancestrais. Não há dúvida de que os milagres predominam no Judaísmo e constituem um assunto que a maioria das pessoas julga fascinante. Mas, o que é um milagre? Como o define o Judaísmo? E qual o seu propósito?

Os milagres de Chanucá

O principal mandamento de Chanucá é o acendimento da Chanuquiá – o candelabro de oito braços. Durante as oito noites da festa, acendemos a Chanuquiá com azeite de oliva ou velas: um recipiente com óleo ou uma vela na primeira noite; dois na segunda noite; três na terceira, e assim por diante. Uma das bênçãos que recitamos antes de cumprir essa mitzvá é a prece de Al HaNissim: “Bendito És Tu, Eterno nosso D’us, que operaste milagres (Nissim) para nossos antepassados, naqueles dias, nesta época”.

Como o acender da Chanuquiá é o principal mandamento da festividade, muitas pessoas acreditam que o propósito dessa festa bonita e inspiradora é celebrar o famoso milagre do azeite. A história é bem conhecida: após vencer o poderoso exército greco-sírio na Terra de Israel e recapturar o Templo Sagrado de Jerusalém, os judeus encontraram no Templo apenas um recipiente de azeite de oliva ritualmente puro, que não havia sido profanado pelo exército de ocupação. Os judeus acenderam o recipiente, que continha azeite apenas para acender a Menorá do Templo por um único dia. Mas, milagrosamente, o azeite ardeu ininterruptamente por oito dias – número este muito significativo no Judaísmo, e que simboliza o sobrenatural.

O fenômeno do suprimento de azeite de oliva que queimou sem parar por oito dias é, com certeza, espantoso – sobrenatural. Tivesse o recipiente de azeite queimado apenas algumas horas a mais, poder-se-ia encontrar alguma explicação científica plausível para isso. Mas aquele recipiente, que levava o selo do Cohen Gadol (Sumo Sacerdote), e que, portanto, não havia sido profanado, continha a quantidade exata de azeite para arder por um dia. Como explicar que tenha ardido durante oito dias? Foi um fenômeno sobrenatural; as leis da Natureza cessaram de agir sobre o recipiente de azeite. E, por conta do milagre, a Menorá do Templo permaneceu acesa com azeite ritualmente puro durante oito dias – interessante notar que foi o tempo necessário para que os judeus produzissem mais azeite ritualmente puro. A Halachá, a Lei Judaica, teria permitido que eles acendessem a Menorá com óleo que não fosse ritualmente puro, mas o milagre evitou essa situação, não ideal.

A história encantadora de como o suprimento de azeite de um dia ardeu durante oito dias é, sem dúvida, assombrosa. Milagrosa. Mas será que merecia dar origem a uma festa religiosa, que vem sendo celebrada pelo Povo Judeu, ano após ano, há mais de dois milênios? Instituir mitzvot, mandamentos Divinos, como o acendimento da Chanuquiá e a recitação da oração completa do Hallel durante os oito dias da festa, precedidos por bênçãos que contêm o Nome de D’us, não são práticas simplistas. Recitar uma bênção desnecessária constitui uma transgressão extremamente grave: é tomar o Nome de D’us em vão. Nossos Sábios não teriam instituído a festa de Chanucá – suas mitzvot e bênçãos – a não ser que soubessem ser essa a Vontade Divina. Isso dá margem à pergunta: se Chanucá é apenas a celebração de como o suprimento de azeite para um dia queimou durante oito dias, por que razão, então, teria o Todo Poderoso nos ordenado instituir o ocorrido como uma data sagrada do Judaísmo?

Em toda a História Judaica, houve inúmeros milagres – muitos dos quais bem mais impressionantes do que o milagre do azeite, mas não foi instituída nenhuma festividade para celebrá-los. O Tanach (os cinco livros da Torá, os livros dos Profetas e os Escritos Sagrados) e o Talmud são repletos de relatos milagrosos. Por exemplo, o Talmud nos conta acerca de um milagre que também envolveu azeite de oliva e que se pode dizer que foi um fenômeno sobrenatural mais impressionante do que o celebrado em Chanucá. Certa vez, na véspera do Shabat, Rabi Chanina ben Dosa, famoso no Talmud pelos milagres que realizava, perguntou à sua filha por que estava tristonha. Ela respondeu ao pai que não podia acender as velas de Shabat por não ter azeite de oliva, apenas vinagre. Rabi Chanina lhe responde que acenda as luzes de Shabat com vinagre, ainda que não fosse inflamável. “Aquele que ordena ao óleo que queime, dirá ao vinagre para queimar”, disse à filha. O Talmud registra que a moça fez o que o pai lhe ordenava e, milagrosamente, as luzes se acenderam, assim permanecendo durante todo o Shabat.

