A festa de Chanucá comemora uma guerra religiosa que foi travada para preservar a pureza e a integridade da Torá. A guerra dos Hasmoneus foi uma luta em prol do Judaísmo e contra a assimilação – uma luta por uma identidade religiosa judaica.

A festa de Chanucá comemora a vitória militar dos Hasmoneus, os Chashmonayim, contra os gregos, ocorrida há 22 séculos. O Império Grego – que, à época, ocupava a Terra de Israel – oprimia o Povo Judeu, proibindo-lhe cumprir vários dos principais mandamentos da Torá, e o pressionava a se assimilar ao mundo helênico. Os Hasmoneus, uma família de Cohanim, popularmente conhecidos como Macabeus (Macabim), rebelaram-se contra os gregos e, após várias batalhas, recapturaram Jerusalém e o Templo Sagrado. Enquanto purificavam o Templo Sagrado da idolatria dos helênicos, os Hasmoneus procuraram azeite de oliva ritualmente puro para com ele acender a Menorá.

Depararam-se com apenas um recipiente de azeite que não havia sido profanado pelos gregos. O jarro continha quantidade suficiente de azeite para manter a Menorá acessa por apenas um dia, e seriam necessários oito dias para produzir mais azeite ritualmente puro. Mas, milagrosamente, essa quantidade ardeu durante oito dias. Para celebrar a milagrosa vitória dos Hasmoneus, que foi coroada pelo milagre do azeite, nossos Sábios instituíram a festa de Chanucá.

É importante destacar que Chanucá não constitui a única festa instituída para celebrar vitórias militares do Povo de Israel à época do segundo Templo Sagrado de Jerusalém. No entanto, essas outras datas festivas foram legadas ao esquecimento, ao passo que a festa de Chanucá é uma constante há mais de 2.000 anos, celebrada por geração após geração de judeus. Essa festa, cuja única mitzvá é o acendimento da Chanuquiá – o candelabro de oito braços – pode parecer uma celebração sem muita importância de uma antiga vitória militar. Contudo, nossos Sábios ensinam que será comemorada para sempre, até mesmo na Era Messiânica.

Chanucá é uma festa muito querida por todos. Muitos chefes de Estado e líderes políticos, aqui no Brasil, nos Estados Unidos e na Rússia, participam do acendimento das luzes dessa festa. No entanto, há vários conceitos errôneos sobre o que, na verdade, comemora-se em Chanucá. Como a mitzvá da festa é o acendimento, com azeite ou velas, da Chanuquiá,muitos pensam, erroneamente, que se trata da celebração do milagre do óleo. Apesar de ter sido um fenômeno sobrenatural, o fato de que o suprimento de azeite para um único dia tenha queimado por oito dias foi apenas um entre a enorme quantidade de milagres ocorridos ao longo da história judaica.

Muitos dos milagres descritos no Tanach (Torá, Profetas e Escritos Sagrados), no Talmud e no Midrash foram muito mais sobrenaturais e significativos do que o do óleo. Se tivesse sido decretada uma festividade cada vez que ocorreu um fenômeno sobrenatural na História Judaica, todos os dias do ano judaico seriam uma data especial. Nossos Sábios não instituíram a festa de oito dias de Chanucá – em que recitamos todo o Hallel e lemos trechos daTorá – apenas em celebração ao fato de que o suprimento de um único dia de azeite ritualmente puro manteve acesa a Menorá do Templo Sagrado por oito dias.

O que Chanucá realmente celebra – evidenciado pelas orações que nossos Sábios embutiram na liturgia judaica – foi a milagrosa vitória militar dos Hasmoneus. E, de fato, nos oito dias da festa, recitamos um trecho adicional na Amidá e no Bircat HaMazon, no qual agradecemos a D’us por Seus milagres. Esse trecho fala da vitória militar dos Hasmoneus, mas nem sequer menciona o milagre do azeite.

Mas, por que razão o triunfo militar dos Hasmoneus mereceu a instituição de uma festa judaica? O Povo de Israel teve muitas vitórias milagrosas em sua história. O que de singular houve nessa guerra para que fosse instituída uma festa para celebrá-la? Não foi a vitória militar, em si, mas a natureza da guerra.