É mais fácil encontrar uma explicação científica de como o suprimento de um dia de azeite durou oito dias do que explicar como o vinagre, não inflamável, pegou fogo e assim permaneceu durante mais de 24 horas. E, ainda assim, esse milagre do vinagre não mereceu se tornar uma data sagrada. Na verdade, diferentemente do milagre do óleo, que a festa de Chanucá tornou famoso, poucas pessoas conhecem a história do milagre de Rabi Chanina ben Dosa sobre o vinagre, para que sua família pudesse cumprir o mandamento Divino do acendimento das velas  de Shabat. Deveria ser evidente, então, que a festa de Chanucá não é apenas a celebração do milagre do azeite, que apesar de ter sido sobrenatural, está longe de ser singular ou mesmo especialmente impressionante se comparado com a multiplicidade de milagres e maravilhas ocorridas ao longo da história de nosso povo.

Se não foi para celebrar o milagre do azeite, por que razão, então, foi instituída a festa de Chanucá? Respondemos: para celebrar a vitória militar dos Macabeus. Imaginemos um final diferente para a história de Chanucá: os judeus recapturam o Templo Sagrado e testemunham o milagre do azeite. Mas, logo depois, os greco-sírios lançam um contra-ataque e saem vencedores. Mesmo se o Povo Judeu tivesse sobrevivido à derrota, será que teriam instituído a festa de Chanucá para comemorar o milagre do azeite – sem a vitória militar dos Macabeus? É claro que não. Se a história de Chanucá não tivesse terminado bem, o milagre do azeite, por mais impressionante que tenha sido, teria passado batido, especialmente porque teria sido associado a um evento terminado em tragédia, não em triunfo.

Nossos Sábios instituíram a festa de Chanucá para celebrar um milagre bem maior em importância do que o que ocorrera com o azeite do Templo: uma vitória militar cujas chances de sucesso eram extremamente exíguas e, ainda assim, extremamente necessária para a sobrevivência do Judaísmo e de nosso povo. Se os Macabeus tivessem perdido a guerra, é bem provável que todo o Povo Judeu se tivesse assimilado, fazendo com que o Judaísmo deixasse de existir. O verdadeiro milagre de Chanucá foi o fato de um grupo de poucos guerreiros judeus conseguirem derrotar a superpotência militar da época, com isso assegurando a nossa continuidade como povo. Mas esse milagre, diferentemente do ocorrido com o azeite, não constituiu uma ocorrência sobrenatural. As pragas dos Céus não caíram sobre o exército greco-sírio, e os Macabeus não foram investidos de poderes sobre-humanos. Pelo contrário. Esses combatentes judeus tiveram que lutar arduamente para vencer a guerra. E mesmo sendo muitíssimo improvável, a vitória dos nossos guerreiros não foi um fato impossível de acontecer. Portanto, não podemos considerá-la sobrenatural.

Como já discutimos em vários artigos passados sobre Chanucá, muitas vezes, ao longo da história, as lutas de guerrilha sobrepujaram poderosos exércitos. Os Estados Unidos venceram a Alemanha Nazista e o Japão, na 2ª Guerra Mundial. No entanto, poucas décadas depois, foram vencidos pelos guerrilheiros vietnamitas. E o poderoso exército soviético, que ameaçava o mundo inteiro com suas ambições cruéis e imperialistas, e seu vasto arsenal nuclear, foi expulso do Afeganistão por ferozes rebeldes muçulmanos. A vitória dos Macabeus, por mais improvável e impressionante que tenha sido, não foi um evento único na História, nem foi um produto de fenômenos sobrenaturais.

A festa de Chanucá nos faz recordar dois eventos: a vitória militar dos Macabeus e o milagre do azeite ocorrido quando os judeus reconquistaram o Templo Sagrado de Jerusalém e o reconsagraram. Os dois eventos são expressos em nossas orações e nos mandamentos que cumprimos durante os oito dias da Festa das Luzes. Por um lado, a passagem de Al HaNissim – que não deve ser confundida com a bênção de Al HaNissim que recitamos ao acender a Chanuquiá – que é adicionada à oração da Amidá e de Birkat HaMazon (a bênção após as refeições) durante Chanucá, menciona o levante dos Macabeus e sua vitória. Por outro lado, o principal mandamento da festa é o acendimento da Chanuquiá, que nos recorda o milagre do azeite, no Templo.

Há significados diferentes entre esses dois eventos. A vitória militar foi necessária para o Povo Judeu – os Macabeus derrotaram forças poderosas, espiritual e fisicamente, que buscavam extirpar o Judaísmo –, mas não foi um acontecimento sobrenatural. Por outro lado, o milagre do azeite transcendeu as leis da Natureza, mas, praticamente, não teve grande importância. Sua relevância foi o fato de ter evitado a situação indesejável – mas permitida – na qual nossos antepassados teriam que usar azeite ritualmente impuro para acender a Menorá durante uma semana.

A comparação entre esses dois eventos nos leva a reconsiderar a definição do que é um milagre.  O que é preferível: um evento positivo e de grande significado, no qual não é violada nenhuma lei da Natureza, ou um evento sobrenatural que serve a um propósito limitado? Se os judeus tivessem que escolher entre uma vitória militar ou o milagre do azeite, qual teriam escolhido? A resposta é óbvia. Por essa razão, o trecho de Al HaNissim que é adicionado à Amidá e ao Birkat HaMazon durante os oito dias de Chanucá não menciona o milagre do azeite, apenas a vitória militar. O milagre que mereceu ser institucionalizado como uma festa judaica não foi o do fenômeno sobrenatural do azeite, por mais emocionante e encantador que seja, mas a vitória, difícil e heroica, de um grupo de guerreiros judeus.

Isso não significa que o milagre do azeite não foi extremante significativo. Como ensina o Talmud, D’us não viola as leis da Natureza – criadas e mantidas por Ele – sem uma forte razão para o fazer. Se o Todo Poderoso fez o suprimento de azeite queimar durante oito dias, certamente houve uma boa razão para isso. O significado e importância do milagre do azeite – sempre lembrando que o principal mandamento de Chanucá é o acendimento da Chanuquiá – é o fato de ter servido como um sinal dos Céus para o nosso povo. Foi por meio desse milagre – um evento sobrenatural que envolveu uma substância que simboliza tanto a Torá quanto Am Israel, o Povo Judeu – que os judeus entenderam que deviam sua vitória militar, que havia salvo o Judaísmo de ser obliterado, à Divina Providência, e não apenas à sua coragem e força. O mandamento do acendimento da Chanuquiá durante as oito noites da festa ensina geração após geração de judeus que é D’us quem garante a eternidade de Sua Torá e do Povo de Israel. Essa lição é especialmente relevante para esta época e para as Forças de Defesa de Israel, pois nos ensina que não basta ao Povo Judeu ter o melhor exército do mundo. Precisamos, também, da ajuda Divina para defender, vitoriosamente, nosso povo daqueles que nos querem destruir.

A definição simples, popular, de um milagre é que é um fenômeno que viola as leis da Natureza. Pode ter um propósito prático – como na história do Rabi Chanina ben Dosa, em que aconteceu um milagre para que um importante mandamento da Torá – o acender das velas de Shabat – pudesse ser cumprido. Contudo, um milagre pode ter pouco propósito prático, mas servir como sinal – como na história de Chanucá, com o milagre do azeite. Mas, por mais impressionante e emocionante que seja um milagre, ele pode ter bem menos significado e importância do que fenômenos ou eventos que não quebram as leis da Natureza, como a vitória militar dos Macabeus. Na verdade, se virmos a história de Purim, podemos corroborar a ideia de que um evento natural pode ser bem mais milagroso do que um sobrenatural.