As guerras, infelizmente, são tão antigas quanto o próprio homem. Mas, até ocorrer o levante dos Hasmoneus, todas as guerras tinham as mesmas motivações: ganância por territórios, recursos e riqueza e a busca pelo poder e a glória. Esse aspecto das guerras não mudou muito. Até hoje, a despeito do que possam alegar os chefes de Estado e os políticos, todas as guerras – com a rara exceção de uma de autodefesa, como a Guerra dos Seis Dias de Israel – têm por motivação razões territoriais, políticas ou econômicas. A guerra dos Hasmoneus se destaca como um contraste com as demais – foi singular por ter sido a primeira e talvez a única guerra verdadeiramente religiosa da História. Os Hasmoneus, que constituíam uma pequena minoria em meio ao Povo Judeu, empreenderam a guerra contra um inimigo temível – a superpotência militar à época – porque se recusaram a ficar passivos enquanto os gregos proibiam aos judeus o estudo da Torá e o cumprimento de seus mandamentos. Podemos imaginar que sua revolta tenha pegado os gregos de surpresa: tratava-se de um grupo muito pequeno de judeus travando uma guerra contra um poderoso exército, por razões sem precedentes: não lutavam por território nem por riquezas, por independência nem nacionalismo, mas por sua religião.

A noção de que a ligação de um povo com sua fé não era puramente sentimental ou cultural – de que a religião era suficientemente importante para por ela empreender uma guerra – era algo desconhecido antes da guerra dos Hasmoneus.

Mas a singularidade do conflito entre os Hasmoneus e os gregos não reside apenas no fato de ter introduzido uma nova razão para a guerra. O levante desencadeou uma mudança na perspectiva das pessoas: a partir de então, ficou claro que a religião não era meramente uma questão de hábito e tradição, mas sim, havia se tornado um componente vital da vida. Essa guerra foi um sintoma de uma profunda mudança – uma mudança na percepção daquilo que é mais importante na vida. Se os judeus queriam lutar para proteger sua fé, isso significava que a fé se havia tornado uma motivação central em sua vida. Se estavam dispostos a morrer por sua religião, era uma indicação de que obviamente queriam viver por sua religião.

É importante notar – e isto tem que estar bem claro – que a guerra dos Hasmoneus em nada se assemelhou às guerras que foram supostamente lutadas por motivos religiosos. Na Europa ou no Oriente Médio – na Idade Média ou em nossos dias – a religião pode ter sido uma razão complementar para uma guerra, mas nunca a sua real motivação. Quando a religião é invocada no contexto de uma guerra, seu propósito é recrutar tolos fanáticos e encobrir seus motivos nefastos.

Por exemplo, somente um ingênuo estudante de História poderia crer que as Cruzadas foram lançadas exclusivamente para defender a fé cristã, especialmente pelo fato de que a perda de vidas humanas, que ocorre, inevitavelmente, em qualquer guerra, é uma execração dos princípios da Igreja Católica. As Cruzadas foram supostamente lançadas para reconquistar a Terra Santa, que se encontrava sob domínio islâmico, mas a grande motivação subjacente era a mesma de praticamente todas as guerras – conquista de territórios, especialmente pelo fato de a Europa feudal ser superpovoada.

De modo similar, as guerras travadas entre sunitas e xiitas não decorrem da interpretação do Islamismo por cada um dos lados. São travadas em busca de poder, território e riqueza. As duas facções islâmicas não lutam para defender o Islã – uma religião que, aliás, se baseia na submissão a um D’us bom e misericordioso e na prática da bondade, generosidade e caridade. Os homens com frequência profanam sua religião usando-a para encobrir suas motivações maldosas e egoístas para a guerra e a violência. A guerra dos Hasmoneus foi uma rara exceção.

Diferentemente dos cruzados e dos que empreendem o jihad – a “guerra santa” –, os Hasmoneus não lutaram para conquistar outras terras e povos. Mesmo estando sob ocupação e lutarem em sua própria terra – a Terra de Israel –, seu propósito ao lutar contra os gregos nem sequer visava à independência política. E sobretudo: eles não lutaram para forçar sua religião sobre outros povos, mas para defendê-la. Não cometeram atrocidades e não disseminaram o terror. Isso fizeram os gregos, perpetrando crimes hediondos contra os judeus. O levante dos Hasmoneus foi único, pois foi uma verdadeira guerra religiosa. Eles lutaram para defender o Judaísmo daqueles que queriam extirpá-lo da face da Terra.