Os milagres de Purim 

Um dos mandamentos da festa de Purim é a leitura da Meguilat Esther, um dos 24 livros do Tanach.  A Meguilat Esther, que conta a história de Purim, é uma narrativa na qual todos os eventos são naturais e consistentes. Ainda que a presença de D’us permeie a narrativa – há jejum, oração, lamentação e fé na salvação –, a Meguilá é singular por ser o único livro do Tanach em que D’us não é mencionado, explicitamente. Nenhum de Seus Nomes aparece no texto – nem na narração da história nem no diálogo entre seus personagens. Tampouco encontramos, na Meguilá, menção a qualquer evento sobrenatural. O contraste com os demais livros do Tanach, repletos de narrativas milagrosas, é impressionante. E apesar da ausência dos Nomes Divinos e de fenômenos sobrenaturais no texto, recitamos a bênção de Al HaNissim, reconhecendo os milagres de D’us, antes de ler a Meguilat Esther em Purim.

A razão para recitarmos essa bênção antes de acender a Chanuquiá é evidente: o cumprimento dessa mitzvá relembra o milagre do azeite, símbolo da eternidade da Torá e do Povo Judeu. Além disso, a vitória militar dos Macabeus não constituiu um evento sobrenatural – já que as leis da Natureza não foram violadas –, mas há nela um aspecto assombroso: os judeus, que não tinham praticamente chance alguma de vencer a guerra, venceram. Já na história de Purim, não há fenômenos sobrenaturais nem ocorrências assombrosas. A Meguilat Esther conta um relato aparentemente secular, que nem sequer combina com os demais livros do Tanach. É uma história de antissemitismo, influência política, sedução, engodo e violência. Contém muitos elementos de um bom romance, mas lhe faltam assuntos espirituais e um tom religioso. Uma leitura superficial da Meguilá não revela nada de milagroso sobre a história de Purim.

A única coisa surpreendente é a série de coincidências – eventos bem sincronizados – que acabaram tendo como resultado a salvação dos judeus do plano genocida de Haman. Ainda assim, não há dúvida de que ocorreram milagres (Nissim) em Purim, pois recitamos a bênção de Al HaNissim antes da leitura da Meguilá e ainda incluímos o trecho de Al HaNissim durante a reza da Amidá e de Birkat HaMazon, nesse dia festivo.

Para explicar os milagres de Purim, uma festa que nós, judeus, celebramos há quase 2.500 anos, é preciso mostrar a diferença entre dois tipos de milagres: ness e péle. Essa diferença também se aplica aos eventos celebrados em Chanucá.

Péle é algo extraordinário, fora do comum, como uma lei da Natureza que, indiscutivelmente, foi violada. O suprimento de óleo para um dia, que queima sem interrupção durante oito dias, constitui um péle – um fenômeno genuinamente sobrenatural – não um truque de mágica nem uma ilusão – para o qual não há explicação racional nem científica. Ness, por sua vez, é uma dádiva, uma graça Divina não necessariamente sobrenatural. A vitória dos Macabeus foi um ness – um desenlace significativo, altamente improvável, mas não sobrenatural.

Esses dois conceitos podem se sobrepor – alguns eventos são altamente significativos e também sobrenaturais –, mas com certeza não são idênticos. Um exemplo de péle é o episódio na Torá em que o cajado de Aharon – um objeto inanimado – se transforma em uma serpente viva. No entanto, até mesmo o péle mais assombroso pode ter pouquíssimo valor. O que aconteceu com o cajado de Aharon constitui uma impossibilidade científica, mas não forçou o Faraó a acatar a ordem Divina de libertar os judeus do Egito, especialmente porque os magos da Corte do rei egípcio conseguiram replicar aquele feito sobrenatural. Mas o ness, por sua vez, é basicamente definido por seu significado e resultado e se, porventura, é também um péle, isso não tem tanta importância assim. Nos parágrafos acima analisamos a história de Chanucá, e ficou claro que a vitória dos Macabeus – um ness – foi incomparavelmente mais significativa do que o suprimento de um dia de azeite que durou oito dias. Esse, um péle.

Para um D’us Infinito, Onipotente e Onipresente, que está acima de todas as definições e limitações, que cria e sustenta, continuamente, toda a existência e cuja Providência determina tudo o que ocorre no mundo, não faz a menor diferença se um evento é natural ou sobrenatural – ou seja, um ness ou um péle. Os fenômenos sobrenaturais nos causam surpresa porque somos seres finitos que vivem em um mundo natural, com leis de causa e efeito quase sempre previsíveis. Sendo assim, quando ocorre algo que perturba nosso entendimento de como o mundo funciona – quando as leis da Natureza são violadas –, ficamos perplexos. Mas o que nos devia importar não é como D’us age, respeitando ou não as leis da Natureza – e sim o resultado de Suas ações. O que importa, realmente, é saber se um evento ou fenômeno é significativo e positivo – e não sobrenatural. Um exemplo disso é a bênção de Gomel, recitada para agradecer a D’us por nos ter poupado e salvo do perigo. Essa bênção é recitada quando a salvação é natural ou não. O importante é ser salvo do perigo, recuperar-se de uma doença grave. Como isso acontece – se pode ou não ser explicado cientificamente – é menos importante do que o ocorrido.  A definição de um ness não depende da raridade da ocorrência e de sua improbabilidade, mas de seu resultado positivo. Quando uma ocorrência tem significado positivo, ela entra na categoria de um ness, ainda que não tenha nada de sobrenatural.

Recitamos a oração da Amidá três vezes ao dia, dizendo: “... Nós Te agradeceremos... por Teus milagres (Nissim, plural de ness) que estão conosco diariamente e por Tuas maravilhas e benevolências a todo momento”. Quais seriam esses milagres diários pelos quais agradecemos? Sabemos que o maná não continua caindo dos Céus, literalmente, como ocorreu com nossos antepassados no deserto. São extremamente raros os fenômenos sobrenaturais e a maioria dos dias de nossa vida são, na verdade, bem mundanos. Claramente, a referência na Amidá fala de milagres no sentido de eventos significativos. Esses, sim, acontecem a todo momento, e é por eles que devemos agradecer a D’us. Por exemplo, pensamos na abertura do Mar de Juncos na história do êxodo do Egito como o mais espetacular dos milagres, pois os mares não se abrem quando um ser humano ergue seu cajado. Mas, a maioria de nós não considera milagroso o nascer e o pôr do sol, pois consideramos esses dois

fenômenos, que ocorrem graças à rotação da Terra, absolutamente naturais, com os quais já nos acostumamos. Para nós o sol é parte da ordem natural do universo e, sendo assim, ao deitar, não nos preocupamos com a possibilidade do sol não nascer na manhã seguinte. Mas sem a luz do sol, a vida na Terra seria insustentável. Poucas pessoas consideram a existência e função do sol como algo milagroso, pois parece ser um fenômeno inexoravelmente natural. Mas a verdade é que a existência do sol tem muito mais significado do que os milagres sobrenaturais que nós, seres humanos, consideramos tão empolgantes e inspiradores. Em nossas orações diárias louvamos e abençoamos D’us por ter criado os astros – sol, lua e estrelas. Isso nos faz lembrar que mesmo os elementos básicos que constituem o mundo natural – tudo aquilo que julgamos natural e óbvio – são fatos milagrosos por serem fundamentais para a existência humana. E, sendo assim, devemos agradecer Àquele que os cria e sustenta.

Voltando à história de Purim. A Meguilat Esther é repleta de milagres (nissim), não tendo maravilhas sobrenaturais (pl’aim, plural de péle). Todos os lances da história de Purim parecem ter uma causa e efeito naturais, e cada evento é ligado ao seguinte de maneira lógica. Cada desenrolar está em seu lugar natural. Cada reviravolta leva a uma determinada direção e não ocorre nada de sobrenatural. Mesmo assim, cada um de seus aspectos é milagroso no sentido de que tudo o que ocorre se conecta, de alguma forma, garantindo um final feliz para o Povo Judeu. À medida que a história se desenvolve, forma-se uma confluência de fatores, uma “tempestade perfeita”, para derrubar Haman, salvando os judeus do decreto de aniquilação.

Ainda que o Nome de D’us não apareça, nenhuma vez, na Meguilá, há uma referência implícita ao Todo Poderoso. Esther faz com que Mordechai e todos os judeus orem e jejuem, juntamente com  ela. Na história de Purim, os  judeus entendem que se querem que algo aconteça, é necessário orar, pedindo a ajuda Divina. Mas quando jejuam e oram em busca da ajuda Divina, eles não pretendem que, de repente, caiam raios dos Céus e atinjam o malvado Haman. Sendo assim, após jejuar e orar, Esther se enfeita com o que tinha de mais bonito e tenta atrair o rei persa, com seus artifícios. Mas, também, ora e implora pela ajuda Divina. E suas súplicas não são por uma salvação sobrenatural. Em nenhum trecho da Meguilat Esther encontramos qualquer tentativa de mudar a lei natural. Mordechai e Esther jejuam e oram justamente por “Teus milagres que nos acompanham todos os dias” – pedindo um desfecho positivo para os judeus, não necessariamente milagres e maravilhas ou que D’us alterasse as leis da Natureza. E o Infinito lhes atende: o plano malvado de Haman se vira contra ele próprio. Ele e seus dez filhos são enforcados na mesma forca que ele mandara erguer para Mordechai. E os judeus são salvos. Mas a queda de Haman não é fruto de encanto ou outro fenômeno sobrenatural que fosse.