Conhecer a guerra dos Hasmoneus – e especialmente a razão para terem lutado – é primordial para se entender o que celebramos em Chanucá. Essa festa, tão bonita e iluminada, é relativamente fácil de ser celebrada. Mas o significado de Chanucá não se resume a acender a Chanuquiá, comer sonhos e latkes, brincar com o dreidel e presentear as crianças. Essa festa levanta uma questão existencial: quais as coisas, na vida, pelas quais vale a pena lutar, mesmo à custa de nossa vida? Uma questão atemporal que devemos nos perguntar. Por alguma razão inexplicável, o ser humano tem um talento para lutar guerras por razões totalmente erradas e raramente pelos motivos certos. Mesmo dentro de um país, há segmentos da sociedade que entram em disputas com outros, às vezes até com violência – mas, raramente, por razões morais ou idealistas. Em encontros públicos ou na mídia, na esfera legislativa ou na judiciária, as pessoas discutem sobre o que é legal e o que não é, o que convém e o que não, mas raramente sobre o que é certo e errado, bom ou mau. Hoje, se algo tem apoio legal, esse algo é praticado sem muita atenção ao fato de ser ou não bom e justo. Em nossa sociedade, há coisas que são perfeitamente aceitas pela lei, mas que são injustas e imorais.

A ideia helênica de que o homem é a fonte suprema da verdade e autoridade no universo, sendo, portanto, livre para agir como quiser, confunde a distinção entre a luz e a escuridão. Hoje, em grande parte do mundo, quase tudo é permissível, quase nada é condenável, e o fruto da árvore proibida está ao alcance do homem, sem que se leve em conta suas consequências.

Mas agora que o mundo está desestabilizado, tendo sido colocado por terra por uma pandemia global, o futuro é incerto. Há esperança de uma mudança positiva – individual e coletiva. Um desastre natural provoca mudanças no ambiente. Uma pandemia global deveria causar mudanças ainda mais profundas nos seres humanos. Talvez o momento seja o propício para repensarmos os valores que têm governado a sociedade mundial.

Tempos difíceis como estes que estamos vivendo – estranhos, incertos e dolorosos – têm um lado positivo: criam a possibilidade de encontrarmos novos paradigmas para a sociedade. Essa revisão dos valores e prioridades deveria incluir um maior espaço para o relacionamento vertical – entre o homem e D’us – e não apenas para o horizontal – entre o homem e seus semelhantes – que, infelizmente, é o único tipo de relacionamento que guia a vida de tantas pessoas.

O tema de Chanucá, que celebra eventos ocorridos há mais de dois milênios, é hoje mais relevante do que nunca. A guerra dos Hasmoneus foi singular por ter sido um sinal do fim da sociedade pagã. Mas hoje, particularmente no mundo ocidental, os valores helênicos são mais fortes e estão mais difundidos do que nunca. Talvez os dramáticos eventos destes nossos dias ajudem a demolir a nova sociedade helênica do Ocidente, nela instilando valores do que é certo e errado, em lugar da legalidade e praticidade.

A guerra contra a assimilação

A luta entre os Hasmoneus e os gregos foi uma guerra religiosa para proteger o Judaísmo, mas não foi um embate intelectual entre a filosofia grega e a Torá. A guerra dos Hasmoneus teve pouca ligação com o mundo grego clássico: foi muito pequena a assimilação dos judeus à alta cultura grega. Os judeus estavam sendo assimilados da mesma maneira que as demais nações do Oriente Médio que abraçaram o Helenismo. Assim como seus vizinhos não-judeus, a maioria dos judeus desconhecia e não se importava em saber quem eram Platão, Aristóteles e Arquimedes. Os judeus não se assimilavam por razões ideológicas, filosóficas ou teológicas, mas por estarem interessados no estilo de vida helênico, que era fácil e confortável, e em sua cultura universal. É verdade que os gregos travaram perseguições religiosas, promulgaram decretos horríveis contra os judeus e exerceram pressão para assimilar o Povo de Israel à sua cultura. Mas muitos judeus teriam se assimilado mesmo se os helênicos não os tivessem forçado a fazê-lo. 

Hoje, o processo de assimilação dos judeus segue pelo mesmo caminho. Os judeus não se assimilam por terem sido influenciados pelos trabalhos de Kant, Spinoza ou Marx. A maior parte dos judeus não estudaram seus trabalhos e não se importam com o que escreveram. Os judeus se assimilam hoje pela mesma razão que se assimilavam há 22 séculos – abandonando o Judaísmo e abraçando o Helenismo, por ser, quase sempre, a opção mais fácil e conveniente.

Assimilar-se, em nossos dias, não significa ver-se dividido entre filosofias, ideologias e crenças conflitantes. Significa jogar para o alto tudo aquilo no Judaísmo que a pessoa considere trabalhoso e inconveniente. A assimilação judaica hoje, assim como na época dos gregos, significa identificar-se com uma cultura que é essencialmente materialista e hedonista, excessivamente libertária e epicurista, que não faz demandas e não diferencia entre o que é permitido e o que é proibido. O Judaísmo, por outro lado, exige muito dos judeus – tanto em relação a D’us quanto aos outros seres humanos. A Torá exige diligência e disciplina e se baseia em distinções – entre o que é permitido e o que é proibido, entre o bem e o mal, entre uma mitzvá e um pecado. Já o Helenismo, este ensina que tudo é basicamente igual e nada tem importância.

É irônico que Chanucá, que talvez seja a festa judaica mais celebrada, é, de certa forma, a de maior religiosidade, pois comemora uma guerra religiosa que foi travada para preservar a pureza e a integridade da Torá. A guerra dos Hasmoneus foi uma luta em prol do Judaísmo e contra a assimilação – uma luta por uma identidade religiosa judaica.

Há ainda outra lição sobre a assimilação judaica que depreendemos da guerra dos Hasmoneus. Ainda que, à época, os judeus vivessem na Terra de Israel, eles se estavam assimilando à cultura helênica e perdendo sua identidade judaica. Isso evidencia o fato de que a assimilação judaica não é um fenômeno exclusivo da Diáspora. Ainda que os judeus que hoje vivem em Israel não estejam sujeitos à ocupação estrangeira – como na época da guerra dos Hasmoneus –, eles continuam vulneráveis a influências contrárias ao Judaísmo. Há mais de dois milênios, os Hasmoneus entenderam algo que tantos judeus hoje não entendem, mesmo muitos dos que vivem em Israel: para ser judeu não basta viver no Estado Judeu e falar hebraico. Se o Judaísmo for comprometido, se substituirmos as leis e valores da Torá pelos da cultura ocidental, legado dos helênicos, tudo estará perdido.

Uma nação despida de sua identidade não é uma nação, e a identidade do Povo Judeu é a Torá. Curiosamente, esse ponto foi defendido por um dos mais respeitados pensadores católicos nos Estados Unidos. Há uma década, Charles Chaput, à época arcebispo da Filadélfia, visitou as salas de estudo da Yeshiva University, em Nova York, onde centenas de alunos passam o dia estudando Torá. De volta à sua congregação, o Arcebispo Chaput fez um sermão sobre o que tinha visto. E disse que percebera que “o Povo Judeu continua a existir graças ao seu pacto...que era a base e elemento aglutinador de seu relacionamento entre si, com seu passado e com seu futuro. E quanto mais fiéis eles forem à Palavra Divina, mais certos podem estar de sua sobrevivência como povo”.

Essa percepção – de que a única garantia da sobrevivência do Povo Judeu é a sua fidelidade à Torá – foi o que desencadeou a guerra dos Hasmoneus contra os gregos. Mas apesar de seu triunfo militar – apesar de terem retomado Jerusalém e o Templo Sagrado e do milagre do azeite – a guerra não levou a um final definitivo. Essa guerra continua a ser lutada em todas as gerações, inclusive na nossa. Todo judeu, mesmo os que têm o privilégio de viver em Israel, tem de optar entre o Judaísmo e o Helenismo – entre nossa herança e identidade espiritual ou a aculturação e a assimilação. O que mudou desde a época dos Hasmoneus foi que a guerra entre o Judaísmo e o Helenismo não mais é um confronto militar. Hoje é uma guerra espiritual e as forças que querem extinguir a luz do Povo de Israel são muito mais insidiosas.

Em todas as gerações passadas houve inúmeros judeus que, como os Hasmoneus, estavam dispostos a dar a vida para defender sua fé em D’us, sua integridade espiritual e a santidade da Torá. Para eles, o Judaísmo não era apenas a motivação central de sua vida. Era sua própria vida e, de fato, mais importante ainda que sua vida. Em nossa geração, apesar das ameaças enfrentadas pelo Estado de Israel e dos hoje frequentes surtos de antissemitismo que surgem na Diáspora, nós, judeus, não precisamos sacrificar nossa vida pelo Judaísmo. Mas se algo podemos aprender da luta dos Hasmoneus, esse algo é que se houve, em nosso passado, judeus dispostos a morrer por nossa religião, nós temos hoje que, no mínimo, viver por ela.

BIBLIOGRAFIA

Rabbi Adin (Even Israel) Steinsaltz - Hanukkah – lighting a new kind of candle

https://blogs.timesofisrael.com/hanukkah-lighting-a-new-kind-of-candle/

Rabbi Adin (Even Israel) Steinsaltz - Eight Days, Eight Lights – Day 1

https://steinsaltz.org/essay/hanukkah-5776/

A Former Catholic Dances With the Torah, Rabbi Meir Soloveitchik, artigo no The Wall Street Journal, 8/10/2020