O milagre de Purim reside no fato de seu desfecho ser favorável justamente no momento em que a história poderia, facilmente, ter tomado outro rumo. O rei poderia ter optado por ficar ao lado de Haman. Poderia ter encontrado uma outra rainha igualmente bela para tomar o lugar de Esther. E poderia ter autorizado seu astuto primeiro-ministro a levar adiante sua “Solução Final para o Problema Judeu”. Na história de Purim, não houve violação das leis da Natureza, mas o Povo de Israel vivenciou uma grande salvação da aniquilação certa. Ocorreu um ness, um milagre de significado extraordinário, ainda que a história não contenha nem um único péle.

Milagres naturais e sobrenaturais

Há quem se refira ao ness de Purim como um “milagre oculto”. Mas, na verdade, foi um milagre revelado, aberto, pois a definição de um ness se baseia no fato de ser uma grande salvação, que foi o que ocorreu na história de Purim. Uma das várias razões para o Nome de D’us não aparecer na Meguilá de Estheré para nos ensinar um princípio fundamental do Judaísmo: não importa quão oculto possa estar o Todo Poderoso, Ele está sempre presente, em todas as situações. D’us não necessita realizar feitos sobrenaturais para chamar atenção a Ele ou para dirigir o mundo e a vida de todas as Suas criaturas. D’us está sempre envolvido em absolutamente tudo o que ocorre no Universo, seja ou não de acordo com as leis da Natureza. Como ensina o Talmud, o Altíssimo prefere conduzir o mundo seguindo o caminho da Natureza – Derech HaTevá. De outro modo, a vida na Terra seria confusa e caótica. No entanto, em raras instâncias, D’us viola uma das leis da Natureza, seja porque a situação o exige ou como forma de enviar um sinal aos seres humanos. D’us, às vezes, opera milagres sobrenaturais, um péle, de forma a nos despertar da sonolência espiritual provocada pelas leis da Natureza.

Nós, seres humanos, adquirimos mais consciência espiritual quando percebemos que tudo o que transpira no mundo, mesmo o nascer e o pôr do sol, é um ness – produto da Divina Providência e da bondade e graça Divinas. É totalmente errado interpretar a previsibilidade e consistência das leis da Natureza como prova de que o mundo é movido por piloto automático. Muito pelo contrário, a precisão e dependência do mundo natural revelam que D’us está initerruptamente envolvido e atua em simplesmente todos os detalhes de tudo o que existe.

A experiência das gerações passadas demonstrou que raramente os milagres sobrenaturais aumentam a conscientização acerca de D’us. Através da História, após o acontecimento de um evento sobrenatural, tudo volta logo à maneira como era antes, sem haver grandes mudanças. Apenas os Nissim, os milagres naturais, e não os Pla’im, os fenômenos sobrenaturais, podem-nos levar, realmente, a um resultado positivo e uma mudança verdadeira em nosso relacionamento com D’us. Exemplificando: em meros 40 dias após terem estado no Monte Sinai e vivenciado uma explícita Revelação Divina, em meio a assombrosos fenômenos sobrenaturais, nossos antepassados adoraram um bezerro de ouro. Mas, por outro lado, após a história de Purim e os eventos lá ocorridos, nosso povo reafirmou seu compromisso com a Torá, particularmente com a Torá Oral, e todos os seus mandamentos.

Salvo raras exceções, um fenômeno extraordinário é lembrado por longo tempo como um fato curioso, um evento emocionante, apenas isso. As pessoas que viram o fogo descer dos Céus, na época do profeta Eliahu, certamente continuaram falando do evento durante longos anos, mas o acontecimento teve uma influência de curta duração, pois não conseguiu erradicar a idolatria. Na época do Primeiro Templo, era comum a ocorrência de fenômenos sobrenaturais. A salvação do Povo de Israel no tempo do Rei Hizquiahu (Ezequias) ocorreu quando todos os soldados do rei assírio Senaqueribe viraram uma pilha de cadáveres, da noite para o dia. Sem dúvida, isso foi uma salvação totalmente sobrenatural, mas o Povo Judeu não se uniu mais a D’us e à Sua Torá por conta disso. Já na época do Segundo Templo, houve um número bem menor de maravilhas sobrenaturais, mas houve uma infinidade de milagres “naturais”. E como tais milagres ocorreram após muitas preces e pedidos, eles são observados e lembrados.

Nós, seres humanos, tão logo nos habituamos com algo, por mais espetacular que seja, esse algo perde sua natureza deslumbrante aos nossos olhos. No Deserto do Sinai, o Povo de Israel logo se acostumou com o maná e deixaram de se maravilhar com o fato de que caísse, diariamente, dos céus. Até mesmo já estavam se queixando do alimento. Quando Eva deu à luz a Caim, ela exultou: “Dei vida a um ser humano juntamente com D’us”. Cada nascimento desde então também é um milagre, mas a maioria das pessoas consideram que a gravidez e o nascimento de uma criança são fenômenos meramente naturais.

Ainda que um péle, um milagre assombroso, um evento prodigioso, ocorra por direta intervenção do poder Divino, sem intervenção humana, o segundo tipo de milagre, o ness, não é menos importante. E, na maioria das circunstâncias, é ainda mais. Recitamos muitas bênçãos sobre situações que nos parecem rotineiras, comuns – nossa capacidade de andar e ver, por exemplo. Dizemos uma bênção antes e após comer e beber. A maioria das pessoas as recitam de forma corriqueira, pois em nossa rotina diária, seu significado parece se perder. Como regra, descobrimos a grande importância das coisas e situações rotineiras só quando elas nos faltam. Somente quando dói uma perna, dificultando nosso caminhar, percebemos a importância da bênção, “Aquele que faz com que os passos do homem sejam firmes”, que, na maioria das vezes, recitamos sem dar atenção ao seu belo significado.

Para poder comungar com D’us continuamente e apreciar todas as Suas dádivas, é imperativo ter a capacidade de ver o que há de milagroso dentro do que é comum e assim apreciar a incessante beneficência Divina. Os milagres com que D’us nos brinda por meio da Natureza, a cada momento e a cada dia, e que ocorrem de forma natural, são os que devem ter o maior impacto sobre nós. O Altíssimo Se revela em toda a Sua glória precisamente por meio da realidade por meio da qual Ele cria, anima e concede toda a existência – ainda que Oculto, assim como o Seu Nome está oculto em toda a Meguilat Esther, apesar de Ele estar, obviamente, onipresente na história de Purim. Nesse sentido, é precisamente o mundo natural e a maneira natural do reinado Divino o que revela as alturas da criatividade Divina e Seu íntimo envolvimento com tudo o que existe.

Para se deixar influenciar pelos milagres naturais, é preciso identificá-los. É preciso ter olhos e coração abertos e estar atento. Quando contabilizamos os eventos de nossa vida, quando avaliamos algo, grande ou pequeno, e apreciamos aquilo a que nem sempre demos o devido valor, somos capazes de perceber: “Os Teus milagres que  nos acompanham no dia-a-dia”. Essa  percepção nos eleva acima e além de nossa situação espiritual anterior. É o caminho que leva à conscientização plena do ser humano.

A retificação de nossa capacidade de observação ocorre, de maneira especial, em Purim. Devemos viver em uma realidade que siga o curso da Natureza e a ordem do Universo, mas, ao mesmo tempo, precisamos saber olhar a realidade de forma diferente, para, desta forma, desvendar o Divino que Se oculta na realidade. E essa tomada de consciência, de que “Os Teus milagres nos acompanham no dia-a-dia” – é o que faz de Purim o dia mais feliz do ano.

BIBLIOGRAFIA

“Your Miracles Which Are with Us Daily” - Change and Renewal - The Essence of the Jewish Holidays, Festivals & Days of Remembrance - Rabbi Adin Even Israel Steinsaltz. Maggid Books